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ÚNICA Nº 1813 - 28 Julho 2007

Vidas a prazo
 
Quase um milhão de pessoas no nosso país trabalha a recibos verdes. O instrumento pontual que surgiu nos anos 90 e se tornou regra para benefício dos patrões tem uma única garantia: a ausência total de direitos. Este verdadeiro exército de recibos verdes encontra-se em todas as áreas da sociedade, vive amarrado ao dia-a-dia e tem como horizonte apenas o mês seguinte. Retrato de um universo onde só há «flexi» e nenhuma «segurança»

Textos de Katya Delimbeuf
Fotografias de Tiago Miranda

JOANA MOUTA
 
28 anos, trabalha no Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), num Centro de Novas Oportunidades A recibos há 3 anos

«Que moral tem o IEFP - o Instituto do Emprego - para ter imensas pessoas a recibos?»

A maioria dos meus dias são ocupados a ouvir histórias de outros. Auxilio na procura de sentimentos, expressões, na elaboração de sensações de insatisfação, de revolta, de regozijo, de inquietação. Colamos fotografias, legendamos dias e momentos significativos. Procuro estar verdadeiramente atenta às outras histórias camuflando a minha própria, os meus desconcertos e perplexidades. No final do mês passo o recibo. É esta a rotina. Sistemática.»Joana Mouta trabalha num Centro de Novas Oportunidades, uma das grandes bandeiras do governo Sócrates, onde integra uma equipa de 14 pessoas - «todas a recibos verdes e algumas já a caminho dos 40 anos». A chefe de Joana, a quem perguntou se podia dar o testemunho sem sofrer represálias, garantiu-lhe que se fosse ela «fazia o mesmo». Desde o início da sua actividade profissional, já lá vão seis anos, «mais de três foram a recibos verdes». «Durante os primeiros dias do mês sinto-me apreensiva: o pagamento à Segurança Social, a prestação da casa, as outras contas, reservar dinheiro para o IVA, o Plano Poupança Reforma, o seguro de saúde, porque sou uma trabalhadora independente. E se o pagamento não chega a tempo? E quando não chega a tempo? Remeto-me ao silêncio, encolho os ombros e agradeço aos meus pais com um abraço sincero.»

«Custa-me muito pagar Segurança Social, porque são 200 euros que não utilizo. Afinal, se preciso de ir ao médico, utilizo o meu plano de saúde. Como trabalhadora independente, tenho possibilidade de gerir o meu horário com maior flexibilidade mas isso não me dá uma sensação de maior liberdade. Tenho receio, não sei o que pode acontecer a cada final de contrato de prestação de serviços. Não sei se terei condições para ir de férias. E se acontece algum imprevisto? Os projectos, simples, vão sendo adiados, protelados. Os outros, de maior envergadura, repousam pacientemente no meu imaginário. Sonho, então, com a casa de que gostaria, a formação que desejaria, como um mestrado em Santiago de Compostela... talvez um dia. E resigno-me.»

Termina com as seguintes interrogações: «Não é irónico que estejamos diariamente empenhados nas histórias de outras pessoas, em termos de empregabilidade, e que depois ninguém ligue à nossa história? Que moral tem o IEFP - que é o Instituto do Emprego - para ter imensas pessoas a recibos?» Quem saiba que responda.

Professor universitário no Banco Alimentar

O homem, de meia idade, era bem-parecido. Ar distinto, fato e gravata, professor universitário, respeitado por todos. Dava aulas numa faculdade privada há doze anos, quando um dia foi «dispensado». Havia, no entanto, um «se». Apesar de cumprir as funções de docente de forma continuada, o professor tinha um contrato de prestação de serviços. Estava a recibos verdes, e isso significa não ter direito a subsídio de desemprego, doença ou reforma. Quando este homem bem parecido entrou no gabinete do advogado Garcia Pereira, especialista em Direito do Trabalho, a causa apresentava-se clara como água. Havia ali um contrato de trabalho dissimulado e nenhum tribunal iria dizer o contrário. O caso entrou na justiça que, de facto, deu razão ao professor universitário. Mas 10 anos depois. Nesses 10 anos, Joaquim Silva Pereira tinha-se transformado noutra pessoa, profundamente triste, profundamente desamparada. Sem fonte de rendimento nem rede social de qualquer espécie, este homem só não morreu de fome porque o Banco Alimentar lhe garantia as refeições. O professor universitário, com mestrado, passou da capital do país para um casebre emprestado, sem electricidade, num descampado nos arredores de Coimbra.

Isto aconteceu em 1991. Poderia crer-se que, 16 anos mais tarde, o estado de coisas teria melhorado em Portugal, que conheceu o crescimento económico e um sem-número de fundos estruturais da União Europeia. Mas a averiguar pela avalanche de «e-mails» e telefonemas recebidos no decurso deste trabalho, não é essa, infelizmente, a conclusão. Trabalhadores de câmaras municipais avençados há dez anos e despedidos com a nova transição de mandato político, telefonistas de 50 anos dispensadas de um dia para o outro após uma dezena de anos de casa, até grávidas são mandadas embora neste mundo a recibos verdes, onde se encontram todas as profissões, de biólogos e engenheiros ambientais do Instituto de Conservação da Natureza a arquitectos, professores, «designers», jornalistas, tradutores, contabilistas, gente da cultura e do espectáculo...

