ÚNICA N. 1744 - 01 Abril 2006 O sentido da vida
O casal é apenas um retrato de uma tendência crescente, de uma geração que quer experimentar outras vivências, novos horizontes, outras mentalidades. E que também é portuguesa. Neste momento, Marta e Rodrigo andam entre a Costa Rica e o Panamá, ao sabor da corrente, a usufruir o «tempo, coisa que a nossa sociedade cada vez menos tem». Têm vivido «experiências únicas»: «Ver tartarugas a desovar, sentir o cheiro do enxofre de vulcões activos, aprender a cozinhar com gente de todo o mundo, ver e viver como esta gente, modestamente mas felizes». O casal tem encontrado muitos viajantes como eles, «a maioria por períodos de três a seis meses». Há também «muita gente que tira licenças sem vencimento ou que estipulam, em comum acordo com as suas entidades patronais, um tempo maior de férias e partem por x tempo, com a garantia de que o lugar estará lá quando regressarem». Não acreditam «que seja uma tendência geracional, porque sempre existiram pessoas a viajar e a ter uma vida alternativa». Marta e Rodrigo têm noção de que, quando regressarem, «os primeiros tempos não vão ser pêra doce». E tomam como exemplo um amigo, Miguel Trindade, que há cinco anos partiu para a América Central e, «das vezes que visitou Portugal, viu como é difícil sair e voltar a entrar no sistema». De qualquer forma, não parece que Miguel, surfista da Ericeira, tenha grande vontade de voltar: nas palavras de outro amigo, «virou neo-hippie, vive do artesanato, viaja numa carrinha Volkswagen pão-de-forma com a namorada argentina e está agora na Colômbia, a caminho de Ushuaia...» 30 anos, 52 países A sua compensação é que, aos 30 anos, conhece 52 países. Não construiu uma carreira, mas não está preocupado com isso. Depois de dois anos a «congelar» numa montanha da Islândia, preocupa-se agora em planear a sua «última viagem em grande»: «ir até ao Japão por terra». Tem particular interesse em conhecer «os ões todos» em caminho: o Uzbequistão, o Tajiquistão, o Quirguistão, o Paquistão, o Afeganistão... Não tem medo, garante, até porque, da sua experiência, «os países com pior fama são os mais puros, onde as pessoas são mais abertas». Foi o que aconteceu na Colômbia, onde passou quatro meses, na viagem de um ano que fez pela América Latina. Percorreu o México, a Guatemala, as Honduras, El Salvador, a Nicarágua, a Costa Rica, o Panamá, o Equador, o Peru, a Bolívia e o Brasil. Gastou 1400 contos - «o que não é muito, para um ano de viagem», garante. «Dormíamos sempre nos sítios mais baratos (youth hostels referenciados nos guias «Lonely Planet»), comíamos sempre nos mercados». Com um dinheiro que tinha guardado, quatro meses de trabalho na fábrica «kosher» e a mota que vendeu, juntou para esse plano antigo que era ir do México à Terra do Fogo. Para trás ficavam outras incursões, mais modestas: quatro meses no Sudeste Asiático, entre Cambodja, Laos, Tailândia, Malásia e Singapura; dois meses no Médio Oriente, por Israel, Egipto e Jordânia; três meses na Índia e no Nepal; já para não falar nos «inter-rails» da adolescência. «O meu pai disse-me sempre: primeiro casa-te contigo (até aos 35) e depois estarás preparado para casar com uma mulher». Carlos decidiu cumprir à risca o conselho. Desde cedo que ele e as irmãs foram incentivados a viajar. Aos 16 anos, integrou um AFS, programa de intercâmbio de um ano em que foi viver com uma família de outro país - no caso, o Canadá. Ao contrário do que imaginava, não sentiu falta de casa - pelo menos, como julgava que iria sentir. Depois, começou com os «inter-rails» na Europa. Quando percebeu que com o mesmo dinheiro