|
ÚNICA N. 1632 / 7 Fevereiro 2004
O sexo e a prisão
Viagem aos quartos de visitas íntimas
na Prisão de Vale de Judeus, onde os casais se encontram a
sós.
Texto de Katya Delimbeuf
Fotografias de Luiz Carvalho
São 8h30 da manhã e a «ramona»
está prestes a partir. A bordo, reclusas de Tires, a maior
prisão feminina do país, são levadas, como todos
os meses, até à «terra prometida»: a Prisão
de Vale de Judeus. Hoje, a Ford Transit de cor creme, sem vidros e
com o autocolante identificativo na traseira (EP - Empresa Pública),
não vai com a lotação máxima: apenas cinco
mulheres, das oito que em Tires beneficiam do regime de visitas íntimas,
vão ver os companheiros.
A carrinha ignora os limites de velocidade. A pressa das reclusas
parece ter contagiado os guardas prisionais e, por isso, uma hora
mais tarde, eis-nos chegados a Vale de Judeus, em Alcoentre. Situada
num descampado, a prisão assemelha-se a uma caixa-forte. Muros
altos, portões eléctricos, nem uma janela para o exterior.
Construída nos anos 60, onde antes havia um pântano,
alberga os reclusos com as penas mais longas do país. É
por isso que foi a primeira prisão a beneficiar do sistema
de visitas íntimas - porque é ali que o desgaste das
relações familiares é maior.
Foi em 1999 que surgiu este regime e com ele a possibilidade de os
presos e respectivas companheiras se encontrarem uma vez por mês,
em instalações próprias, e usufruírem
três horas de privacidade - desde que provem que viviam maritalmente
há pelo menos dois anos. Construíram-se dois equipamentos
de raiz, um em Vale de Judeus, outro no Funchal. Setenta mil contos
(350 mil euros) foi o custo dos dez «mini-apartamentos»,
que não têm tido falta de uso. Todos os dias há
visitas íntimas, de manhã e à tarde. Cento e
quatro reclusos beneficiam do sistema em Vale de Judeus, ou seja,
um quinto da população prisional. Em Tires são
oito mulheres, num total de 600. Apenas as que têm os companheiros
naquela prisão.
O portão eléctrico abre-se e a carrinha entra, parando
num espaço intermédio, com outro portão em frente,
que dá acesso à prisão. As mulheres saem, sacos
na mão e um brilhozinho nos olhos. Trazem roupa de cama, fronhas,
lençóis - os itens obrigatórios inscritos no
regulamento. O estalar das luvas de borracha de uma agente dá
sinal para o início da revista. Tudo é passado a pente
fino - gel de banho, estojos de «toilette» - em busca
de objectos cortantes, fármacos, álcool ou drogas. Segue-se
a passagem no detector de metais e a revista na casa de banho, com
as visitantes despidas.
Finalmente, tudo a postos... Alinhadas em fila indiana, é com
passo apressado que as mulheres se dirigem ao edifício das
visitas íntimas. À entrada, distribuem-se preservativos.
Depois, à vez, são encaminhadas para os quartos, ao
longo de um corredor de mármore frio. Além da cama de
casal, no quarto há uma mesa, cadeiras, uma «kitchenette»
onde se pode fazer um chá e uma casa de banho. À porta,
duas embalagens de detergente lembram aos reclusos que a limpeza posterior
das instalações deverá ser feita por eles.
TRÊS HORAS A SÓS
para ouvir música. Outro tarda em chegar. «Onde anda
o número 467?», questiona a agente ao telefone. «Está
a tomar banho», respondem-lhe. «Há sempre um que
se atrasa... Ou está a aperaltar-se ou então não
está com muita pressa de ver a mulher...», graceja-se.
As portas são trancadas, as três horas começam
a contar. Dez minutos antes do fim da visita, uma funcionária
fará um telefonema para o quarto, a avisar que o tempo está
a terminar. Depois, os presos são submetidos a análises
para detecção de consumo de álcool ou de estupefacientes.
