ÚNICA No. 1774 - 28 Outubro 2006

Rostos da diferença

Quem vai cuidar do meu filho quando ele crescer e eu já não estiver cá? A pergunta ganha contornos dramáticos quando falamos de deficientes mentais. Hoje, sociedade e Estado sabem responder melhor à questão. Mas não a resolvem na totalidade. Não obstante, há histórias de sucesso.

Texto de Katya Delimbeuf
Fotografias de Ana Baião

O sorriso de Tchipinda só rivaliza com as inúmeras sardas que lhe inundam a cara. Tem muitas, muitas, este são-tomense de 29 anos com jeitos de menino traquina. A mãe vive em Londres, o pai em São Tomé, e ele está entregue aos cuidados da Cercica, onde é assistente de apoio domiciliário desde 1997. Tchipinda tem um grau de deficiência ligeiro, é perfeitamente capaz de manter uma conversa. Além disso, é um galanteador - gosta de cumprimentar as jovens com um beijo na mão. Vive na «residência dos autónomos» há um ano, que paga com uma percentagem do ordenado, e partilha o quarto com Bruno, de 24 anos, também ele trabalhador. Entre as 9h e as 18h, Tchipinda prepara refeições e lava marmitas, que ajuda a distribuir. Chega a entregar «50 por dia», mas garante que «não é difícil, para quem gosta de ajudar o próximo». Fez um curso de formação em horticultura na instituição, e depois outro de auxiliar de ajudantes familiares. A Cercica dá variadíssimos cursos de formação a deficientes mentais e pode orgulhar-se de ter ajudado à integração de muitos.

Tchipinda recebe um ordenado, que ele próprio gere, e que gasta em «cinema, jogos de PlayStation, Internet (todas as sextas-feiras vai ver o «e-mail»), e viagens». Às 18h, depois do trabalho, ruma à residência, onde faz as tarefas que lhe cabem. Uma vez por semana, é responsável por fazer o jantar. Ocupa os tempos livres a ler, a passear a Maggie, uma das cadelas da casa, ou a ver televisão. Bruno Candeias, o companheiro de quarto, é outro caso de sucesso e de integração profissional. Para ele, Tchipinda «é um irmão». Mas está na residência há bem mais tempo que ele: quatro anos. Antes, vivia «com o pai e a madrinha, mas em casa havia muita confusão...», confidencia. Bruno não diz mas sabem-no os técnicos: foi acolhido na Cercica porque passava muitas noites na rua, ao relento. Agora, trabalha numa empresa de embalagem de bolos há sete meses. Cola etiquetas, entrega caixas às pessoas, anda de touca «para não contaminar os alimentos». Se pudesse escolher, «gostaria de ser fotógrafo». Tem centenas de fotografias de pombos. Antes, já tinha trabalhado em jardinagem e em apoio domiciliário, em empresas com as quais a instituição e a Câmara têm acordos.

O seu diagnóstico é «perturbação ‘borderline’ da personalidade» - tem oscilações bruscas de humor, mas é autónomo. A seguir ao trabalho, volta para a residência de transportes públicos, toma banho, cozinha, quando é o dia dele, e, no tempo livre, escreve letras de músicas. Gosta muito de escrever e de ler. Está neste momento a acabar O Diário de Anne Frank. «Colecciona» namoradas, na esperança de encontrar a certa. Sonha em casar e constituir família.

Lutar contra a diferença
«Absolutamente fundamental». É assim que Ana Serpa, mãe de Filipe, ex-utente da instituição e também a trabalhar, define a ajuda da Cercica ao fazer a ponte para a integração profissional. Visivelmente emocionada, confessa: «Nessas alturas, nós, pais, sentimo-nos muito perdidos. É preciso vencer muita coisa: o estigma, a luta contra a diferença...» Ana considera que a sociedade devia «centrar-se mais no desenvolvimento das capacidades de cada um destes jovens do que nos seus problemas. Porque todos eles sabem fazer alguma coisa. Além disso, sentem-se mais úteis e realizados do que se estiverem a receber um subsídio ou uma pensão sem fazer nada». Filipe, 23 anos, lindos olhos azuis, vem vestido e engravatado com a farda que usa no trabalho. Depois de um estágio de seis meses, foi contratado em Maio para o El Corte Inglés da Beloura. Tem um «part-time» das 14h às 17h, no departamento de reposição de «stock». Trabalha seis dias seguidos e folga dois, o que veio alterar um bocadinho a sua vida social - nomeadamente os almoços com as avós, ao fim-de-semana. Filipe garante que gosta do ambiente, dos colegas. Vai para o emprego de comboio, da Parede até São João do Estoril, e depois apanha um autocarro até ao trabalho.

