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ÚNICA N. 1623 - 6 Dezembro 2003
O abrigo do Intendente
Numa das zonas de Lisboa onde há mais prostituição
de rua, um centro de acolhimento é procurado pelas mulheres
que querem uma vida nova.
Texto de Katya
Delimbeuf
Fotografias de Ana Baião
No coração do Intendente,
o bairro de Lisboa mais associado à prostituição,
há um sítio onde as prostitutas são tratadas
como pessoas iguais às outras. Um porto de abrigo onde tanto
podem tomar um banho quente e comer uma sandes como ficar para uma
aula de ioga ou de informática. Vai lá quem quer. E
algumas já conseguiram uma alternativa à vida de rua.
São duas da tarde, na aula de arraiolos do Centro de Acolhimento
e Orientação da Mulher - Irmãs Oblatas (CAOMIO).
Hoje, dá-se a teoria, os termos técnicos: «Ponto-mãe,
ponto contorno, diagonais...», e a professora Rosa exemplifica
com passos, aproveitando o quadriculado do chão. «Teoria...?»,
queixa-se uma aluna, com uma careta. «Ó professora, não
posso ir buscar o meu tapete e ir enchendo (preencher
o fundo do desenho com cor)?»«Sem teoria, não há
prática», responde Rosa. «Quantas casas é
preciso encher num tecido com 50 cm por 50? E estas cores, casam-se
bem ou mal?»
Vinte mulheres, com idades entre os 20 e os 60 anos, assistem atentamente
à aula. Dez são negras, dez brancas, algumas bonitas,
outras nem tanto. Umas têm o cabelo pintado, com raízes
negras de descuido, outras um aspecto perfeitamente normal. Vestem
batas amarelas às riscas brancas, com o nome bordado no peito.
Nada distinguiria este sítio de uma qualquer escola profissional
e estas mulheres de outras, não fosse o facto de todas serem
prostitutas, ou de o terem sido. No entanto, aqui são apenas
mulheres. Pessoas primeiro, mulheres depois. A profissão seria
só um detalhe, se não tivesse levado à destruição
da sua auto-estima. «Elas próprias se auto-excluem, quando
estão na rua», explica Hélder Vicente, assistente
social do Centro e coordenador do projecto «Ser Mulher»,
iniciado em Outubro do ano passado. «Sentem um estigma muito
forte, um grande sentimento de culpa. Dizem que o seu dinheiro é
maldito. Usam muito o táxi, para não enfrentarem os
olhares reprovadores na rua. Tivemos aqui mulheres que não
sabiam andar a pé, que nunca apanharam um transporte público».
Olhando em volta, algo salta à vista: à excepção
de duas ou três mulheres mais maltratadas, com rostos marcados,
poderíamos passar por qualquer uma delas sem suspeitar que
se prostituíam. A visão de uma mulher de cabelo curto,
nos seus sessenta anos, casaco de malha e ar de senhora respeitável,
é particularmente chocante.
O centro de acolhimento existe há nove anos, mas só
desde Outubro de 2002 passou a ter uma vertente terapêutica
e ocupacional. Desde então, faz-se divulgação:
as equipas de rua que saem todos os dias falam com as prostitutas,
dão-lhes preservativos e informam-nas da existência de
um lugar onde podem tomar banho, ver televisão, ler uma revista
ou lavar roupa. De manhã, as que quiserem podem ser acompanhadas
pela psicóloga ou pelo assistente social, e à tarde
frequentarem as aulas, das 14h às 17h. Há as seguintes
opções, que tiveram em conta a opinião das próprias
mulheres: arraiolos, ioga, pintura, dança, teatro, informática,
auto-estima e alfabetização.
Aos poucos, elas foram chegando. Não foi difícil habituarem-se
à ideia de terem um refúgio onde podem esquecer o mundo
durante umas horas - todos os dias, se quiserem. Por ali já
passaram 90 mulheres, desde o ano passado. Do último grupo
de 20, nove trilham já caminhos alternativos.