Mais difícil foi conseguir que estas pessoas dessem a cara. A resposta mais ouvida era que gostariam muito de denunciar a situação, que sentiam imensa revolta, mas que testemunhar era assinar uma sentença de despedimento, e precisavam daquele emprego para viver. As histórias que lhe contamos são, portanto, uma ínfima selecção dos casos que nos surgiram. Mas são representativas de milhares de pessoas impedidas de se autonomizarem dos pais, de constituir família, de comprar casa, de ter auxílio na doença, de poder respirar fundo ao fim de um dia de trabalho por saberem que os descontos obrigatórios que todos os meses lhes saem do bolso servirão para alguma coisa. A esta camada crescente da população, que dificilmente ajudará na renovação das gerações, o que diz o Estado?

Garcia Pereira nunca mais esqueceu o olhar «aterradoramente triste» daquele homem de ar respeitável, a quem o país desamparou. «Hoje, este homem é uma sombra do que foi. Parece vinte anos mais velho, sofreu dois ataques cardíacos. Nada pode compensar aquilo por que passou.» O «Expresso» tentou, ao longo de mês e meio, fotografá-lo, mas os problemas cardíacos que o mantiveram nos Cuidados Intensivos do Hospital de Coimbra impossibilitaram-nos de o fazer.

Quase um milhão a recibos

Foi no início dos anos 90 que os primeiros casos de falsos recibos verdes (um trabalhador que cumpre as mesmas funções dum empregado por conta de outrem, com horário, hierarquia e posto de trabalho) começaram a surgir. Hoje, assiste-se a novas tentativas de dissimulação do fenómeno, como a constituição de empresas subcontratadas para prestar serviços. O jornal «Público» de 30 de Maio assegurava que há 883.600 trabalhadores a recibo verde no nosso país - o que representa mais do que a Função Pública (que tinha 580.291 funcionários em 2006). O INE não tem um método directo de apuramento de trabalhadores a recibos, mas adianta dados que permitem fazer contas: no 1.º trimestre de 2007, 646.700 pessoas tinham contrato de trabalho a termo, 188.700 contratos de prestação de serviços, e 66.100 pessoas estavam em subemprego visível. O que dá um total de 901 mil trabalhadores a recibo.

O sociólogo do ISCTE Rui Pena Pires aponta dados do Eurostat para ilustrar o caso português: «Enquanto a média europeia de auto-emprego em países desenvolvidos como a Suécia ou a Dinamarca é de 5, 7%, Portugal tem uma percentagem de trabalhadores por conta própria de 25%.» Isto não significa que haja mais empreendedores ou empresários em Portugal, significa é que há «um sistema de emprego informal completamente desregulado, a par de outro sistema formal muito rígido», aponta. As consequências sociais mais evidentes são «a imigração de jovens e pessoas qualificadas, a não renovação de gerações e o adiamento de decisões importantes na vida de um adulto».

No século XXI, em Portugal, «continua a praticar-se ‘dumping social’», denuncia Garcia Pereira. «Os trabalhadores a recibo verde são mão-de-obra dócil e barata. Não têm quaisquer custos para o empregador e não têm qualquer direito. Além disso, têm uma dupla tragédia em cima: se são despedidos ficam sem o seu salário e sem direitos sociais.» Quanto à Inspecção Geral de Trabalho, que tem por papel fiscalizar casos de fraude, a sua actuação é manifestamente insuficiente. Segundo o advogado: «A OIT (Organização Internacional de Trabalho) recomendou que Portugal tivesse 750 inspectores no quadro. Neste momento, temos 252 inspectores para todo o país. Há uma total incapacidade de resposta.» «A prosseguirmos por este caminho, o desastre é total. A lógica de que trabalhadores desmotivados e receosos são melhores é um disparate pegado», conclui.

JOANA ALCOFORADO PINA DA SILVA

«Designer», 31 anos 3 anos a recibos na EURO-RSCG, despedida durante a licença de maternidade

«Vi colegas a recibos verdes serem despedidos de um dia para o outro, sem justa causa»
 
Feliz e sorridente no seu andarilho, Tomás, um ano de idade e enormes olhos azuis, roda pela sala toda, a espalhar charme e a receber lambidelas dos dois Labradores da casa. Nem sonha, na sua inocência, que foi ele quem desencadeou o despedimento da mãe, Joana Pina da Silva, «designer» de interiores numa grande empresa de comunicação e «design», a EURO RSCG. Há três anos, entrou para o departamento de arquitectura a recibos verdes, com a perspectiva de que a situação mudasse. Nunca mudou. «Das cerca de 150 pessoas que trabalham na EURO portuguesa, 40 estão a recibos», diz. Apesar disso, Joana nunca presenciou uma única Inspecção de Trabalho no tempo em que lá esteve.

Noitadas, fins-de-semana e dias de 10 horas de trabalho eram considerados normais na agência. Há dois anos, Joana casou e, passado uns meses, engravidou. Após uma pequena hemorragia, no início da gravidez, numa deslocação a uma obra, Joana falou com o seu director para saber se podia estar mais tempo no escritório e deslocar-se menos a vários pontos do país. O trabalho amainou durante um tempo, até voltar a intensificar-se. Perdeu a conta às vezes que ouviu a frase «gravidez não é doença». Trabalhava à hora de almoço, com o «stress» adicional que isso lhe causava, por saber que tinha de se alimentar.