A mãe de Filipe não mede elogios à Cercica. E conta os progressos do filho desde que entrou para ali, aos 18 anos. Rosa Neto, a directora, reforça: «Era bastante mais reservado. Desenvolveu muito as competências sociais. A coordenação motora. E a autonomia». Filipe não tem diagnóstico definido, sabe-se apenas que possui um atraso de desenvolvimento ligeiro a médio. Tirou o curso de canicultura, durante quatro anos. Dava banho aos cães (há cinco: duas Collie, dois Labrador e um Boxer), tosquiava-os, fazia exercícios de «agility», preparava-os para concursos. O que mais gostava era de «lavar os canis». Entrava às 9h e saía às 17h. Além do curso, tinha aulas de cidadania, competências sociais, informática, educação física.

Nos tempos livres, Filipe anda de bicicleta, faz «rappel», escalada ou canoagem, actividades que experimentou pela primeira vez no projecto Vital - um programa universitário que, desde 2000, vive de voluntários e tem por objectivo sensibilizar a população e os futuros quadros do país para a problemática da deficiência mental e a necessidade de integração.

A outra face da inclusão
Mas os casos de integração de deficientes mentais no mercado de trabalho estão longe de ser a maioria. Nas instituições que existem pelo país, fundamentais no apoio às famílias, há doentes de todos os tipos e com os mais variados graus de dependência: do deficiente profundo ao intermédio, existe um mundo de pessoas - com nomes, sorrisos e individualidades. O EXPRESSO foi conhecer o dia-a-dia de duas instituições - uma na capital, a CEDEMA, no bairro social da Ameixoeira, outra no interior do país, em Almodôvar, a CERCICOA. Viagem a um mundo que, ao contrário do que se possa pensar, pouco tem de triste. Reina a animação na carrinha da Cedema. São 14h de uma quarta-feira, e estamos de partida para a aula de hipoterapia. Dez utentes e três funcionários enchem o veículo que ruma ao picadeiro da GNR em Braço de Prata onde, uma vez por semana, estes «meninos», dos 23 aos 45 anos, vão montar a cavalo. Vera dá-me as boas-vindas com um beijo na mão. Não me conhece, mas isso não a impede de fazer um amigo. É gordinha, bem disposta e tem trisomia 21. André não se esqueceu do meu nome: tem uma paralisia cerebral, não consegue andar sozinho, tem epilepsia e um atraso neurológico... mas comunica perfeitamente e gosta de estabelecer relações. Está há dois anos na instituição. Chegou com medo de tudo e de todos, defendendo-se com os braços como se lhe fossem bater. Agora, vive em pânico de se ir embora. «Esta é a minha família», diz de imediato.

No autocarro seguem ainda Tininha, 23 anos, Gabi, 20, Nuno, 29, Gabriel, 30, Ana Teresa, 23, e Isabel, 45. À medida que se vão descobrindo os nomes e as histórias, é fácil afeiçoarmo-nos a estes «miúdos», que já deixaram de o ser. Gabi é brasileira. Conta que se deitou tarde na véspera, a ver «um filme de aviões». É hiperactiva, não consegue fixar nem aprender. Só memoriza letras de canções. Passamos ao lado do estádio do Sporting e começam os despiques. «Spoooorting...!», grita Vera. Gabi, à sua frente, acaba de mudar de clube: «Agora sou do Porto. O Sporting não ganha campeonato mesmo...» Vera mete-se com João Pereira, o professor de Motricidade Humana e Reabilitação. Inventa-lhe namoradas, elogia-lhe o físico.

Chegamos ao picadeiro, onde já montam meninos de outras instituições. Há dois anos que os utentes da Cedema fazem hipoterapia. «Notam-se melhorias a nível motor, e, sobretudo, de motivação», explica Guillaume Oliveira, animador. «Isto é muito benéfico para eles, até pelo calor do animal...», continua João. «Melhora-lhes a coordenação, o equilíbrio».

