ÚNICA N. 1618 / 1 Novembro 2003

Jazz nu e cru

Kiko é nome pouco comum para um cantor de jazz. Como o facto de lançar um primeiro CD a solo aos 33 anos de idade. Mas quem diz que ele quer ser apenas mais um?

Texto de Katya Delimbeuf
Fotografia actual de Nuno Botelho

Aspecto descontraído, vestido de preto integral, boné enterrado na cabeça. Ar gingão. Kiko acena, braço no ar, para que nos juntemos a ele num café. Aos 33 anos, o luso-americano, portista na residência e na afeição, colhe os frutos do lançamento do seu primeiro disco a solo, Raw (Cru - ou War/Guerra, se lido ao contrário). A imprensa atribuiu-lhe rapidamente o epíteto de «único cantor masculino de jazz em Portugal» e, hoje, Kiko confessa ter receio de que o rótulo de «mulher barbuda do jazz» faça com se aproximem dele por isso e não pela qualidade do seu projecto. No entanto, quem ouve o disco de «standards» - que vão do «Overjoyed» de Stevie Wonder ao «Day Dream» de Duke Ellington ou ao «Blue Valentine» de Tom Waits - percebe que estamos perante um cantor seguro.
A idade com que Cristo morreu revelou-se a altura certa para Kiko fazer algo que sabia ir acontecer, mais cedo ou mais tarde. «Ainda esperei por uma iluminação divina, mas cheguei à conclusão de que estava era a ficar velho e só não tinha gravado o disco por uma razão muito simples: medo. De me expor». Em Janeiro, decidiu. «Fazer o CD foi como aquela comichão... Se não coças, ficas doido» . Dois dias bastaram para gravar um álbum ao qual se chamou Raw devido à simplicidade e ausência de grandes efeitos de pós-produção.

Francisco António Pereira de baptismo, Kiko desde sempre, não pensou duas vezes antes de escolher o nome artístico. Nem sequer se questionou se poderia ou não criar reservas junto dos críticos mais puristas. Da mesma forma, não sabe quantos discos já vendeu. Não é isso que lhe interessa, garante. O álbum foi quase um tira-teimas consigo próprio, mas não é por isso que ambiciona viver da profissão. Fê-lo durante dois anos e não guarda grandes recordações. «Viver da música trouxe-me dissabores. Há uma altura em que começas a remexer na tua alma, quando aceitas fazer coisas de que não gostas» .
Por isso, hoje, Kiko acumula a profissão de jazzista com outra pouco habitual: é assistente de inspecção sanitária, na lota de Matosinhos. Há quatro anos que, por gosto, ouve os pregões das varinas - alguns dos quais ainda o fazem corar. Depois dos estudos de canto na Escola de Jazz do Porto e de dois anos no Conservatório de Gaia, decidiu seguir um conselho do pai. «Como sou obediente, apesar de teimoso, tirei Produção Animal na Escola Agrária de Coimbra».

Considera os dez anos da infância passada nos EUA (nasceu em Newark) fundamentais para o seu percurso: «Fui infectado pela música negra da altura, nos anos 70 - Stevie Wonder... E também pela minha irmã, sete anos mais velha, e o grupo de amigos dela» . De resto, acredita que alguns dos seus traços de carácter são uma herança dos «States»: «A falta de perseverança é o grande defeito dos portugueses» , afirma. «À mínima contrariedade, põem-se logo em causa» . Ele não. Passou por várias fases até chegar ao jazz - o «hard rock», os «blues», a salsa -, formou e participou em «duetos, quartetos, quintetos» , gravou com o projecto Trupe Vocal e com Raul Marques e os Amigos da Salsa.
Quando lhe perguntam por que nunca foi para os EUA, costuma responder que é preciso alguém que fique. Acredita que «lá, seria apenas mais um. Aqui, posso ser o primeiro, ser melhor» . Gosta de citar Tom Waits para explicar que «o meu país é onde pouso o chapéu» , mas sente-se português por dentro. Admira Chet Baker e Marvin Gaye. Acredita que «o melhor está para vir. Sempre. Senão, é o fim da aventura».

 

 

     

 

 

 

A capa do primeiro CD a solo, «Raw»

 

 

Kiko a actuar num concerto