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ÚNICA No. 1700 - 28
Maio 2005
Os mistérios do
«Sr. Ninguém»
Philip Staufen, aliás Keith Ryan, aliás Sywald Skeid
- tantos nomes, nenhuma identidade certa. Amnésia ou fraude?
Ninguém sabe quem é o «Sr. Ninguém»,
que a mulher quer trazer do Canadá para Portugal.
Texto de Katya Delimbeuf
Nathalie Hervé Azevedo tem um
ar frágil, de menina. Quer seja pelos 26 anos ou pelo cabelo
curto, à rapaz, pelo corpo franzino ou os olhos azuis que esconde
por trás de óculos escuros, é difícil
não reparar no ar desprotegido. Esta luso-canadiana mudou-se
para Lisboa há dois meses, e só quer uma coisa: «Que
o meu marido estivesse aqui comigo». Casada há quatro
anos e meio, Nathalie nunca esteve tanto tempo separada do seu cônjuge.
«Muitas vezes os jornalistas perguntam-me: Não
se podia ter apaixonado por alguém com uma vida menos complicada?
E eu respondo: Nunca se apaixonou? Eu não escolhi. Aconteceu.
Im Mrs Nobody», diz a mulher do Sr. Ninguém.
Mas Nathalie sabe que a sua história não tem nada de
simples. Para que o seu marido viesse para cá, precisava, primeiro,
de saber quem é.
Neste ponto, é preciso recuar até à noite de
28 de Novembro de 1999, quando um homem dá entrada no Hospital
de Toronto, com uma pancada na cabeça. Queixa-se de ter sido
assaltado e quando lhe perguntam o nome não sabe responder.
«Philip Staufen» ficaria, pois algum nome teria de constar
na ficha hospitalar, sob pena de não poder ser internado; «Data
de nascimento: 7 de Junho de 1975»; Diagnóstico: «Amnésia
global pós-concussão». Sem documentos nem identificação,
este homem bronzeado, de cabelo louro descolorado e com sotaque inglês
não tem ideia de quem seja.
Sem dinheiro, o «Sr. Ninguém», como ficaria conhecido
na imprensa mundial, apesar de nunca ter falado com nenhum jornalista
- e que há dias foi referido como sendo o «Homem do Piano»
(ver texto «Notas de um homem só») -, cai à
rua, onde passa cinco semanas, de abrigo em abrigo. O caso suscita
compaixão e um casal de Ontário oferece-lhe a sua casa.
Ali ficou dois meses. De lá, Philip muda-se para Vancouver,
e entra no escritório do advogado português Manuel Azevedo.
Este tinha fama de causídico batalhador, com provas dadas de
ganhar «causas perdidas» à custa de argumentos
inteligentes e imaginativos. Manuel Azevedo simpatizou logo com o
caso de Philip e aceitou representá-lo gratuitamente. Começaram
por lutar por documentos básicos de identificação,
como uma certidão de nascimento, para que Philip tivesse um
esboço de vida normal. O objectivo seguinte seria obter a cidadania
canadiana.
Nathalie Hervé Azevedo era a assistente legal de Manuel Azevedo
- e sua filha. Sentiu «uma ligação imediata»
quando Philip Staufen entrou pela porta do escritório do pai.
«Gostei dele imediatamente. Passava uma fase complicada na minha
vida, tinha desistido da universidade e estava a ajudar o meu pai
no escritório. Foi um período em que me sentia muito
sozinha no mundo, incompreendida, e de repente, quando o conheci,
deixei de me sentir assim.» Atraiu-a, sobretudo, o sentido de
humor dele. «Depois de estarmos juntos, doíam-me as bochechas
de tanto rir... E já não me sentia feliz há tanto
tempo...»
Perguntas tão simples como «Que idade tem ele?»
ou «Como era quando era pequeno?» ficam sem resposta.
E é preciso estar preparado para isso. «Como conseguiu
casar com uma pessoa sem saber quem eram os seus pais? Ou sem saber
se cometeu um crime no passado?», costumam perguntar-lhe. «Tudo
o que fiz foi por instinto», responde. «Nunca lhe fiz
perguntas, porque imaginava que devia ser terrível estar sempre
a responder. Queria ser sua amiga.» Por isso, esclarece, nunca
pôs em causa a idoneidade dele.