Até que às 29 semanas, teve uma hemorragia maior e foi parar ao hospital. «Tive um descolamento de placenta, e recomendaram-me descanso absoluto. Fiquei internada. Disseram-me que teria de ficar até às 34 semanas». Joana meteu baixa, e passados 15 dias, teve o bebé.

O Tomás nasceu com 1,390 kg e 38 cm. «Os médicos disseram-me que a partir dos 6 meses de gestação, ele deixou de se desenvolver.» Hoje, está segura de que o stress e o excesso de trabalho estiveram na origem de o Tomás se ter desenvolvido tão pouco. «Se fosse hoje, teria metido baixa mal comecei a sentir-me muito cansada», diz.

Três meses passados sobre o início da licença de parto, recebeu um telefonema da secretária do director, para marcar uma conversa. Sem suspeitar que a pudessem dispensar a meio da licença, foi à reunião, onde o director lhe disse: «Tenho muita pena, mas já não tenho trabalho para si». Sem mais. Na sua antiga secretária, estava já sentado um rapaz. Quando conseguiu finalmente falar com o seu chefe directo, ele argumentou: «Veja o lado positivo: agora vai ter todo o tempo do mundo para dedicar ao seu filho...»

Sentiu uma revolta enorme. Chorou. Sabe que não foi a única grávida despedida. «Tive colegas a recibos despedidos de um dia para o outro, sem justa causa», afiança. O marido, advogado e docente de Direito do Trabalho, apresentou uma queixa detalhada à Inspecção-Geral de Trabalho. A resposta, passados dois meses, surgiu negativa: «Como a cessação da actividade já tinha ocorrido, restava agora recorrer para tribunal...» É o que o casal vai fazer.Contactada pelo «Expresso», a EURO RSCG, pela voz do responsável do departamento de arquitectura e design, Eugénio Chorão, garante que Joana não passou de uma mera prestadora de serviços, entre muitas outras, e não sabe em que momento «deixou de haver trabalho para ela».

ANTÓNIO COSTA

 Camaraman, 45 anos, pai de 2 filhos A recibos há 18 anos

«Gostava de ter os mesmos direitos que os outros. Se eu falhar, tudo falha em casa. Tudo cai como um baralho de cartas»
 
Aos 45 anos, António Costa não sabe o que é um contrato, um subsídio de férias, um subsídio de Natal. E isso não quer dizer que ele não seja bom profissional. Quer dizer que no seu sector, das artes e dos espectáculos, não há regulação nenhuma. Foi por isso que a Plataforma dos Intermitentes - composta por profissionais do espectáculo e do audiovisual (actores, músicos, bailarinos, iluminadores, sonoplastas, artistas de circo...) - apresentaram uma petição à Assembleia da República pedindo uma regulamentação do sector. Porque «um profissional intermitente não é um trabalhador independente», quatro mil pessoas uniram-se para explicar que quando se trabalha alguns meses no ano, de forma descontinuada, mas com horários e chefias, não se pode ser tratado como um profissional liberal, e não se pode, por exemplo, descontar para a Segurança Social em meses em que não se ganha. A proposta de lei foi aprovada pela Assembleia na generalidade, e aguarda a discussão na especialidade.

O «cameraman» e vice-presidente da Associação da Imagem garante que estes profissionais estão completamente despidos de direitos sociais. «Todas as pessoas que conheço, dos 20 aos 65 anos, estão a recibos», afirma. Para ele e para a mulher, secretária, também a recibos verdes, a vida é tudo menos fácil e receiam pelos filhos, de 12 e nove anos. Muitas vezes é complicado passar tempo com os miúdos, pois António está sempre envolvido em inúmeras actividades para tentar assegurar que se o dinheiro falhar de um lado, entra por outro.

«Cameraman» desde 1989, quando António não está a filmar - longas-metragens ou publicidade -, dá aulas de formação, seminários práticos de direcção de fotografia e cinema. Tem ainda uma pequena loja com consumíveis para câmaras. E mesmo assim, há meses em que não leva dinheiro para casa. «Às vezes, o dinheiro não entra todos os meses e também nunca se sabe quando se vai receber... Então, tem de se pedir crédito, ao banco, aos pais, reduzir custos, encostar o carro.»

Em 19 anos de trabalho, teve dois ou três períodos mais agudos, em que esteve três meses sem ganhar. «É uma ginástica terrível», diz. «Cada mês é um mês. Não tenho nenhuma reserva. Este ano, por exemplo, a minha filha não foi para a natação.» E esteve um ano com a Segurança Social em atraso. «Não consigo pagar.» As férias são «duas semanas no Algarve, ou ‘corridas’ a cidades europeias, com os miúdos. E não se consegue ter dinheiro para esses ‘luxos’», diz. A saúde é uma das coisas que mais o preocupam. «Quem não tem possibilidade de ter um seguro como é que faz?» E recorda um amigo, Vítor Nobre, colega de 44 anos que esteve doente e teve de ser operado a um tumor na cabeça, sem direito a subsídio de doença... Mas, sublinha, existem outros sistemas: «Em Espanha há sistemas mistos. Em França, Alemanha ou Norte da Europa os profissionais do espectáculo têm os mesmos benefícios que os outros trabalhadores.» Só no Canadá, onde trabalhou dos 21 aos 27 anos, como técnico de laboratório de fotografia e cinema, António teve a Segurança Social paga pelos empregadores.