Se o controlo for positivo, o direito às visitas é suspenso.
Para eles, o tempo a dois passa a voar. De novo no corredor, fumam-se
cigarros, dão-se últimos beijos e abraços. Os
maridos ficam a espreitar à esquina, vendo as mulheres ir-se
embora. Como que tentando prolongar o momento, só passado um
bocado atravessam a porta que os leva de regresso ao dia-a-dia prisional.
Revistadas uma vez mais antes de fazerem o caminho de volta, as mulheres
vão mais alegres, mais calmas, com o mesmo - ou será
outro? - brilhozinho nos olhos.
DELPHINE E VINCENT
Fernanda, Delphine e Verónica vieram ver os maridos. A primeira
é portuguesa, a segunda francesa, a última brasileira.
Esta casou já na prisão, na capela de Vale de Judeus,
com um recluso que conheceu ali, numa festa. Fernanda e Verónica
estão presas por tráfico de droga (o delito mais comum
em Tires), Delphine por homicídio. Apanhou a pena máxima,
25 anos. O mesmo que o companheiro, co-arguido no caso.
Delphine tem o cabelo curto louro e olhos azuis. Óculos. Entrou
na cadeia aos 24 anos - com menos idade do que o tempo a que foi condenada.
Se cumprir a sentença até ao fim, terá quase
50 anos quando sair. Hoje com 27, esta ex-estudante de Direito frequenta
o regime de visitas íntimas há 11 meses. Como é
estrangeira, Vincent, o companheiro, é a única pessoa
que vê fora do universo de Tires.
A visita íntima é um momento privilegiado. «Durante
três horas, não estamos na prisão. Estamos sozinhos,
como na vida a dois», diz. No primeiro ano da pena, Delphine
via Vincent uma vez de três em três meses, numa visita
normal. Valeram-lhe as cartas diárias, de quatro e cinco páginas,
que aliás ambos continuam a escrever, religiosamente: «A
carta de segunda chega quarta, a resposta dele chega sexta, e assim
sucessivamente». Todos os dias recebem correio. Mas há
muito que se habituaram a nunca esquecer um dado essencial: a data.
Depois de dez anos de vida em comum, não foi fácil separarem-se.
«O tempo passa mais depressa desde que temos direito à
visita íntima», desabafa Delphine. «A meta é
sempre o próximo mês».
QUEM SE PORTAR MAL...
Quem fala com Vincent Blachere, o seu companheiro, de 36 anos, percebe
a força do sentimento de os une. «A minha mulher é
toda a minha vida», diz ele. A visita mensal «faz toda
a diferença», apesar de ser curta. Na verdade, o que
ele gostaria mesmo era de ver o sistema espanhol - de apartamentos
e alas para casais com penas longas - posto em prática no nosso
país. «Por que não se faz um programa experimental,
conhecendo o sucesso do regime de visitas íntimas, que nunca
teve nenhum problema? É que ser privado da sua mulher durante
25 anos é uma verdadeira tortura psicológica...»
No seu entender, alargar o regime a mais prisões «iria
contribuir significativamente para a melhoria do comportamento dos
reclusos, porque quem não se porta bem perde o direito à
visita. Assim, far-se-ia a destrinça entre quem é reinserível
e quem não é», defende. Na prisão, Vincent
fundou uma escola de música. Na sua cela, compõe até
às 4h da manhã, com uns auscultadores, um computador
e um sintetizador. Até arranjou uma editora para gravar um
CD que fez na cadeia.
Fernanda Aragão, directora da prisão de Tires há
nove anos, considera que o regime de visitas íntimas «ganharia
se funcionasse numa prisão do Norte, noutra do Centro e noutra
do Sul». Em 2001, chegou a haver a ideia de criar em Tires instalações
para encontros de casais, mas as prioridades de investimento ditaram
o adiamento «sine die» do projecto.