Nathalie trabalhou longamente no caso em conjunto com Philip. Arranjar
um emprego sem ter papéis estava posto de parte, pois não
haveria muitos empregadores dispostos a aceitar alguém sem
experiência profissional ou que declarasse ter amnésia
e não saber quem é nem o que fez. A obtenção
de documentos passa a ser a principal luta de Staufen. Manuel Azevedo
pede ao tribunal um certificado de nascimento, mas este é-lhe
negado. Mas o caso do «Sr. Ninguém» conquista a
simpatia da opinião pública canadiana, e várias
pessoas se oferecem para o ajudar. Aos préstimos gratuitos
do advogado português, soma-se a boa vontade da ministra da
Imigração, Elinor Caplan, que em Junho de 2001 lhe propõe
uma autorização temporária de permanência
no Canadá, para trabalhar e ficar no país 18 meses.
Staufen recusa. Quer «cidadania canadiana, para poder ter um
passaporte e sair do país». A ministra fica chocada.
A pista «porno gay»
Entretanto, as habituais diligências das autoridades são
accionadas. As impressões digitais de Philip são verificadas
nos registos criminais canadianos, norte-americanos, britânicos,
alemães, e um pouco por toda a Europa. Sem resultado. Também
a sua fotografia é difundida num «site» de pessoas
desaparecidas e posta a circular nas polícias europeias e em
jornais. Em dois anos, nenhum familiar ou amigo aparece a identificar
este homem. Até que em Junho de 2001, um britânico, Sean
Spence, garante reconhecer uma fotografia publicada no jornal «The
Guardian». Spence é editor de duas revistas pornográficas,
a «Zipper» e a «Vulcan», mas é um leitor,
David Charlton, que lhe envia recortes da fotografia do «Sr.
Ninguém» juntamente com fotografias de um modelo. As
semelhanças são evidentes. De repente, as memórias
avivam-se. David Charlton recorda-se daquela pessoa ter ficado em
sua casa umas semanas. O modelo é também actor de filmes
pornográficos - gay -, e usava o nome artístico de Georges
Lecuit. Ora, o passaporte do francês Georges Lecuit foi dado
como roubado em Paris, à data de 1998. O mistério adensa-se.
As fotografias e excertos dos filmes são enviados para Manuel
Azevedo, o advogado do «Sr. Ninguém», e para as
autoridades canadianas. Especialistas em comparações
faciais afirmam tratar-se da mesma pessoa. Azevedo abandona o caso
e deixa de representar Philip Staufen, convencido de que este e o
actor britânico são a mesma pessoa. Quanto ao detective
encarregue do caso, Stephen Bone, polícia há 28 anos,
é peremptório: «As fotografias que recebemos de
Londres e as que tirámos no Canadá, são para
mim, a mesma pessoa.» O investigador de Toronto afirma: «Hoje,
estou plenamente convencido de que o Sr. Ninguém
é uma fraude; ele e o modelo britânico são a mesma
pessoa. Pessoalmente, acho que deveria estar detido por não
cooperar e tentar enganar as autoridades canadianas. Além disso,
sabemos que ele usou identificação falsa em Inglaterra
(o passaporte roubado a George Lecuit) e que disse ao patrão
que era francês. Penso que provavelmente esta é a história
de uma pessoa que quis reinventar a sua identidade.»
Confrontada com as fotografias pelas autoridades canadianas, Nathalie
admite as semelhanças, mas garante: «Isso não
muda aquilo que sinto». E não está a brincar.
Seis meses depois de se terem conhecido, Nathalie e Philip casam-se
pelo civil, a uma sexta-feira 13, em Julho de 2001. Com a avó
materna e o irmão por testemunhas e únicos convidados,
o casal sela a sua união no jardim de uma casa em Vancouver.
O único documento de Philip, uma certidão de nascimento
emitida pelas autoridades canadianas para lhe facilitar a vida (com
nome, data de nascimento e nacionalidade britânica atribuída
com base no sotaque) bastou para que o casamento fosse celebrado,
considerado válido e registado pela Conservatória e
pelo consulado em Montreal (registo nš C4282 - 2004). Posteriormente,
Nathalie também registou o casamento na Conservatória
Central, em Portugal. Os pais, que não foram convidados para
a cerimónia, são completamente apanhados de surpresa.
Cortaram relações. Há meses que pai e filha não
se falam.
Staufen acaba por aceitar a autorização de residência
proposta pela ministra um mês antes. Os «media»
do Canadá, EUA e Reino Unido redobram o interesse no Sr
Ninguém, à conta do «factor porno»
e, certo dia, Nathalie e Philip deparam com uma multidão de
jornalistas à porta de casa. Staufen decide então mudar
de nome (diligência bastante fácil no Canadá),
para se livrar da perseguição dos «media».
Passa a chamar-se Keith Ryan, um nome mais comum. «Não
pensámos que as pessoas pudessem achar estranho», assegura
Nathalie. Estávamos em Outubro de 2001. No início de
2002, Keith volta a mudar de nome, pelos mesmos motivos. Opta agora
por Sywald Skeid. «Como é que o costuma chamar?»