«Há muito poucas regras», explica a directora do
centro, a irmã espanhola Maria Angels Zabalza. «Ninguém
obriga ninguém a vir. Aqui não interessa o passado.
Não se fazem perguntas nem críticas». O abandono
da profissão tão-pouco é requisito obrigatório
para frequentar o projecto. Entende-se que muitas dependem da actividade
para sobreviver e que não lhes pode ser exigido um corte radical.
Também se aceitam mulheres toxicodependentes, desde que estejam
no programa de metadona, e imigrantes ilegais - que representam cerca
de 50% da prostituição em Lisboa.
«O objectivo deste projecto não é que as mulheres
passem do cabaré para o convento», explica
o assistente social Hélder Vicente. A ideia é ajudá-las
a adquirir competências pessoais que lhes permitam recuperar
a auto-estima e autoconfiança, para se sentirem capazes de
abandonar a rua.
Hoje é o último dia de «Noémia»,
chamemo-la assim. Está prestes a ir-se embora. Arranjou um
emprego de oito horas diárias nas limpezas e, apesar de o ordenado
ser curto, está feliz por abandonar a vida. «Vinte anos
é muito tempo...», diz. Agora, estará mais disponível
para os cinco filhos, que não sonham que a mãe alguma
vez se prostituiu. No poema de despedida que fez, reconhece que o
projecto foi fundamental para a sua decisão.
A aula de ioga está prestes a começar. O chão
enche-se de colchões ou de cobertores dobrados. Ao lado da
professora, uma aluna dá a aula. Quando é mais ríspida
com as colegas, elas chamam-lhe a atenção: «Não
podes criticar assim, tens de fazer comentários construtivos...»
Fazem-se os movimentos básicos de ginástica, segue-se
uma «coreografia». As alunas entoam uma cantilena, enquanto
erguem os braços em arco e dobram o tronco: «Nasce o
sol e nasce o dia.../ Nascem as pétalas e cheiram-se as flores.../
Vem a noite e nasce a lua».
OLHAR PARA DENTRO
Relaxamento, música calma. As mulheres estão deitadas,
fecham os olhos. Nesta parte da aula, devem estar simplesmente com
elas próprias. Umas obedecem, outras nem tanto. Se calhar não
é fácil olharem para dentro. Se calhar não gostam
do que vêem. Percebe-se que não estão habituadas
a mimarem-se.
«Elas ainda estão a aprender a receber», explica
a professora, Paula Pimenta, que ali dá aulas há um
ano. Recorda que, no início, ninguém relaxava na altura
do relaxamento, «todas falavam». Paula procura transmitir-lhes
a consciência do corpo, para que aprendam a gostar dele, a tratá-lo
bem. «Precisam de sentir amor, de se sentirem dignas. A auto-estima
também se trabalha nestas aulas». As raparigas divertem-se
entre elas, dançam, pulam. Nota-se que criaram laços.
Muitas confessam sentir falta do centro aos fins-de-semana.
Em baixo, na aula de auto-estima, trabalha-se «a diferença
entre as pessoas». Divididas em dois grupos, as mulheres tentam
ordenar «os dez mandamentos das relações humanas».
«O que é mais importante? Considerar os sentimentos das
pessoas ou preocupar-se com a opinião dos outros?», pergunta
a psicóloga Laura Almeida. Os grupos ensaiam consensos, discutem,
argumentam. Algumas, pouco interessadas, recostam-se na cadeira e
esperam que alguém decida por elas. «Têm de aprender
a ouvir-se primeiro e a criticar construtivamente, antes de passarmos
às aulas de auto-estima propriamente ditas», explica
a professora.
«Seja amigo se quiser ter amigos», reza um dos mandamentos.
«Eu não tenho amigos», comenta uma delas. «Amigos
a sério, não tenho». Anda perto dos 50 anos. É
uma das que frequenta as aulas de alfabetização. «Entre
as mais velhas, a taxa de analfabetização é elevada.