Também Delphine considera que o regime de visitas deveria ser
alargado a mais prisões: «Acalma os reclusos. Regressa-se
muito melhor. Além disso, as visitas funcionam um pouco como
a cenoura: sabemos que, se nos portarmos mal, perdemos o direito a
elas». Na prisão, Delphine teve de aprender «a
ser mais calma. A deixar a dignidade no vestiário. A viver
com os outros (são quatro mulheres em cada cela). A esperar
- espera-se sempre por alguma coisa aqui dentro».
O assassínio de um casal de turistas holandeses no Algarve,
considerado premeditado pelo juiz, valeu-lhes a pena máxima.
«Aquilo que começou como um roubo terminou mal»,
diz ela. O crime foi sobejamente mediatizado, e Delphine considera
que isso teve influência na sentença. «Não
éramos propriamente meninos do coro, mas acho que os media
nos crucificaram». Quando entrou na prisão, ninguém
falava com ela.
Delphine garante que se lhe dissessem, há uns anos, que ela
iria matar alguém, não teria acreditado. «Nunca
pensei ter dentro de mim a capacidade de cometer tal crime».
Talvez por isso, considera que «qualquer pessoa, em determinadas
circunstâncias, é capaz de matar».
A «LINGERIE» DA VISITA
Apesar dos seus 46 anos, o rosto de Fernanda Azevedo ilumina-se e
o sorriso desponta como o de uma garota quando o assunto é
visitas íntimas. Há mais de dois anos em Tires, já
usava o regime antes de ir parar à cadeia, quando ia a Vale
de Judeus ver o marido. Ainda se lembra dos tempos em que o encontro
a dois durava só uma hora. Foi presa pelo mesmo crime do companheiro:
tráfico de droga.
Casada há 23 anos, para ela as visitas representam «a
continuidade do relacionamento lá fora». E explica: «Psicologicamente
e fisicamente, faz bem. Não é só o sexo. É
um espaço nosso, em que nada faz lembrar que estamos presos.
Parece que estou num quarto de hotel... Venho diferente, mais aliviada,
aérea, transbordante de felicidade. As minhas colegas às
vezes metem-se comigo, dizem: Esta já está a ficar
maluca. Já estás a precisar de ir à visita íntima...»
Diz que a relação com o marido foi sempre muito boa.
Aliás, «com esta idade ainda sou um bocado para o romântica»,
confessa. «Pareço uma adolescente, uma barata tonta,
a arranjar as coisas para não me esquecer de nada: pensar na
roupa interior que vou levar este mês, não repetir a
do mês passado... Parece que é sempre a primeira vez».
Fernanda tem conjuntos de «lingerie» especiais para os
dias das visitas íntimas. Não lhe passa pela cabeça
levar duas peças desirmanadas.
«Às vezes até prego umas partidas a mim própria,
com a pílula», revela, «para ir no primeiro grupo
e não no segundo. Deixo de tomar a pílula durante uma
semana, para ter o período mais cedo». É das reclusas
que parte a iniciativa de tomar a pílula, para melhor preverem
os dias do ciclo menstrual. Por isso, há sempre dois grupos
e duas viagens da carrinha até Vale de Judeus. Elas próprias
preenchem um documento com as datas e a duração habitual
da sua menstruação, para que a visita não coincida
com essa altura.
«Tenho pena que as minhas colegas não possam usufruir
do mesmo direito que eu», diz Fernanda. No seu entender, esta
é uma das causas da homossexualidade nas cadeias. «Quando
bate a saudade», escreve ao marido uma carta por semana - «sobre
coisas pessoais e, às vezes, até lhe conto sonhos eróticos...»,
confidencia, a rir-se. Enquanto não chega o dia de voltar a
viver com o esposo na sua casa, gostava de, para lá da visita,
poder passar noites a dois. «Para acordar com ele ao meu lado,
em vez de três mulheres, ao toque de alvorada...»