Treinar o equilíbrio
João fica com os casos mais complicados, Guillaume com os que montam sozinhos. De toque na cabeça, André, um dos mais problemáticos a nível motor, está pronto. Deitado de costas, em cima do cavalo, trabalha o equilíbrio. Faz exercícios com uma bola, que tem de agarrar e passar a João. Entretanto, Guillaume ocupa-se de Teresa. «Mãos à cintura», pede. «Agora, quando deres a volta, olhas para cima (para o balcão onde estamos sentados), ‘tiras a fotografia’ e dizes-me quem é que está lá em cima, ok?» «Mãos na garupa - que é o rabiosque. Olha para a mão. Costas direitas. Roda os ombros. Isso...» Segue-se Gabi. «Pôr as mãos atrás da nuca, abrir as asas», continua Guillaume. «Não sou passarinho...!», retorque ela de imediato, no seu sotaque brasileiro e jeito «arrebitado».

Uma hora mais tarde, o autocarro ruma de volta à Cedema. Alguns vão para a aula de cerâmica da professora Isabel, onde pintam, fazem fantoches em «papier maché», ou simples rabiscos que darão belos quadros. Às 16h15 é o lanche, e depois passa a carrinha para os levar a casa. «Quanto mais nos envolvemos nesta área, mais notamos as suas carências», diz-nos Maria Antónia Machado, presidente da Cedema há 13 anos - e mãe de um filho de 39 com síndroma de Down. «Estão sempre a bater-nos à porta casos dramáticos. No outro dia, veio cá uma família cujo pai tinha cancro, a mãe estava com uma depressão profundíssima, e tinham um filho deficiente que não sabiam com quem deixar. O pai não se ia tratar, andava com os pés todos em ferida, enrolados em trapos velhos, porque não tinha ninguém que lhe tomasse conta do rapaz».

E no interior, como é?
Poderia ter-se a tendência para pensar que no país profundo as dificuldades das pessoas com deficiência mental seriam muito maiores e o apoio das instituições menor. Escolhemos Almodôvar pela interioridade. A 65 km de Beja, esta vila de oito mil habitantes é um bom exemplo da pacatez do Alentejo.

Na sala do CAO (Centro de Actividades Ocupacionais), Marta entretém-se a recortar revistas, com o sorriso maroto de quem está na iminência de fazer um disparate. Trata toda a gente por «amiga», enquanto vai mostrando recortes de noivas e de receitas. Nelson faz exercícios de matemática, Susana borda. Maria José pinta com lápis de cor os contornos de um bambi, e Fernanda, uma mulher muito gorda, desfolha uma «Caras» com Lili Caneças na capa. Fernando joga copas no computador, antes de se cansar e rumar à bicicleta de ginástica, pedalando vigorosamente. Pergunta-me o nome e memoriza-o de imediato. Repete-o muitas vezes, enquanto pedala. «Vamos fazer a maratona», diz. Sílvia, cabelo curto, está sentada a uma mesa, a um canto da sala. Rasga folhas de revista, amachuca-as em forma de bola, e mete-as no bolso. Repete uma, duas, três vezes - até ter os bolsos monstruosamente cheios. Esta poderia ser uma sala de ATL de crianças, com dois vigilantes a tomar conta deles. Só que estas «crianças» são mais velhas e têm algumas particularidades. Não é um ambiente constrangedor. Em boa verdade, poderia ter saído de um filme de Kusturica ou de Lars von Trier. O mesmo é dizer que este é um mundo um pouco excêntrico, mas passível de ser compreendido com uma boa dose de humor.

Chega Maria de Fátima, 38 anos. Pergunta-me o nome e começa a falar. Pede-me para desenhar. O nome dela. A casa do primo. O carro. O primo. Uma carteira, uma mala... Enfim, uma sucessão de objectos, que pede para ver, sendo que na verdade pouco vê. Só se quer entreter. Começa a trautear Laura Pausini, «La Solitudine», num italiano aldrabado. «Gosto muito de si», diz, «sou sua amiga. E você, é minha amiga?» Pede uma caneta. Uma folha, qualquer coisa. Vive na residência há três anos. Enquanto isso, Susana partilha «as partidas» de Fernando e António, «quando os vigilantes vão jantar». «Andam os dois atrás de mim, parecem duas melgas!», e ri-se. Engana bem... Mais tarde, fico a saber pelo director que ela é quem provoca os rapazes, com promessas de roupa a menos.