Um quinto», afiança o assistente social. A isto junta-se
geralmente um QI baixo, visto nunca terem exercitado as capacidades
intelectuais.
A PROFESSORA MARIA
Como em qualquer boa regra, existem excepções. Neste
grupo de vinte mulheres, 22% são analfabetas e 33% têm
o 9º ano de escolaridade. «Maria», no entanto, é
licenciada. Aos 50 anos, conclui o estágio do curso que tirou
numa universidade privada, ao mesmo tempo que se prostituía.
É, daquele grupo, a que tem os pés mais fora da actividade,
rumo a uma vida nova. O seu objectivo é candidatar-se para
dar aulas e poder abandonar em definitivo a rua, onde esteve trinta
anos - e à qual, por necessidade económica, ainda se
vê forçada a regressar, de 15 em 15 dias. Nunca lhe custou
tanto como agora. «É que as metas já são
outras...» Já deu aulas em várias escolas e, sobre
a experiência como professora, diz: «Ter autoridade é
diferente de ser autoritário».
A escolha de «Maria» acabou por recair num curso «científico»,
mas o verdadeiro sonho era Psicologia. Talvez por a sua profissão
lhe dar a conhecer um espectro tão alargado do comportamento
humano... «Quando entro num carro, sei logo se a pessoa é
boa ou má. Pela energia», garante. «Na prostituição,
a gente não se entrega. Tenho de falar primeiro com as pessoas,
é a minha defesa para considerá-los humanos, e não
animais». Hoje, garante que já não tem as mesmas
defesas de antigamente. «Reagia sempre, insultava... Mas consegui
andar na vida durante trinta anos e nunca entrar no mundo da prostituição
à séria. No submundo. Nunca tive chulo, por exemplo».
Está no centro desde Fevereiro. Estava à beira da depressão
e percebeu que tinha de estender a mão, senão ia ao
fundo. Afinal, já tinha andado pelos mesmos terrenos durante
cinco anos, e conhecia os sintomas. Há um ano foi agredida
na noite, esfaqueada. Esteve no hospital «entre cá e
lá». «Hoje tenho medo de andar na rua», assegura.
«Nunca tive medo em 30 anos e agora tenho. Com a entrada da
toxicodependência no meio, costumo dizer que hoje não
há prostituição - há miséria».
O pulso férreo de uma mãe autoritária levou-a
a fugir de casa, aos 18 anos. Veio dos arredores para Lisboa. Não
conhecia ninguém. Começou por andar nos cafés,
no Monumental... «Enfim, o percurso de tantas mulheres naquela
altura... Passei um bocado. Fome, frio...». A prostituição
apareceu quase como um alívio. «Porque passei a ser independente,
a única a mandar em mim». Depois de doze anos a fazer
do corpo o seu sustento, chegou aos 30 com «fome de actividade
cerebral». Voltou para a escola e fez tudo, do 2º ao 12º ano.
No externato, contou a sua vida a duas ou três amigas. Entrou
para a universidade, foi aos jantares de curso, à bênção
das fitas. «Tudo a que tinha direito».
Durante anos, levou uma vida dupla: de dia nas aulas, à noite
na rua. Depois rebentou, fisicamente. «Por que é que
se aguenta tanto tempo? A pessoa vai-se encostando. As portas fecham-se.
Tem-se vergonha. Deixa-se andar». Agora, aprendeu a levar as
coisas devagarinho, está menos ansiosa. Gostou sobretudo do
acolhimento, do facto de as equipas de rua terem ido até ela,
conversar. A família, com que se reconciliou, é hoje
o seu refúgio, o seu antidepressivo.
«SIMPLESMENTE VAMOS»
«Margarida» é um daqueles casos que veio contribuir
para a miséria de que «Maria» fala. Tem 35 anos
e foi toxicodependente durante dez, os mesmos em que se prostituiu.
«Quando se consome, a entrada na prostituição
é quase imediata, pela necessidade de dinheiro. Não
damos conta de como vamos lá parar, simplesmente vamos».