«É óbvio que me sinto revoltado, injustiçado. Gostava de ter os mesmos direitos que os outros. Se eu falhar, tudo falha em casa. Tudo cai como um baralho de cartas.»


SÍLVIA DUARTE

29 anos, professora de francês e inglês A recibos há 4 anos

«Nem sonho em ter filhos. Posso dizer que abdiquei de ter vida pessoal. Não tenho estabilidade nenhuma»
 
Ser professor em Portugal é, hoje, uma profissão de risco. Implica doses gigantescas de amor à camisola, colheradas generosas de paciência e um bom litro de capacidade de encaixe para fazer de conta que não está a ser tomado por parvo. Além disso, é quase impossível não se fazer voto de pobreza, como São Francisco. Que o diga Sílvia Duarte, 29 anos, professora há cinco, quatro dos quais a recibo. Este é o primeiro ano a contrato, com «seis horas por semana». No fim do período lectivo, não sabe ao que voltará.

«Rende mais estar em casa desempregada do que a recibos. Não compensa por causa da Segurança Social, do IRS...», confessa esta jovem idealista, que transborda amor à causa. O ano passado foi aquele em que teve mais trabalho, mas também o mais complicado financeiramente, por causa dos descontos e das despesas, nomeadamente em deslocações. Dava aulas em três escolas diferentes: numa cooperativa em Sacavém, numa escola pública em Cascais e numa empresa de Actividades de Enriquecimento Curricular (AEC) na Brandoa. Todos os dias saía de casa às 7h30 da manhã e voltava às 21h30. Ganhava 1.200 euros brutos e tirando os 142 para a Segurança Social, 20% de IRS, a gasolina das deslocações e a alimentação diária, não sobrava quase nada.

Acresce que, segundo ela, «há uma série de novas situações altamente irregulares na Educação». No ano passado, com a criação das AECs, «os professores passaram a ser subcontratados por empresas privadas, por sua vez contratadas pelas autarquias ou Associações de Pais», conta. Resultado: os professores têm de assinar contratos de prestação de serviços, ficando a recibos verdes, apesar de serem funcionários do Estado. As empresas recebem por cabeça (por aluno), e os professores à hora. Sendo que os preços variam entre os três e os 16 euros à hora, porque não há tabelas...! Mais: «Quando um professor falta, mesmo por doença, além da empresa lhe descontar o dia, este tem de a indemnizar...» Sílvia considera que, além do mais, este é um exemplo de má gestão: «O ministério lucrava mais em pagar-nos directamente em vez de pagar às empresas que nos contratam para as AECs.»

A professora já assistiu a outras situações de injustiça gritante. «Há um colégio privado muito perto de Lisboa em que todos os professores estão a recibos. E o director paga valores diferentes a professores com as mesmas funções, conforme simpatiza com eles...», garante. «O ano passado trabalhei para a mesma escola a recibos e a contrato. Fiz queixa à Inspecção-Geral de Trabalho, que foi lá mas não aconteceu nada.»

Sílvia Duarte sente «uma grande revolta» por o Estado não lhe dar condições para trabalhar. No entanto, não pensa mudar de profissão, apesar de psicologicamente se gerarem «altos e baixos». «Em determinadas escolas, vivemos aterrorizados. Porque a recibos podemos vir para a rua de um momento para o outro. Mas depois olha-se para uma turma e vão buscar-se forças não se sabe onde», confessa.

Vive com a ajuda dos pais - «de outro modo, não seria possível». Nem sonha ter filhos. «Posso dizer que abdiquei de ter vida pessoal. Optei pela minha profissão, e não tenho estabilidade nenhuma. Acabamos por ir fazendo aquilo que aparece.»


ANTÓNIO PEDRO VASQUES

Músico, 37 anos, pai de dois filhos A recibos há 9 anos

«Os artistas deste país são sobreviventes. Daí que a primeira pergunta seja ‘Tens trabalho?’ e não ‘O que andas a fazer?’»
 
Foi preciso viver em Portugal para António Pedro descobrir o que era trabalhar a recibos verdes. Desde 1998 que é esse o vínculo deste músico (compositor, baterista e percussionista) na sua actividade. Em Macau, onde viveu vários anos, o sociólogo de formação foi jornalista (a contrato) e chegou a ser funcionário público. Conheceu, portanto, todas as regalias a que alguns têm direito. «Aí, pagavam-me para não trabalhar», assegura. Mas António nunca teve feitio para não fazer nada, e «tinha o sonho de fazer cinema e música». Por isso, despediu-se e realizou uma média-metragem - O Homem da Bicicleta -, sobre a vida em Macau, que estreou em 1997. Ao voltar para Portugal, em 1998, recorda que «já na altura havia muita gente talentosa, na área do cinema, a viver em casa dos pais aos 40 anos, às vezes há dez anos à espera de um subsídio, sem realizar». Decidiu enveredar pela música.

Apanhou os bons ventos da Expo 98 e foi músico dos Olharapos. «Os artistas estão habituados a esta vida louca de nunca saber quanto é que se vai ganhar ou quando se vai receber - o que funciona enquanto não há obrigações, família, filhos... Depois, é preciso haver um planeamento a longo prazo.»