16h, hora do lanche. É vê-los correr... Parece que tocou um gongo. Dois iogurtes são devorados em três tempos. As refeições são das alturas de maior prazer para eles. São também uma compensação afectiva. Depois, os residentes juntam-se na sala. Alguns vêem televisão - os omnipresentes «Morangos com Açúcar»... Há quem tome banho antes do jantar, entre as 18h30 e as 19h. A maioria deita-se pelas 21h, já que no dia seguinte acordam cedo, pelas 8h30.

Melhor saúde mental
As instalações da Cercicoa são boas. Além do jardim, da residência, com sete quartos, da sala de estar, e do CAO, há outras quatro salas de actividades e uma outra muito especial: a «snoezelen». Na «sala de relaxamento» há uma série de estímulos visuais e tácteis pensados para descontrair: um colchão de água, uma piscina de bolas como as dos miúdos, colunas de água, candeeiros de lava, quadros de toque com várias texturas, projectores de parede, uma casa de espelhos… O projecto, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, no valor de 15 mil euros, veio inteirinho da Holanda, e foi instalado por uma terapeuta da mesma nacionalidade. Um exemplo de como houve melhorias nos equipamentos e na resposta das instituições à deficiência mental. Afinal, apesar das necessidades serem ainda muitas, já há 30 residências de CERCI pelo país fora. E embora António Matias defenda que seria preciso «fazer um levantamento do número exacto de deficientes a precisar de apoio residencial, para se poder calcular uma estimativa a 30-40 anos», reconhece: «Apesar de tudo, houve muitas melhorias no panorama da saúde mental no nosso país».Reportagem de Katya Delimbeuf (textos) e Tiago Miranda (fotografias)

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Orçamento deficiente



O Estado deu com uma mão e tirou com a outra nas isenções fiscais atribuídas a pessoas portadoras de deficiência. Ou seja, as novas regras definidas pela proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2007 beneficiam as famílias que têm a seu cargo deficientes, ao mesmo tempo que penalizam os deficientes com rendimentos, em particular aqueles que têm salários ou pensões mais elevados. O Governo «apagou» a anterior legislação e estabeleceu que, a partir do próximo ano, os contribuintes deficientes podem abater à colecta três salários mínimos, sendo que as famílias com deficientes a seu cargo podem abater um salário mínimo ao IRS. Até agora, o imposto dos contribuintes com deficiência comprovada igual ou superior a 60% tinha em conta apenas 50% dos seus rendimentos. Segundo os cálculos da Divisão de Consultoria Fiscal da Deloitte, um contribuinte deficiente e solteiro com um rendimento anual de 20 mil euros irá pagar quase dezoito vezes mais de IRS em 2007. Ou seja, em vez dos 177 euros actuais terá que desembolsar 3.163 euros.

A mudança fez estalar a polémica. A oposição e as associações de deficientes caíram em cima do ministro das Finanças, Teixeira dos Santos. E o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, João Amaral Tomaz, foi «obrigado» não só a reunir-se com a direcção da Associação Portuguesa de Deficientes (APD), mas também a justificar esta opção nos meios de comunicação social. Amaral Tomaz defendeu a proposta do Governo alegando que «o tratamento fiscal dado às pessoas com deficiência era injusto e iníquo, uma vez que o sistema dependia dos rendimentos». O que, na prática, implica um benefício fiscal tanto maior, quanto maior for o rendimento. Mas o argumento não convenceu a APD (tem 23 mil associados) que, entretanto, reclamou a suspensão do novo regime até 2008, para ter tempo de debater as alterações com as várias associações que representam os interesses dos deficientes. O presidente da APD, Humberto Santos, concordou com a necessidade de apoiar as famílias com deficientes a cargo, mas lembrou que isso não deve ser à custa dos outros que trabalham.

Por outro lado, a proposta de OE abre caminho à revisão da lista de produtos e ajudas técnicas destinados a deficientes sobre as quais incide uma taxa de IVA reduzida (5%). A secretária de Estado da Reabilitação, Idália Moniz (que participou na reunião com a APD), garantiu que a ideia é tornar menos onerosa a aquisição de utensílios ou aparelhos de uso específico de pessoas com dependência. Neste OE também são anuladas as diferenças progressivas de incapacidade, passando a existir uma única categoria, acima dos 60% de invalidez. Além disso, o Governo anunciou que vai reavaliar os critérios que determinam o grau de deficiência.

Mesmo com estas alterações, o Ministério das Finanças calcula que o apoio fiscal aos deficientes irá custar 159,9 milhões de euros, no próximo ano, mais 9,9 milhões de euros do que em 2006.

