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ÚNICA Nº 1581 15 Fevereiro 2003
Pensar
positivo
A maioria
das mulheres com sida está em idade fértil. É um dos alertas da
campanha da associação Positivo, que se dedica a ajudar as vítimas da
doença e os seus familiares.
Texto
de Katya Delimbeuf
Fotografias de António Pedro Ferreira
Um
corpo quebrado, vergado sobre si mesmo, nu. Frágil. Um corpo de mulher,
iluminado no meio de um fundo a negro, e a frase «Quando tudo parece
perdido, encontre aqui um sinal de vida». Nos cartazes, lê-se ainda:
«Positivo — Grupos de apoio e auto-ajuda a infectados e afectados
pelo HIV». No meio do negrume, a associação, que existe há dez anos,
pretende ser a luz da esperança para as pessoas que de repente se viram
«desnudadas». No fundo, gostava de ser um farol.
«Mostrar a nudez que sentimos quando
descobrimos que somos seropositivos; quando o mundo nos cai em cima...»
É este o objectivo da campanha nacional, segundo Amílcar Soares,
presidente da Positivo — a primeira associação dirigida aos
infectados, mas também a todos os afectados pela doença (família,
amigos, companheiros). «Tudo o que se tem feito até aqui tem sido
no sentido da prevenção, para os que não têm HIV». Esta
campanha é para quem já conhece o amargo sabor da «sentença».
Na Positivo aposta-se em prevenção secundária,
«no apoio psico-social que é preciso prestar às pessoas após a
contaminação». É essencialmente o que a distingue da associação
Abraço, que incide na prevenção primária e tem maior intervenção
política. Aqui, a preocupação prende-se mais com o indivíduo. Os
grupos de auto-ajuda são fundamentais para quem mergulha num mundo de dúvidas
e medos e encontra ali uma bolsa de oxigénio que o ajuda a voltar à
tona. Para isso, a Positivo promove duas reuniões semanais — uma para
seropositivos e outra para sero-discordantes (em regra, os parceiros das
pessoas infectadas).
Em
2002, o seu orçamento foi de 31.700 euros, atribuídos pela Comissão
Nacional de Luta contra a Sida, a que se juntaram 4500 euros em
donativos, angariados sobretudo na indústria farmacêutica.
Amílcar
Soares, 48 anos, é portador do vírus há 17. No dia 26 de Dezembro de
1985 pediu à sua médica para lhe fazer o teste da sida. Na altura
praticamente não se falava do assunto em Portugal e aquilo parecia «uma
americanice mais que outra coisa». No entanto, passados três
meses, Amílcar recebia com espanto e revolta o «anúncio de uma
sentença de dois anos — aquilo que as pessoas viviam na altura».
Tinha 31 anos e percebeu que podia estar a
morrer. Levou mais três a aprender a lidar com a situação.
Concentrou-se nos estudos, trocou o curso de Engenharia, em Lisboa, por
Belas-Artes no Porto, e daí só voltou quando — após uma entrevista
que deu na rádio, na qual assumiu a sua seropositividade — foi
despedido. Fundou a associação, pois achou que seria a melhor forma de
ajudar outros na mesma situação. Hoje, termina um mestrado em
Sexologia e prepara uma tese sobre como é que os seropositivos (após
dois anos de doença) vivem a sua sexualidade.
Não é por acaso que a campanha de rua optou por
um modelo feminino. O número de mulheres infectadas aumentou
significativamente entre 1994 e 1999 — apesar de, nos últimos três
anos, ter vindo a decrescer. No entanto, o alerta justifica-se pelo
facto de as mulheres serem menos faladas quando se aborda o tema da
sida. Em Junho de 2002 havia em Portugal 1547 casos conhecidos de
mulheres com sida (16,5% em relação ao total), e 2570 com HIV. Do
total, 86,1% situavam-se na faixa etária entre os 20 e os 49 anos (os números
são do Centro de Vigilância Epidemiológica das Doenças Transmissíveis,
do Instituto Ricardo Jorge, em colaboração com a Comissão de Luta
Contra a Sida).
Sida
no feminino
A
maioria das mulheres infectadas está, assim, na idade fértil, o que é
preocupante. Na opinião de Amílcar Soares, o aumento deste número
prende-se directamente com as análises a que as mulheres são sujeitas
quando engravidam. «Se
calhar não há mais mulheres infectadas do que antes, há é uma noção
mais segura do número de mulheres com HIV».
Da sua experiência ao longo destes dez anos, Amílcar destaca ainda um
facto assustador: «A
maioria das mulheres é contaminada pelos próprios maridos».
Dóris (nome fictício), 32 anos, foi infectada
pelo seu segundo companheiro, há seis. No entanto, ainda hoje considera
que «ele era um homem bom. Uma pessoa óptima, que ajudava toda a
gente. Eu amava-o tanto que acho que a raiva só durou um dia. O amor
supera tudo», garante ela. Mãe de três filhos, de 13, sete e dois
anos (o terceiro, nascido da sua actual relação, já depois de estar
contaminada, é sero-negativo), Dóris descobriu que tinha sida quase
por acaso. O marido, esse, sabia o que tinha há sete anos. Nunca lhe
disse nada.