O número 377 de Vale de Judeus chega com duas folhas na mão.
Alinhavou numa letra impecável algumas ideias sobre as visitas
íntimas, quando soube que iam falar com ele sobre o tema. É
um homem alto, magro, vestido com fato-de-treino, que ocupa muito
do seu tempo livre a fazer desporto. É parte da sua luta pela
manutenção da sanidade mental, explica. Prefere que
o chamemos pelo número porque, diz, «a partir do momento
em que entramos aqui, perdemos toda a identidade». Está
em Vale de Judeus há quase quatro anos, a cumprir uma pena
de 11, por tráfico de droga.
Ao contrário da maioria, que se diz sempre inocente, o 377
assume a culpa e o preço a pagar à sociedade. Ex-oficial
da GNR, é afável e conversador. Casado há 26
anos, pai de duas filhas, usufrui do regime de visitas íntimas
há três anos e meio com a mulher, que não está
presa. É a situação da maioria: das 104 mulheres
que dão aos inquilinos de Vale de Judeus as três horas
de amor regulamentado, só 20 chegam na «ramona».
«AS MULHERES VÃO-SE AFASTANDO...»
Em matéria sexual, o primeiro ano de pena foi, para o 377,
o mais difícil. «Para mim, que vinha habituado à
vida de casado, foi um choque terrível». E assinala as
vantagens do regime de visitas íntimas também no plano
familiar: «Quando as penas são longas, há um arrefecimento
da relação marido-mulher. As mães nunca deixam
de vir às visitas, os filhos também não, mas
as mulheres vão-se afastando...»
Anos a fio sem contacto sexual eram praticamente uma sentença
de morte para os casais. «Aliás, uma das questões
mais frequentes na cadeia são os comportamentos violentos dos
homens ou problemas de saúde por as mulheres os abandonarem.
Ficam malucos...» Por isso, também considera que o sistema
deveria ser alargado a todas as prisões. «Diminuiria
muito a violência, até porque quando as pessoas têm
mais auto-estima, são mais tolerantes».
Sobre as visitas mensais, diz: «É um luxo enorme... Não
só a sexualidade, como a intimidade, numas instalações
do melhor que há. O carinho que não existe cá
dentro - onde só há adversidade, agressividade - ali
é possível. Carrega-nos as baterias até à
próxima vez. E depois, dá-me uma sensação
de segurança saber que estive com a minha mulher pelo menos
uma vez no mês...»
Nunca lhe aconteceu ir a uma visita íntima sem ter sexo. Mesmo
assim, acha que é pouco tempo para estar com a pessoa de quem
mais se gosta. Se pudesse pedir uma maior frequência das visitas,
«já ficava contente com duas vezes por mês».
Contam-se os dias entre as visitas. E entre elas a chama mantém-se
com a ajuda do telefone: «Entre namorados, escreve-se muito;
entre casados, telefona-se». Liga todos os dias à mulher,
antes dela sair para o trabalho, em função das horas
a que os presos são «abertos» e «fechados».
Nas celas, das sete da tarde às oito da manhã do dia
seguinte, há tempo de sobra para pensar. Recordar os momentos
vividos na visita, que serão o combustível de um mês.
No fim dos apontamentos do número 377, lê-se: «Pelo
facto de ser condicionado, para nós tem o dobro do sabor».
|
|
Delphine e Vincent já
no quarto de visitas
À chegada a Vale
de Judeus,é em passo apressado que as presas de Tires, carregadas
de sacos, se dirigem para o encontro com os seus companheiros
Antes, tudo é
revistado, incluindo o corpo das mulheres, e passado pelo detector
de metais
Fernanda Azevado fala
com o marido, no final das três horas de visita. Fora dos quartos,
a vigilãncia é constante
|
|