ÚNICA N. 1727 / 3 Dezembro 2005

Música mestiça

Aos 27 anos, Sara Tavares lança o terceiro disco, no qual reafirma uma sonoridade crioula.

Texto de Katya Delimbeuf, fotografias actuais de Jorge Simão

Abraçada à guitarra, que toca há cinco anos, Sara Tavares ensaia para o concerto de apresentação do seu novo disco. Repete com os colegas as entradas do coro, o ritmo da pandeireta. Jinga, ao som de uma música de acordes simples mas cheios de ritmo, que transborda de energia positiva. Arredada das gravações há seis anos, Sara parece ter encontrado o seu trilho. Após Mi Ma Bô, lançado em 1999, em que começou a explorar as suas raízes africanas, Balancê é um disco com traços marcadamente crioulos. Hoje, a música que faz passa por uma sonoridade «luso-cabo-verdiana», em que a miscigenização cultural é forte presença. «Agora é ceifar, ceifar...», diz.

Avessa a rótulos, Sara não gosta que encaixem os seus trabalhos na secção da «world music» ou da música étnica. Mas não se importa de se assumir como «filha da diáspora cabo-verdiana». Nesse sentido, diz que faz música com «uma componente lusófona onde vêm mesclar-se o português e o crioulo». Sendo ela própria fruto de uma segunda geração de imigrantes perfeitamente integrada, a cantora quer mostrar que faz parte de «uma geração multicultural, que integra vários estilos, do ‘funk’ ao ‘rap’, passando pela cultura crioula, pelas mornas ou pelas ‘coladeras’».

Curiosamente, foi a comunidade cabo-verdiana em Portugal que a fez despertar para a sua cabo-verdianidade. Antes, considerava-se completamente portuguesa, vivia em Almada com a avó, nunca questionara as suas origens. Há cinco anos começou a sentir-se deslocada. A questão da pertença colocou-se, como «é normal em pessoas que têm a família dispersa». Sara cresceu sem os pais e sem os irmãos e foi educada por uma ama, portuguesa, que considerava como uma avó. O pai estava nos EUA, a mãe vivia no Algarve. A menina cresceu sozinha, o que teria repercussões no seu percurso. Quando a avó de Sara faleceu, ela tinha 18 anos - dois anos após a grande mudança na sua vida, com a vitória no «Chuva de Estrelas» - e teve de virar-se sozinha. Cresceu à pressa. «Amadureci rapidamente, ganhei ideais muito cedo», admite. Os estudos ficaram pelo caminho, até ao 9.º ano.

Agora, passaram 11 anos desde que uma cabo-verdiana roliça e muito novinha (tinha apenas 16 anos) ganhou a final do «Chuva de Estrelas» com uma surpreendente imitação de Whitney Houston. Hoje, passada mais de uma década, é Sara Tavares e não «a Whitney Houston portuguesa» - imagem que teve de desfazer. Após um primeiro disco de «gospel», em 1996 - «Sara Tavares & Shout» -, a cantora começou a buscar as suas raízes. Autodidacta, aprendeu um novo instrumento, a guitarra, e por alturas do seu segundo disco, em 1999, iniciou-se na composição. «Esta surgiu por necessidade e por não ter descoberto autores que tivessem essa consciência da ‘luso-cabo-verdianidade’ acesa...», explica. Mi Ma Bô - que em crioulo significa «Eu e Tu» - tinha já uma sonoridade marcadamente africana. E foi o início de um segundo tempo na carreira de Sara.

«Para mim, a música é uma via espiritual, de elevação», confessa. Por isso, Sara tenta abstrair-se «daquilo que a sociedade impõe, de todas as suas regras». Evita o «social» - «não é o meu caminho» - e também não gosta dos constrangimentos do mercado, «da imposição de ter de fazer um disco de dois em dois anos». Sara conta que fez «um caminho de depuração em relação à religião. Hoje, tenho uma religiosidade mais pessoal, pois leio e aproveito coisas de várias culturas». É uma autora (cantora e compositora) mais pacificada, mais amadurecida, que surge neste Balancê, com 13 faixas, nas quais conta com participações tão diversas como a do «rapper» Boy G. Mendes e da fadista Ana Moura.

Afinal, há já muita experiência no percurso de Sara Tavares. Do Festival da Canção em 1996, com o tema «Chamar a Música» - que obteve, na altura, a melhor pontuação de sempre, um 8.º lugar -, às participações em grupos como a Rias Big Band de Berlim ou o coro de «gospel» norte-americano «Ministers of God». Ou passando, ainda, pelos duetos gravados com Nuno Guerreiro («Solta-se o Beijo», um dos maiores êxitos da Ala dos Namorados) e pela ida a festivais internacionais como o Womex, em Roterdão, além de concertos em inúmeros países.

Apesar de ter muita família em São Vicente e Santiago - irmãos, sobrinhos, avós maternos -, no dia-a-dia Sara apoia-se «na família alargada que são os amigos e nos colegas de trabalho que se tornam amigos». Quanto a fundar a sua própria família, garante que «gostava muito» - até porque considera que deve ser «uma sensação de plenitude muito grande» -, mas confessa: «Coloquei sempre a música em primeiro lugar».

Considera-se «mansa, pacífica, muito teimosa e indisciplinadíssima. Não canto todos os dias nem toco todos os dias. Sou muito do silêncio, apesar de a música fazer parte de mim. E preciso muito do meu espaço, senão desequilibro-me», afirma. «Muito tímida», garante que tem feito um esforço para «sair mais». «Aliás, este disco foi um pouco feito no calor da noite» e das saídas no B.Leza, no Mussulo ou no Convento.

Ani Fonseca, «manager» de Sara há dez anos e uma das suas melhores amigas, acompanhou todo o seu crescimento. «Segue muito a sua intuição», diz Ani, para quem «a interpretação é a grande mais-valia da Sara. É uma coisa de alma. Ela toca nas pessoas». Que outra explicação poderia haver para que Ivan Lins, essa figura da música brasileira, tenha descrito Sara como «uma das grandes vozes da actualidade a cantar em português»?

 

 

     

 



Onze anos após a vitória no «Chuva de Estrelas» (foto ao cimo), «Sara Tavares é Sara Tavares», com um estilo próprio, e não «a Whitney Houston portuguesa»

 


A mulher actual eclipsou a menina (em baixo) e, ao fazê-lo, cresceu também a nível musical, passando do «gospel» à «luso-cabo-verdianidade»Música mestiça