Só depois de três anos e de uma filha em comum,
quando uma infecção arrastou o marido para um leito de hospital, é
que Dóris, estranhando o seu estado de agonia, resolveu inquirir junto
dos médicos. E foi apenas por acaso, quando uma estagiária lhe
confessou já ter falado demais, que Dóris «encostou» a médica à
parede. Ainda ouviu por cima, em tom de ralhete: «Então a senhora
vive há três anos com o seu marido, teve uma filha com ele, e não
sabe que ele tem sida?!» Foi desta forma que Dóris soube que era
seropositiva. Assim, de chofre.
Era
impossível que ela não estivesse contaminada, garantia-lhe a médica.
Que fosse fazer análises e que rezasse para que a sua filha não fosse
também seropositiva (o que, felizmente, não se confirmou). Dóris
entrou em pânico. A primeira coisa que lhe passou pela cabeça foi
suicidar-se. Lembrou-se do Metro, saltar para a linha, acabar tudo ali.
Foi uma amiga, que a agarrou a tempo, que evitou o pior. Nesse dia,
telefonou à mãe em pranto e aos brados de «Vou
morrer!» A mãe foi mais
positiva: «Hoje já ninguém
morre disso», assegurou.
Quando Dóris confrontou o marido no dia
seguinte, já ele não conseguia falar. Assim, nunca soube como é que
ele tinha sido infectado. E talvez por isso tenha conseguido perdoá-lo.
O marido durou mais um mês. Na altura, custou-lhe mais a morte dele do
que o facto de a ter contaminado. «Nem me lembrava...» Depois
veio a pior fase, que durou dois anos. «Primeiro, a depressão. O
auto-isolamento. Entreguei as minhas filhas — uma à minha mãe, outra
à minha sogra. Meti-me no álcool, emagreci 15 quilos em seis meses...»
Não sabia nada sobre sida. «Achava que ia
ficar careca, feia, que ninguém ia querer-me...» As coisas começaram
a melhorar quando Dóris voltou a conviver com outras pessoas. A
perceber que os homens continuavam a interessar-se, mesmo depois de ela
dizer: «Olha, sou sero-positiva»... Até que conheceu o actual
companheiro. Da primeira vez que tiveram relações sexuais, Dóris
disse-lhe que queria usar preservativo. Passado pouco tempo, contou-lhe
a sua história. Ele decidiu ficar.
Há dois anos e meio, quiseram ter um filho. Dóris
falou com a sua médica e, perante a garantia de que os riscos para a
criança eram mínimos, foi avante. A doutora explicou-lhe como fazer a
inseminação artificial, em casa, usando uma seringa. Após várias
tentativas falhadas, o casal decidiu arriscar, recorrendo ao método
natural. Ciente dos riscos que corria, o companheiro de Dóris confiou
na sorte. Não teve azar. Tomou AZT aos três meses de gravidez e a
filha nasceu sero-negativa.
Aconselha toda a gente «a fazer análises de
seis em seis meses». E deixa um aviso: «Não é preciso ter um
comportamento de risco para se ser contaminado». Não faz planos
para o futuro — «porque não sei se vou lá chegar». Mas, por
via das dúvidas, pelo menos na sua cabeça, já «destinou» os seus
meninos: «A mais velha fica com a minha mãe, o do meio com a outra
avó, a mais pequena com o meu actual companheiro...»
«Se
pudesse voltava atrás...»
Rosa
(nome fictício) conheceu o mesmo triste fado de ser infectada pela
pessoa em quem mais confiava — o marido. É uma cabo-verdiana de
aspecto franzino, 33 anos, mãe de um menino de nove. Soube que tinha
HIV há uns escassos seis meses. Casada há dois anos e meio pela
segunda vez, não consegue esconder a mágoa: «Foi
este casamento que me destruiu...»
Descobriu que estava infectada por casualidade.
Era empregada em casa de uma médica e, ao comentar com ela que o marido
se queixava de aftas na boca, a patroa aconselhou-os a fazerem análises.
Quando os testes chegaram, insistiu para que a deixasse ver. Foi um
imenso choque: o resultado era HIV positivo.
«Pensei que ia morrer no dia seguinte. Uma
pessoa sente que o mundo caiu em cima em cima de si. E ninguém consegue
tirar esse peso». Rosa confrontou o marido, mas ele negou que
estivesse infectado. A princípio sentiu raiva, revolta. Depois, deixou
de o odiar, porque não acreditava que ele a tivesse infectado
conscientemente. Só então começaram a fazer sentido na sua cabeça as
recusas dele em ir ao médico, em não querer que ela o acompanhasse...
Foi por isso que decidiu separar-se — «porque não sei viver com
hipocrisia, com falsidade...»
«Se pudesse voltar atrás, não confiaria em
ninguém», garante. «Nunca teria deixado de usar
preservativo...» Não quer voltar a pensar em relações afectivas.
Assegura: «Já tive várias propostas sexuais que poderia ter aceite
e andar aí a infectar pessoas ou a vingar-me. Mas nunca hei-de fazer
isso».
Olha pela janela da sala onde a associação
recebe pela primeira vez aqueles que a procuram. A luz do candeeiro, lá
fora, refulge nos seus olhos, onde as lágrimas bailam, ao som provável
de uma morna.
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Amílcar Soares, presidente da Positivo
«Dóris»,
infectada há seis anos
O
«outdoor» da campanha
«É
positivo falar sobre as coisas. É positivo quando alguém nos ouve», lê-se
nos cartazes da campanha
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