- questionamos Nathalie. «Nunca o trato pelo nome. É
curioso, mas digo sempre: Hey you... ou sou eu...»
Em Janeiro do ano seguinte, a autorização temporária
de permanência de Skeid expira - e as autoridades não
a querem renovar. Nathalie e Sywald mudam-se para Otawa, e depois
para Montreal. Em Setembro, tornam a mudar-se, para Halifax. Levam
«uma vida de casal perfeitamente normal», diz Nathalie.
Como ele não pode ter um emprego, ela trabalha, ele cuida da
casa. Cozinha, limpa... Vão às compras, à mercearia,
passeiam, vão ao cinema... Sywald parece feliz com a sua nova
vida, não manifestando qualquer desejo aparente em descobrir
quem é. Durante estes anos, nunca demonstra vontade de procurar
as suas origens nem a sua anterior identidade... «Concentrávamo-nos
no futuro, não no passado», justifica Nathalie. «As
pessoas acham estranho, mas ele nunca se preocupou de facto com isso.
E quando alguém não reage como nós esperávamos,
as pessoas não percebem - e desconfiam.»
Desta vez, não foram só as pessoas a suspeitar. As autoridades
canadianas estranharam as mudanças de nome, de residência
e de aparência (Sywald voltou à sua cor de cabelo natural,
escura, e deixou crescer a barba) e, a 28 de Abril de 2004, chamaram-no
para o interrogar. Skeid é preso, acusado de não conseguir
provar a sua identidade. Nathalie entra em pânico. Procura os
«media» e garante que o marido lhes contará a sua
história mal saia da prisão. Libertado a 7 de Maio,
Skeid não faz qualquer declaração aos jornalistas
- «um conselho dos novos advogados», afiança a
mulher.
Lisboa intransigente
No ano passado, Nathalie requer a nacionalidade portuguesa para o
marido, através do casamento. Dialogou com as autoridades lusas
a partir de Vancouver, até à altura em que achou que
não podia fazer mais nada. Há dois meses que está
em Lisboa. Alugou um quarto, empregou-se e corre o Ministério
dos Negócios Estrangeiros (MNE), a Procuradoria-Geral da República,
a Amnistia Internacional, a Cruz Vermelha... Das instituições
oficiais portuguesas vem sempre a mesma resposta, que o subdirector
do MNE, Fernando Simões Bento, resume do seguinte modo: «Ele
até poderia requerer a nacionalidade portuguesa, mas a inexistência
de documentos inviabiliza o processo.» E a recente detenção
de Sywald, como as dúvidas em torno da sua identidade, são
suficientes para desassossegar as autoridades.
Entretanto, o que dizem os médicos? O neurocirurgião
Sérgio Figueiredo garante: «Em 18 anos de neurocirurgia
e de urgências no Hospital de São Francisco Xavier, em
Lisboa, não vi um único caso de amnésia completa.
É tão raro que quase não é uma condição
neuro-cirúrgica. Seriam precisas múltiplas lesões
cerebrais para destruir todas as memórias de um indivíduo
- a visual, a auditiva, a olfactiva...», explica. «Ora,
o diagnóstico - amnésia global pós-concussão
- é a mais leve forma de traumatismo craniano. E os exames
realizados não apontam para uma lesão tão violenta
que pudesse ter apagado todas as memórias». O médico
vai mais longe: «Posso dizer, com 99% de certeza, que este tipo
de perda de memória não é resultado de um trauma
físico. Pode ter um trauma psicológico na sua origem,
e o subconsciente ter querido apagar uma memória traumática,
mas ou é um trauma psicológico ou é fraude.»
Nathalie aposta a sua última cartada na obtenção
dum documento da Cruz Vermelha, em que Sywald seja declarado apátrida.
Sonha com o dia em que o possa trazer para cá. Às vezes,
vai ao aeroporto e, postada na base das escadas rolantes, faz de conta
que o vê a chegar.
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Sywald Skeid, em 2003, com o cabelo preto (sua
cor natural), na imagem mais recente que foi tornada pública
Nathalie Hervé Azevedo, em Lisboa, onde vive desde há
dois meses
Fotografia do «Sr. Ninguém» com cabelo louro, como
chegou ao hospital
Passaporte de Georges Lecuit, única pista surgida em seis anos
de investigação
Fotografia do actor/modelo de filmes pornográficos rodados
em Londres, única pista sobre a possível identidade
do «Sr. Ninguém». As semelhanças físicas
estão à vista
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