António tem um caderninho com as perspectivas para o ano inteiro, os agendamentos dos espectáculos e as previsões de entradas de dinheiro. Nos meses em que se pode ler zero na entrada de capital era o pai, jurista, que tinha de o «safar». Fazia-lhe muita confusão a instabilidade profissional do filho. António considera: «Os artistas deste país são sobreviventes. Daí que a primeira pergunta que fazem quando se vêem é ‘Tens trabalho?’, em vez de ‘O que andas a fazer?’ Conheço actores que entram em novelas mas odeiam o que fazem e nem vêem o seu trabalho, mas fazem-no porque têm de ganhar a vida».

António passou a ter outra visão da situação quando, entre 2002 e 2005, se torna «semi-emigrante», vivendo entre Portugal e a Bélgica por causa de um projecto do CCB. E enquanto cá vivia um período muito complicado «a ganhar 200 euros por mês», na Bélgica teve logo «imensas solicitações». É um universo novo que se abre para ele, pujante, com uma rede social inteiramente diferente. «Na Bélgica, a cada dia que um artista não trabalha, recebe uma quantia do Estado. Tem sempre um mínimo assegurado, de 800 a 1.000 euros, para além de subsídio de saúde...» Cá, em 2003, António deslocou um ombro, esteve um mês e meio sem tocar e não recebeu nada, nem teve direito a baixa. «E no dia em que o meu primeiro filho nasceu, faltei a uma acção e não recebi esse dia. Fui multado por ter um filho...»

Na Bélgica conheceu a actual companheira, uma canadiana encenadora e argumentista de quem tem um filho pequeno. Para ela, o sistema de protecção social português é «uma selvajaria». António continua: «Não posso estar doente. Tenho há quatro cinco anos assente no meu caderno que tenho de fazer um seguro de saúde, mas ainda não consegui.» Confessa que empresta dinheiro a amigos que precisam - «somos a rede social uns dos outros» -, e cede a sua casa muitas vezes. Quanto a férias, um amigo costuma dizer-lhe que «músico não tem férias». Outro amigo afirma «que espera morrer antes de precisar da reforma».


LARA SILVA

37 anos, jornalista 12 anos a recibos

«Só quando engravidei, após 10 anos a recibos verdes, comecei a achar que tinha os mesmos direitos dos outros»
 
Falando com ela, é evidente que Lara não guarda mágoa nem ressentimento. Nota-se nela a criatividade e a liberdade que a fizeram criar uma marca, «Lara Crafts», de objectos que lhe nascem das mãos e que vende em feiras. A actual «artesã», como gosta de se pensar, foi jornalista 15 anos - a maior parte da vida. Dá a cara por saber que o jornalismo é uma das áreas onde mais se banalizou o uso do recibo verde, de forma continuada. Ela que o diga. Foi jornalista do «Público» 12 anos, sempre a recibos. Independentemente de ter «secretária, computador, extensão telefónica, ordens de um superior e, sobretudo, uma função diária no jornal, com horário e cargo».

Lara Silva começou a trabalhar no diário em Fevereiro de 1992, na função de piquete. Entrava às 20h30 todas as noites, e saía quando o jornal fechava, de madrugada. «O piquete é a pessoa que recolhe toda a informação de última hora e vê se vale a pena cobrir aquela história», explica. Depois, começou a acumular essa função com a de secretariado-geral. «Entrava às 11h30 da manhã, era secretária até às 20h30, e depois encadeava no piquete, até às horas que fosse preciso.» Teve dias de 14 horas de trabalho durante dois, três anos.

Construiu o seu círculo social no jornal, foi tratada como sendo «da casa», acarinhada pelos colegas. Conheceu, também no diário, aquele que veio a ser o seu marido, Pedro, «designer» gráfico.

Durante muito tempo, Lara não protestou por estar a recibos. Não era da natureza dela arranjar conflitos, a segurança material também não era o seu principal valor, e nunca encostou ninguém à parede. Apesar de reconhecer que uma pessoa se sente «mal, como um ‘outsider’, ao trabalhar com amor para uma casa e não ser reconhecido como tal».

O problema surge para Lara apenas quando engravida, em 2002, e começa a ver as coisas «de outra maneira». «Comecei a achar que tinha direitos, os mesmos direitos dos outros, como o subsídio de maternidade.» Mas foi preciso o marido, que se tornara editor, denunciar a situação numa reunião a nível nacional para que algo mudasse. «Vocês não sabem o que é deitarem-se todas as noites com uma pessoa que não se sente apreciada», disse, consciente da incomodidade das suas declarações. Um superior garantiu-lhe que desconhecia a situação, e um ano mais tarde, Lara passou ao quadro do jornal. Ficou dois anos. Até ao dia em que lhe propuseram abandonar o trabalho que tinha desenvolvido ao longo de 12 anos e ir fazer algo totalmente diferente, a agenda. Sentiu-se injustiçada, saiu do jornal lavada em lágrimas, meteu baixa para pensar. «Percebi que não conseguiria voltar a sentir-me bem ali.»

Foi então que nasceu a «Lara Crafts», a marca de artesanato e «coisas de mãos», e as oficinas para crianças. Para ela, é óbvio que só pode fazer isto porque o marido ganha «um salário certo ao fim do mês». De outro modo, não seria possível fazer face às despesas, educar uma filha. Mas Lara esforça-se por ver o lado positivo das coisas. «Às vezes, há males que vêm por bem», afirma. «Perdes capacidade financeira, mas ganhas qualidade de vida. Tens mais tempo para a tua família.»