Texto de Ana Sofia Santos

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Ajuda de pais



Cercica (Cooperativa de Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados de Cascais), Estoril
R. Principal, n.º 320/320 A, Livramento. Tel. 21 466 15 56
Existe desde 1976 e estende-se por cinco hectares, onde abundam jardins e uma horta com todo o tipo de árvores de fruto. Na Cercica há um Centro de Actividades Ocupacionais (CAO), que funciona das 9h às 17h, para os portadores de deficiência mais profunda; uma piscina nova, aberta à comunidade; um auditório com palco, onde actores dão cursos de teatro; e várias salas para outros cursos, como pintura e dança. O Centro de Formação, que existe desde 1989 e acolhe 82 jovens dos 16 anos em diante, oferece uma diversidade de 18 cursos. «Cozinha, jardinagem, serviço de bar e de lavandaria são os mais procurados, também porque são os que têm maior aceitação do mercado», explica Rosa Neto, directora da Cercica desde sempre. Por isso é que o índice de empregabilidade dos jovens com deficiência que ali fazem cursos de formação é de 50-60%. É claro que há benefícios financeiros para os patrões que os empregam - mas o clima económico do país não está propriamente de feição...
Ao todo, a Cercica apoia 270 jovens, dos zero aos 54 anos. Além da educação especial (dos seis aos 16 anos), da formação profissional (a partir dos 16), do CAO, conta com outra valência preciosa: as residências. Estas nasceram como resposta ao envelhecimento dos pais e às suas angústias face ao futuro dos filhos. Neste momento, a instituição tem três espaços com 16 camas, em São João do Estoril: duas residências para autónomos e outra para deficientes profundos, num total de 36 utentes - entre os quais três órfãos.

Cedema (Centro para Deficientes Mentais Adultos), Lisboa
Zona 2-3 da Ameixoeira.
Tel. 21 759 09 53
Criada em 1982 por um grupo de pais que, «ao ver-se envelhecer, viviam a angústia de não saber com quem e em que condições iriam deixar os filhos», procura prestar apoio sobretudo a deficientes mentais adultos, pois são estes que, a partir de determinada idade, «vão deixando de ter espaço nas instituições». Os utentes da Cedema têm entre 16 e 53 anos. Antigamente, a esperança de vida dos deficientes mentais era mais curta - e por isso não era tão comum os filhos sobreviverem aos seus progenitores. Com o avanço da ciência, muitos mais chegam a adultos - daí o problema colocar-se com outra acuidade.

Foi «por espírito de missão» que Maria Antónia aceitou o convite para presidir à Cedema. Aqui, «todos os funcionários são polivalentes», diz dos vinte que lá trabalham. «A começar por mim». «Muitas vezes lavei os nossos meninos, cozinhei para eles, cortei-lhes o cabelo. Não há frases como ‘esta não é a minha área’. Toda a gente faz tudo. A felicidade deles é a única coisa que nos preocupa», assegura.

Há muitas actividades por onde escolher na Cedema: teatro, natação, golfe, informática, massagens, ginástica, pintura, cerâmica... A instituição tem três valências: o lar, para 12 utentes, onde os meninos ficam quando os pais estão doentes ou precisam de se ausentar; a residência, para seis utentes - «entre os quais se contam já três órfãos»; o Centro de Actividades Ocupacionais (CAO), com 25 utentes durante o dia. E há ainda o apoio domiciliário, que chega a oito pessoas. Neste momento, o projecto mais desejado é a construção de um Lar-residência permanente para 20 utentes e cinco familiares, com o propósito de «garantir o amanhã». Esta preocupação, que não abandona a mente dos pais, seria bastante atenuada com a construção do Lar Telhadinho. Terreno já há, cedido pela Câmara Municipal de Odivelas, e projecto aprovado também - «agora ‘só’ falta o dinheiro para a construção, 1.500.000 euros, já para não falar do equipamento». Uma soma a que a Cedema tenta chegar com iniciativas como o peditório anual, um torneio de golfe, donativos de empresas e particulares, e as quotas dos sócios - 500 -, que pagam 12 euros por ano.