Começou a consumir aos 18 anos, cocaína e heroína,
porque o namorado também o fazia. No entanto, não o
culpa. «Foi porque tinha de ser... Levava a vida que queria
na altura, semanas sem dormir, tudo muito acelerado, muito para cima...»
Aos 28 anos, foi internada de urgência, passou quatro meses
em coma. Mal deixou de se drogar, deixou de querer prostituir-se,
automaticamente. «Quando se consome e se anda na vida, a cabeça
não está lá, só o corpo. Quando se deixa
de consumir e se continua na prostituição, custa muito
mais». Há três anos, uma irmã do centro
passou pelo seu local de trabalho e perguntou-lhe se não estaria
interessada em fazer outra coisa. Como já tinha pensado nisso
a sério, aceitou.
Neste momento, os seus sonhos passam por deixar completamente a rua.
Viver o dia-a-dia. Ser saudável. E ajudar o companheiro, que
tem graves problemas de saúde, e com quem vive há quatro
anos - «pouco tempo, porque quem esteve nos consumos acha sempre
que ele é curto. Agora, quando olho para trás, parece
que estive dez anos a vegetar».
No centro aprendeu a ser mais calma, mais pontual, mais responsável.
Conseguiu alugar uma casa, tirar um curso à noite... «Tudo
isso ganhei aqui». Quer completar o 12º ano. Sente saudades
do centro e das raparigas ao fim-de-semana. «Da conversa, da
vivência, da abertura. Da falta de regras. De haver respeito
e pontualidade, mas não obrigatoriedades. Ninguém chateia
se não viermos um dia, ninguém nos enche os ouvidos.
Por isso, as pessoas vêm. Porque querem».
O projecto «Ser Mulher»
Criado em 1994, no Intendente,
o CAOMIO (Centro de Acolhimento e Orientação da Mulher
- Irmãs Oblatas) tem na sua origem uma ordem religiosa espanhola.
As Irmãs Oblatas estão em Portugal desde 1986 e trabalham
exclusivamente com o problema da prostituição. O centro
de Lisboa, que começou por ser apenas de acolhimento, adquiriu
uma vertente terapêutica e ocupacional a partir de Outubro de
2002.
O projecto «Ser Mulher», coordenado pelo assistente social
Hélder Vicente, aposta num processo de reintegração
social: as mulheres contactadas pelas equipas de rua, que saem todos
os dias para o Intendente e a Praça da Figueira, são
acolhidas, participam nas actividades que quiserem (desde a alfabetização
à informática, passando por aulas de auto-estima ou
de arraiolos) e, depois de adquirirem as capacidades pessoais que
lhes permitem reequilibrar-se, as que o desejem são encaminhadas
para um emprego remunerado - apoio social aos idosos, limpezas, secretariado...
O centro tem protocolos com a Câmara Municipal de Lisboa e a
Santa Casa da Misericórdia para o desenvolvimento desta actividade.
Por ali já passaram 90 mulheres. As equipas de rua contactaram
220 prostitutas com actividade na via pública, 50% das quais
são estrangeiras, «quase todas clandestinas, entre franco-africanas
e anglo-africanas, muito controladas pelas máfias», diz
Hélder Vicente. As principais causas apontadas pelas mulheres
para a entrada na prostituição são, segundo o
coordenador do projecto, «as famílias desestruturadas
ou muito numerosas, o machismo das famílias que protegem os
filhos e rejeitam as filhas, os abusos psicológicos e verbais
e, finalmente, a toxicodependência».
Centro de Acolhimento e Orientação
da Mulher
Rua Antero de Quental, 6-A - Lisboa
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O centro das Irmãs Oblatas ajudou 90 mulheres no último
ano
15h, aula de ioga: em cada dia, uma aluna diferente orienta os exercícios
A professora Rosa ensina os segredos dos pontos arraiolos
A recuperação da auto-estima faz parte do programa
Hélder Vicente orienta uma aula de informática
A irmã Maria Angels, directora do centro, e o coordenador Hélder
Vicente
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