RICARDO MORENO

Manipulador de bonecos no Contra-Informação, 33 anos 9 anos a recibo


«Anda muita gente a sugar o futuro desta geração. Sinto-me um imigrante no meu país. Assim não vamos lá»
 
Quem se diverte a ver o Contra-Informação, não sonha a tensão que ia na Mandala (empresa responsável pelo programa) em Fevereiro do ano passado. Pinto da Costa e José Alberto Carvalho, dois dos bonecos que Ricardo Moreno manipulava, também não suspeitavam. Tinham passado uns meses desde que dez manipuladores que ali trabalhavam há anos apresentaram uma carta reivindicativa dos seus direitos. «Os abusos estavam a ser por demais», garante Ricardo. Trabalhou para a Mandala nove anos, desde os 22, sempre a recibos verdes - sem segurança social paga, subsídios de doença, férias ou de Natal. Como ele, todos os colegas. Acrescia que naquela altura havia muito trabalho extra que eram obrigados a fazer, sob pena de se ser «suspenso oito dias». «A empresa exigia disponibilidade total sem contrapartidas. Cheguei a ver descontado 50% do ‘cachet’ diário por chegar três minutos atrasado», denuncia.

O clima «de cortar à faca» que se instalou deu lugar à dispensa de oito manipuladores. Os outros dois subscritores da carta reivindicativa recuaram.

«Cheguei a ser convidado pela Mandala para criar uma empresa dentro da empresa e trabalhar em 'outsourcing'», conta sobre aquele que é hoje um dos métodos mais utilizados pelos empregadores para disfarçar necessidades permanentes de trabalhadores.

Não é que Ricardo levasse uma vida má - «Tinha casa alugada em Cascais, com vista para o mar...» -, mas a preocupação com o futuro, «filhos, comprar casa...», fê-lo tomar uma atitude. «Ali estava eu com 30 anos, uma vida porreira, mas e um dia, se houvesse um azar?», questiona. «As pessoas que estão a recibo verde vivem uma ilusão: são tratadas como burros com uma cenoura à frente...» Hoje, divide uma casa alugada em Carnide com a namorada. Dá aulas de guitarra numa escola em Mafra (é guitarrista da banda Além Mar, que se prepara para regressar ao activo). «Tive de me adaptar.» Confessa que vive com ajudas: «Se não fosse a família estava feito ao bife...»

Ele e os sete colegas puseram uma acção em tribunal, que ainda não chegou a um término. Nos meses seguintes à divulgação do assunto, em Novembro de 2005, o director da Mandala, a directora financeira e a produtora demitiram-se. Em Setembro, Ricardo tinha feito uma queixa à Inspecção-Geral de Trabalho, que lá foi dois meses mais tarde e concluiu que havia de facto situações irregulares. A IGT multou a Mandala em 7500 euros. «Pouco pelo trabalho de oito pessoas a trabalhar 10 anos em situação ilegal...!», revolta-se. «Isso é um valor irrisório para uma empresa daquela dimensão!»

Moreno vai mais longe: «A culpa deste país estar como está em relação aos recibos verdes é da inércia da IGT. Muita gente anda a sugar o futuro desta geração. Não nos dão possibilidade de assentar. Parece que tem de se pagar para se fazer o que se gosta. Portugal está uma nova colónia. Sinto-me um imigrante no meu país. Assim não vamos a lado nenhum.»

ANA CAETANO

Psicóloga, 34 anos, há 5 a recibos

«Dar estrutura sem a ter»

Aos psicólogos pede-se-lhes que dêem estrutura a quem os procura e que previnam os problemas de amanhã. Na verdade, 90% dos 10.000 psicólogos a exercer em Portugal trabalham a recibos verdes, o que a nível de estabilidade dá aquilo que se sabe (os felizes 10% com direito a contrato encontram-se em empresas, normalmente multinacionais). E no entanto, o grau de tranquilidade na voz de Ana não denuncia qualquer traço de revolta. Ela foca-se sempre nos recursos, e diante de um copo com água vê sempre a metade cheia, e não a vazia. No entanto, não lhe faltam razões de queixa. Este ano, pela primeira vez, o corpo deu sinal de precisar de atenção e ela não teve resposta para lhe dar. «Tive um esgotamento, por excesso de trabalho. A médica que me atendeu disse-me que eu tinha de meter baixa e eu respondi-lhe que estava a recibos verdes e isso não existia. Ela ficou em silêncio e receitou-me medicamentos de SOS.»

Ana esteve oito meses em baixo. Teve de falar com o director da escola, que não percebia porque é que ela ia para lá doente. Quando leu uma notícia sobre a fiscalização das baixas, cuja percentagem de fraude era enorme, lembra-se da revolta que sentiu... «O que eu não dava por uma baixa... Paga o justo pelo pecador».
Trabalha cerca de 50 horas por semana. Faz clínica privada, dá formação em psicologia a técnicos, integra um projecto – um Plano de Intervenção Primária – da junta de freguesia de Massamá (uma das mais populosas da Grande Lisboa), cujo objectivo é «actuar antes que os problemas se instalem». Todos os anos, o projecto é resumido num relatório, e posto à prova, para renovação. Tem sido sempre considerado necessário. Depois do susto do esgotamento, Ana ganhou noção das suas limitações. Poupa-se mais. E poupa mais. Adquiriu um PPR. Quer ter um seguro de saúde. Vive numa casa alugada – «nem sonho em comprar casa». Consegue ter 15 dias de férias por ano. E há outros sacrifícios pessoais, mais importantes: «Eu decidi não ter filhos. Mas tenho colegas que querem ter e adiam porque não podem».