Cercicoa (Cooperação de Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas), Almodôvar
Estrada de São Barnabé.
Tel. 286 660 040
Fundada em 1979, serve 40 utentes e tem várias valências. Para além do CAO e dos cursos de formação, a residência, construída em Outubro de 2004 para 15 camas, está lotada desde então. Esta CERCI abrange quatro concelhos, num raio de 400 km. Tem uma lista de espera de 30 pessoas. «Há pedidos de Braga, de Coimbra, do Porto...», revela António Matias, director, assistente social de formação. A maior procura incide nos «deficientes com cerca de 30 anos, cujos pais já têm muita dificuldade em tomar conta deles. Muitos preferem manter os filhos em casa até poderem. Depois, às vezes, surge uma doença súbita, incapacitante, e inscrevem-nos em todo o lado, desesperados».

A residência é para maiores de 16 anos. Neste momento, dos 15 que lá vivem, o mais velho tem 40 anos, mas a média anda na trintena. Nos critérios de selecção pesam três factores: a ausência de família (Joaquim e Fátima, por exemplo, são órfãos); viver na área de residência abrangida pela CERCI; e frequentar o CAO (o Centro de Actividades Ocupacionais).

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O olhar irmão



Diz Afonso, nove anos: «O meu irmão Henri tem 15 anos e tem trissomia 21. Eu gosto de brincar com ele, principalmente de andar a cavalo e de bicicleta. Não gosto quando repete o que eu digo, nem quando ressona. Também fico irritado quando é teimoso. Penso que quando o Henri crescer vai ter uma vida normal. Ele não gosta muito de estudar e ainda não lê muito bem, por isso acho que pode ser engenheiro agrónomo porque não é um trabalho muito difícil e também porque não tem que fazer muitas contas. Às vezes o Henri faz asneiras. Uma vez pôs um brinquedo eléctrico ligado dentro de um aquário com água. Outra vez partiu-se um espelho dentro da banheira e ele deixou-se ficar lá dentro. Ele não percebe quando corre perigo, e por isso tem que se tomar conta dele».

Este é um dos 38 testemunhos de irmãos de portadores de deficiência, que resultou no livro Crescer com Um Irmão Diferente, a ser lançado no próximo dia 4 de Novembro. Ana Aragão Morais, 43 anos, professora de Inglês e Tradução na Universidade Católica, e Carmo Teixeira Turquin recolheram testemunhos de irmãos de «crianças e jovens com necessidades especiais», com idades dos sete aos 25 anos. A primeira tem um sobrinho com uma deficiência rara, trissomia 8, a segunda é mãe de um menino com trissomia 21. «Em Portugal, as pessoas ainda têm muita dificuldade em lidar com a diferença», partilha Ana Aragão Morais. «Os miúdos são unânimes em dizer que ‘é o olhar dos outros que magoa, o facto de ser visível que as pessoas não sabem o que fazer’».

Com prefácio do neuropediatra Nuno Lobo Antunes, director clínico do Cadin (Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil, em Cascais), o livro é dedicado «a todas as irmãs e irmãos das 100 mil crianças com problemas de desenvolvimento em Portugal», «pois quando numa família há um filho com necessidades especiais, os outros filhos também têm necessidades especiais».

Diz Constança, 14 anos: «O meu irmão é diferente pois é anormalmente meigo, anormalmente querido e anormalmente sensível... Infelizmente ainda não conheci muita gente com as características que ele tem».

 


     

 



Nome: Tchipinda
Idade: 29 anos
Residência: Vive há um ano na residência dos autónomos da Cercica. Vários cursos de formação (horticultura, apoio domiciliário)
Profissão: Assistente de apoio domiciliário desde 1997. Entrega 50 refeições por dia

 



Nome: Bruno Candeias
Idade: 24 anos
Residência: Vive há quatro anos na residência da Cercica, onde fez o curso de jardinagem e de apoio domiciliário
Profissão: Trabalha numa empresa de embalagem de bolos há sete meses

 



Nome: Filipe Serpa
Idade: 23 anos
Residência: Casa dos pais
Formação: Curso de 4 anos de canicultura na Cercica
Profissão: «Part-time» (14h às 17h) no El Corte Inglès da Beloura. Trabalha no departamento de reposição de «stock»

 



IVAN (na cadeira de rodas) na aula de hipoterapia, que estimula a coordenação motora e o equilíbrio

 



LISETE, 28 anos, surda-muda, dá vida a um coração de esferovite na aula de artes manuais

 



VERA e Ana Teresa adoram dançar na hora livre a seguir ao almoço (Cedema)

 



ANDRÉ oferece-nos um desenho, à saída da aula de informática. «Esta é a minha família», diz

 



VITÓ, 51 anos, e Francisco, órfãos, à porta dos quartos, na residência da Cedema