poderia passar três meses na Índia, não hesitou. «De início, a escolha dos destinos obedeceu puramente a critérios económicos. Ia para onde o dinheiro permitia», admite. A seguir àquela viagem de um ano, voltou a Portugal, mas a crise tinha-se instalado - estávamos em 2003. «Então, quando a oportunidade da Islândia surgiu, não pensei duas vezes». Como ele, foram 1200 trabalhar para a maior obra de engenharia da Islândia - uma barragem e 50 km de túneis -, atraídos pela remuneração (o salário mínimo era de 1600 euros), comida, dormida e roupa lavada. Apesar do frio extremo e das difíceis condições (no pico do Inverno, há apenas duas horas de sol), trabalhou dois anos com a cabeça na próxima viagem. «Eu que nunca tinha desejado vida de escritório, trabalhei 12 horas por dia, seis dias por semana», conta. Em Portugal há quatro meses, garante que já gastou mais neste período no nosso país que em oito meses de viagem. Acha absurdo o custo de vida cá. Sabe que um dia vai assentar. «Enquanto viajamos, vemos formas tão distintas de viver, gente sorridente com tão pouco, que o facto de não ter construído carreira não me assusta». Considera que há, cada vez mais, a tendência para viajar nas gerações dos vintes e dos trintas. «Nem que seja como escape». Atrás da câmara Em 1991, sagrou-se campeão nacional
de longboard, número 6 no «ranking» europeu. O
surf competia apenas com outra paixão, a da noite, que o levou
a abrir um bar no Bairro Alto, e depois um restaurante, na Costa da
Caparica. «O negócio dos bares obrigou-me a desenvolver
as minhas capacidades gráficas para desenhar convites e flyers
em programas como Photoshop e Illustrator», conta. «Assim
fui descobrindo a minha verdadeira vocação. O meu Mac
começou a ser-me tão fiel quanto a minha prancha, e
em 1996 decidi fazer um curso de Design Gráfico na FLAG, em
Lisboa, o que mudaria o rumo da minha vida para sempre». Produziu várias coberturas de eventos nacionais e internacionais de surf, concertos, foi câmara aquático da Disney Kids, fez os vídeos de apresentação do Campeonato do Mundo Indoor... mas nunca se sentiu realizado. «Então, vendi tudo e fui para terras do Tio Sam concretizar o sonho da minha vida: fazer um curso de cinema e realizar uma curta-metragem». Três «curtas» e uma «longa» depois, pode considerar-se que alcançou o sonho. Mas apesar da família estar em Portugal, o seu regresso ao país não é de todo uma certeza. «Vive-se em Portugal um período de compadrio e nepotismo», afirma. «As coisas têm ido de mal a pior e estão a chegar a um ponto absurdo». Há um ano, ele, que já
viveu a dois quarteirões do Kodak Theatre, em Hollywood, mudou-se
para Playa del Rey, a 30/45 minutos. «Estou na praia, onde posso
fazer o meu surf». Normalmente acorda cedo, verifica as condições
do mar e vai «dar uma surfada». Quando regressa, fala
com a mulher e os filhos via «webcam», antes de se pôr
ao trabalho. «De cabeça fresca, trabalho directo
até ao fim do dia, o que normalmente acontece em casa. Por
vezes tenho de ir a estúdios ou a reuniões. Quando estou
em filmagens, às vezes não ponho os pés em casa
durante dias...» Vale a pena toda esta mudança? «Quando
estou em filmagens e um shot sai tal e qual como eu o
imaginei, vêm-me sempre lágrimas aos olhos. Há
um elemento divino nessa experiência, que vale todo e qualquer