Existem 10.000 psicólogos em Portugal – o rácio certo recomendado pela OMS, um por cada 1000 habitantes. A lei prevê que todas as escolas tenham um serviço de psicologia. Mas as últimas contratações aconteceram em 1999. «A administração pública não contrata, ponto», afirma. Nas prisões, nas escolas, nos projectos, os restantes 90% estão a recibos verdes. De vez em quando, há uma excepção. «No outro dia, uma colega minha, que era paga com o dinheiro do poli-desportivo da escola onde trabalhava, entrou para o quadro. E nós fizemos uma festa.» Ana tem uma explicação para a situação: «Os benefícios sociais de um psicólogo ainda não são visíveis. Este ainda é visto como um luxo». Mas acredita que Portugal já está a pagar muito alto a factura da falta de psicólogos: o abandono escolar, as baixas prolongadas, as pessoas sem vontade de trabalhar... «No outro dia, ouvi o Presidente da Siemens dizer que o problema de Portugal é um problema de atitude psicológica – as pessoas não se sentem motivadas, capazes. Nos EUA, onde fui a uma conferência há tempos, vigora o paradigma dos 3 P: 'People, Profit & Planet'. Não é um acaso as pessoas virem em primeiro. Será que é descobrir a pólvora que um funcionário desmotivado e infeliz é pior funcionário?.»


A psicologia depara-se ainda com um problema adicional, que desregula por completo o mercado: os voluntários. Muitos, para fazer currículo ou não estarem sem fazer nada, trabalham gratuitamente, com as implicações daí decorrentes. «Há 2 anos, apesar de não haver um único psicólogo no quadro do Hospital de Santa Maria, havia 20 psicólogos estagiários a trabalharem gratuitamente», afirma. E afinal como é que se pode dar estrutura a outros não a tendo? «Temos que nos pensar como maratonistas», responde Ana. «Há alturas em que só se podem dar os serviços mínimos». Conta que há um ano atrás tinha um discurso muito mais cínico. «Cheguei a ver um emprego em Inglaterra em que ganhava mais a limpar quartos de um hotel do que como psicóloga cá.» Hoje, prefere lembrar a frase de um amigo: "É preciso lidar com aquilo que há, e não perder a força para lutar pelo que devia ser". Considera que "os Portugueses mais depressa fogem do que lutam." Por isso, acha que "Vamos continuar a aguentar. Os que podem vão ir embora. Mas estas tensões acumuladas vão rebentar um dia – apesar dos brandos costumes."


MARGARIDA PINHO

Arquitecta, 24 anos, há um ano a recibos

«Vivemos todos em ‘paitrocínio‘»

Foi a profissão em que se revelou mais difícil encontrar alguém que desse a cara. Apesar de 90% dos arquitectos estarem a recibos verdes, «como o meio é muito pequeno e toda a gente se conhece, as pessoas têm medo de dar a cara, explica Margarida». Gui, como lhe chamam os amigos, não tem medo. E sabe que o que não falta no país são arquitectos há dez anos a recibos, sem direito a nada. É também por eles que fala. Politicamente activa, acha que se reivindicar os seus direitos, nunca nada irá mudar.


Gui tem a sua explicação própria para o fenómeno: segundo ela, os arquitectos sofrem de um "complexo de culpa". «Somos todos de classe média, vivemos todos com ajudas dos pais, e os pais vão sustentando...» Além disso, como o «sr. arquitecto» ainda tem muito peso social, e foi sempre uma profissão liberal, há um certo «orgulho» – apesar de 70% serem empregada por conta de outrém. Margarida considera que «neste momento o direito ao trabalho é encarado como uma benesse.


Deixou de ser visto como um direito». E conta as dezenas de telefonemas que recebeu, acabada de saír da prestigiada Faculdade do Porto, para fazer o estágio profissional. Terminavam sempre com o seguinte «problema técnico": 'olhe, desculpe, mas não lhe vamos poder pagar». À resposta de Margarida que 'não trabalhava para aquecer' sucedia-se um «mas vai ser muito difícil arranjar um estágio em que lhe paguem...»
A sua persistência deu frutos, e Gui encontrou estágio remunerado num atelier, mas também acordou para a cruel realidade desse mundo: «O recibo verde está a substituir o contrato de trabalho, sem qualquer opção. Não conheço uma única pessoa num atelier a contrato. É a total perda de direitos. Não há férias pagas. Todos os direitos conquistados no século XIX estão a ser perdidos», constata. Aquilo que a tira mesmo do sério é ver a «passividade dos colegas», que perante a sua situação, ainda respondem: «Há muita gente pior...»


«A maior parte dos arquitectos entre os 25 e os 35 anos ganha €5/6 por hora. Conheço gente a ganhar €300», garante. «A média ganha €800 brutos. Tira-se a segurança social, o IRS, o IVA, e percebe-se que ninguém vive sozinho sem a ajuda dos pais...» É a essa triste conclusão que também ela chega quando começa a «fazer contas para sair de casa» e percebe que não tem hipótese. «Estamos todos em 'paitrocínio' (sustentados pelos pais)», diz. «E ainda se fala em quebra de natalidade... Conheço centenas de pessoas (fruto de uma vida associativa intensa) e só meia dúzia tem filhos...»


Um dia Gui decidiu ir à Ordem dos Arquitectos denunciar a situação. Lá, responderam-lhe, com a maior das naturalidades, se não sabia que «os ateliers tinham as pessoas a recibos para não lhes pagarem a segurança social...» Por isso, ela gostava que houvesse um sindicato para defender os arquitectos - já que a Ordem não o faz. Mas uma sindical que não pensasse que o maior problema do país são os contratos a prazo, «quando para nós, a recibos, isso é um luxo...» Quais são as consequências? «A solução para muita gente é sair do país. E é fácil, com a fama da Universidade do Porto no estrangeiro, ganhar-se muito bem na Suíça, na Noruega... É quase como se o Estado nos estivesse a empurrar para fora».


MIGUEL HORTA

Mediador cultural e pintor, 48 anos, pai de dois filhos, a recibos a vida toda

«O Estado não gosta de nós»

É com esta frase-símbolo saída do Maio de 68 que Miguel Horta, mediador cultural e pintor, considera explicar um pouco o que é viver a recibos verdes em Portugal. Homem dos sete ofícios, divide-se entre colaborações, sejam elas na prisão de Setúbal, onde dá uma oficina de promoção da escrita e da leitura, na Biblioteca Ramos Rosa, na Cova da Moura, na Ellipse Foundation, em Sintra, onde faz visitas guiadas, ou no serviço Educativo da Gulbenkian, onde é autor de duas oficinas para públicos com necessidades especiais. Fora as vezes que anda pelo país fora, na l(ab)uta. «É assim que eu ganho a vida, a saltar de um lado para o outro». Miguel Horta nunca teve um contrato, à excepção de uma bolsa. Nem quando trabalhou para a Câmara de Lisboa durante dois anos, na Rede de Bibliotecas Municipais, esteve sem ser a recibos, nem tão-pouco enquanto foi gráfico e ilustrador dos «Cadernos de Educação de Infância», durante 14 anos.


O que mais revolta Miguel, no que ao Estado diz respeito, é que para além de se «desresponsabilizar totalmente» por uma série de pessoas, atinge particularmente as pessoas que estão «na linha da frente da mudança do país». Miguel fala, leia-se, da mudança da mentalidade, pela educação, pela formação, pois defende: «a educação é a única Segurança Social». «São estas formiguinhas verdes», como lhes chama, esse «atoleiro verde» em que caímos, «que estão nos programas de reinserção dos bairros sociais, nos museus, nos projectos com populações problemáticas, na alfabetização...» Afirma: «É preciso tratar com humanidade a questão dos recibos verdes. E é precisa coragem política para pegar neste assunto. Uma regra não serve para todos. Eu não quero ser tratado como uma pessoa que ganha montes de dinheiro, porque não ganho montes de dinheiro.»


E questiona: «Que sociedade futura vamos ter? Como é que querem que aumente a natalidade, se a malta nova não tem condições para ter filhos?» Miguel conhece inúmeros casais da área da cultura e das artes, em que ambos estão a recibos, que querem ter filhos e simplesmente não conseguem. «Com a obsessão de pôr as contas em dia, estão a cometer-se inúmeros atropelos sociais e pessoais», denuncia. «Antes do défice estão as pessoas.» E dá um exemplo: quando partiu uma perna, há uns anos, teve de ficar em casa um mês – sem direito a baixa, claro –, e simplesmente não ganhou. Nessa altura, foi o pai que o ajudou. Quem ajudará os seus filhos quando eles precisarem? «De repente, a reforma dos avós serve para pagar a Segurança Social dos filhos. Já viram o grau de perversidade...?»


Miguel vive numa casa alugada, que é também o seu atelier, na margem sul. «Nunca me passou pela cabeça tentar sequer arranjar casa própria», diz, consciente das limitações impostas pelos bancos às pessoas com condições de trabalho precárias. «Esta sensação de pertencer a uma marginalidade é uma coisa... Dá-me uma enorme angústia», desabafa. Mas como é preciso muito para o deitar abaixo, abre logo o sorriso quando vê um grupo de crianças em frente a um quadro de Picasso...

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O que se pode fazer para mudar a situação


O fiscalista Saldanha Sanches considera

1) O recibo verde como forma de pagamento deve ser uma escolha do prestador de serviços e não uma imposição do que a procura. Só pode ser aplicado quando o prestador de serviços tem uma profissão cujo conteúdo exige independência em relação ao contratante.
2) Os descontos para a Segurança Social só devem existir quando há rendimento do trabalho e na proporção desse rendimento (ao invés do modelo actual, que exige uma quantia mensal mínima de 150 euros independentemente do que se ganha).
3) Todos os trabalhadores têm de ter direito a subsídio de desemprego: a flexibilidade na relação laboral tem de ser compensada com o direito ao auxílio público.

Medidas simples, segundo Garcia Pereira



1) Adoptar uma medida que já existe há 20 anos em Espanha ou Itália: inverter o ónus da prova. Em vez de ser o trabalhador, em tribunal, a ter de provar que existia um contrato de trabalho, é a empresa que tem de provar a sua inexistência.
2) Ter uma Inspecção-Geral de Trabalho que funcione e denuncie as empresas que praticam estes actos como causadores de concorrência desleal.
3) Aplicar coimas «violentas» a estas empresas, sobretudo se forem práticas reiteradas.

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