sacrifício». Na verdade, a maioria das pessoas não escolheria, como ela, destinos de «férias» como a Guiné-Conacri, o Mali, o Djibuti, ou a Etiópia. Passar o Natal numa cubata na Etiópia foi a última vivência desta directora executiva de uma agência de publicidade, que foi 15 dias para as montanhas daquele país, a 3800 metros de altitude, com três amigos. «Queríamos passar um Natal diferente», conta. A ideia nasceu do facto de uma sua amiga de infância ser professora no Djibuti, um pequeno país ao lado da Etiópia. Durante o «trekking» que fizeram nas montanhas, dormiram em cubatas e contactaram sobejamente com a população local, a quem compravam a comida e a água quente para o banho, que tomavam todos os dias (cada tina de água quente custava cerca de 5 cêntimos). A Sara, o Natal na cubata trouxe «paz e tranquilidade». E uma conclusão: «Nós somos uns sortudos, só temos de ligar o interruptor». «Vivemos numa sociedade projectada para o futuro, em que nunca se vive o presente, o momento...», diz. «Nunca estamos satisfeitos com aquilo que temos. E não há tempo para interiorizar nada. É tudo feito a pensar na próxima conquista, sem saborear esta». É isso também que Sara
procura - e encontra - nestas viagens: um outro esquema mental, um
outro modelo cultural. «Ali não há preconceitos
ou julgamentos», assegura. «Não estão viciados,
como nós. Estamos tão habituados a ter tudo e a considerar
tudo tão normal que passamos a não dar valor a nada,
a não saber distinguir o luxo do necessário. Passamos
a ser blazé em relação a tudo...
numa sociedade de consumo perdemos os parâmetros do que é
razoável. Uma casa de duas assoalhadas é considerada
pequena, uma casa sem garagem é impensável... Ora, quando
estamos num país em que se anda 40 km a pé, em que para
se ter leite é preciso ir tirá-lo à cabra ou
à vaca, em que se eles não forem vender um animal não
têm que comer, reaprendemos o prazer da criança quando
bebe um sumo novo». Viajar, para ela, surgiu como «uma
necessidade de amadurecer aspectos pessoais», de descoberta.
«Quanto mais fechados, menos desenvolvemos capacidades. Não
nos questionamos, não mudamos o que é mau, não
melhoramos o que é bom». Aliás, Sara acha que,
apesar de estarmos rodeados de meios de comunicação,
«vivemos muito isolados». Filha de um inglês «motard»,
que sempre viajou, e de uma francesa designer de moda, acredita que
aquilo que distingue a actual geração em relação
às que viajavam no passado é «a capacidade de
deslocação para sítios muito mais remotos».
E o facto das pessoas terem mais a perder, ao partir. «Antes
havia mais pobreza, menos liberdade, mais razões para sair».
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Marta e Rodrigo: Carlos: a vida é uma viagem Tito: o sonho de ser realizador Sara: viajar para amadurecer Marta Marques e Rodrigo Ferreira rumaram à América Central como primeiro destino. Não sabem quando regressam. Neste momento, andam entre a Costa Rica e o Panamá, a usufruir o tempo, a cozinhar, ou a sentir o enxofre de vulcões activos. Na zona de Ostional Com uma iguana Em Bocas del Toro Na Playa Junquilla Assistindo à desova Fábrica de salsichas kosher onde Carlos trabalhou, em Inglaterra, para poder viajar No topo da montanha de Sneiffel, na Islândia, no megaprojecto hidro-eléctrico onde esteve dois anos, também a poupar para viajar Em viagem: na Colômbia, com a tribo Kogis, a caminho da Cidade Perdida Na China, e em Petra, Depois de três curtas-metragens, Tito Costa vai rodar a sua primeira longa. Em Portugal ficaram mulher e dois filhos. «Vive-se no nosso país um período de compadrio e nepotismo» Tito da Costa partiu há três anos para Hollywood em busca do sonho de ser realizador Igreja em Adis Abeba, capital da Etiópia Sara Battesti e uma amiga na Etiópia, entre pastores, na cordilheira de Mont Balet, onde fizeram um percurso de 15 dias a dormir em cubatas (em baixo)
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