ÚNICA Nº 1859 - 13 Junho 2008

Um pouco mais de verde e era campo
Com o aumento do preço dos cereais, as hortas urbanas de Lisboa estão na ordem do dia

Textos de Katya Delimbeuf
Fotografias de António Pedro Ferreira

O arquitecto Ribeiro Telles ficaria contente. Foi das suas mãos que António Barroqueiro recebeu o prémio da «horta mais bonita» de Lisboa, há cerca de dez anos. Operado há 15 dias, com internamento hospitalar, nem esperou o fim da convalescença para voltar à sua horta. Só não vem se cair um santo do altar. Todos os dias chega de manhã, todos os dias aqui almoça, e cultiva as suas coisinhas: alfaces, couves, tomate, favas, alhos, feijão, batatas e arrudas, «uma planta que as senhoras procuram muito para tirar o enguiço».
Neste meio hectare, não há quaisquer vestígios de urbanidade - não fossem as duas fileiras de prédios, pela frente e por trás, a delimitar os extremos do terreno. Estamos nas traseiras da Estrada de Benfica, movimentada artéria da capital. Há de tudo aqui: campos cultivados e semeados com batata, couves, alfaces, coentros, salsa, manjericos, cebolas, favas, nespereiras, ameixeiras - e tudo agricultura biológica.

São vários os co-detentores deste pequeno segredo urbano: António é o que ali anda há mais tempo - quase 30 anos, não contando com sete numa horta ao pé do cemitério de Benfica, até uns prédios lá serem construídos, e outros três numa horta na Cidade Universitária. Este ex-cobrador da Carris, 75 anos feitos, é hortelão desde que chegou a Lisboa, com 25. Natural do Fundão, como o sotaque denuncia, quando fala em «coisas para plantér», António explica o amor à terra pelas suas raízes: «Na província, trabalhava na agricultura - sempre gostei de ter hortas. Esta aqui era de uma senhora que pagava renda à Câmara e não a amanhava, por isso, pediu-me a mim para cultivar. Depois, fui dando uns leitõezinhos aos amigos, para ajudarem», e hoje são seis os que amanham aquele terreno.

António ainda se lembra do tempo em que o Areeiro eram só quintas e a Praça de Alvalade tinha uma horta no meio, de um amigo dele... Chegou a plantar e vender 200 kg de batata, mas hoje só planta para ele - e 25 kg bastam-lhe. Actualmente, só vende as tais «arrudas» e «couves, no Natal». «Mas é raro comprar alguma coisa da mercearia», confessa. Vem tudo daqui - até o almoço. Hoje, a costeleta que está ao lume é acompanhada por favas e couves cozidas... da horta, claro. «Andar ao ar livre faz bem. Todo este ar ajuda a purificar. E o trabalho nunca fez mal a ninguém», atira.

Pelo bairro de Santa Cruz de Benfica, os protestos dos moradores estão expostos em placas e painéis um pouco por todo o lado. Insurgem-se contra a CRIL, que por ali vai passar, substituindo o verde por oito vias a céu aberto. Frases como «Auschwitz não», ou «Negociata de milhões destrói vida dos bairros» podem ler-se. A especulação imobiliária é o inimigo número um das hortas urbanas, que se têm mantido de forma espontânea, muitas vezes ocupando terrenos municipais - e desocupando-os à medida que valores mais elevados (literalmente, porque é de construção que aqui se fala) surgem.
Essa vai deixar de ser uma preocupação dos hortelãos, garante a Câmara de Lisboa, que pela primeira vez na História constituiu um grupo de trabalho específico para tratar da agricultura urbana. Composto por três mulheres arquitectas, o grupo promete debruçar-se a sério sobre um tema nunca considerado digno de seriedade.

Uma das primeiras promessas do Plano Verde aprovado assegura que quem tem hortas não vai deixar de as ter, independentemente de estarem em terrenos camarários. Isso nos garantiu José Sá Fernandes, vereador do Ambiente, Espaços Verdes e Plano Verde: «Serão completamente integrados todos os que actualmente façam agricultura em solos municipais.» Aliás, essas serão as pessoas consideradas prioritárias para atribuir novos terrenos em concursos, que contribuirão para uma nova paisagem da cidade, com a criação de parques biológicos.

A cachupa da D. Isabel
Isabel Dias e Vitorino Sanches já vão na terceira horta. Cabo-verdianos de Santiago, vieram para Portugal há mais de 30 anos, quase tantos quanto os que moram na Cova da Moura. Agora têm duas hortas. No bairro, é muito comum as famílias cultivarem a terra, aliando o traço de cultura cabo-verdiana à ajuda económica que se retira do chão. A primeira horta de Isabel e Vitorino foi no Cacém, há dez anos. Tinham de apanhar o comboio, iam com as sacholas e os ancinhos atrás. Ali estiveram 5 anos, até a construção ditar a mudança para outro terreno, ao pé do Hospital Fernando Fonseca, mais conhecido como Amadora-Sintra. Agora que estão reformados, vão todos os dias para a horta de autocarro. Pelas 8h30 já estão lá. Se se atrasam e chegam às 10h30, almoçam por ali.

Ter horta não dá trabalho? «Dá, mas ajuda cá para fora», partilha Isabel, que tem a panela de cachupa ao lume, para onde foram «couves, ervilhas, milho e favas da horta». Ou então, podem ir para a segunda horta, ao pé do bairro. Na verdade, a «horta» é um talude de terra entre duas vias-rápidas, em que a passagem a pé exige destreza e rapidez para nos desviarmos dos carros. A noção de horta para os cabo-verdianos é abrangente: qualquer sítio onde dê para plantar umas couves e umas batatas, que não precise de ser regado para lá da água da chuva cabe no conceito. Aliás, se passar nas proximidades da Cova da Moura, verá que todos os pedaços de verde estão aproveitados - até uma rotunda improvisada ao pé de uma cabina telefónica está ‘florida’ com... couves.

Cabo-verdiano é assim, não desperdiça terra. E é generoso. Na horta da família ao pé do Hospital Amadora-Sintra - à qual se chega através de uma passagem engenhosa, com a ajuda de uma corda para descer e outra para subir, e cartões no chão a garantir uma passagem a seco - já estão Pedro, irmão de Isabel, e Vitorino, o marido. Há cinco anos, quando para ali veio, Pedro desmatou aquele terreno à força de braços. Tudo aquilo era cana, que foi preciso mandar abaixo. Com 69 anos muito bem conservados - a energia do trabalho dá-lhe juventude, garante -, confessa que «o dinheiro da reforma não chega para pagar a água e a luz», mas não nos deixa ir embora sem um saco com vários quilos de batata. Para a horta vai toda a família: Vitorino, o patriarca, 77 anos que poderiam vender creme anti-envelhecimento; Carlos, o filho, de 32, que ajuda na horta desde os 13; e Cirilo, o filho mais velho, de 43 anos.

A dois passos da maior catedral do consumo da capital, o Colombo, um grupo de amigos da PSP prepara-se para almoçar uma sardinhada. A acompanhar, o tomate, o pepino e os pimentos são da horta, ali cultivada com vista para outra «catedral», consoante o clubismo de cada um: o estádio do Benfica. Ter vista para a Luz é privilégio de que se pode orgulhar Fernando Mendes, agente da PSP em dia de folga, benfiquista dos quatro costados e hortelão neste pedaço de terra há 25 anos. Se pensarmos que tem 52, é quase metade da vida que passou de roda da horta - facto que justifica com as origens rurais, «da Beira Baixa». Tudo começou «por brincadeira», conta, «que graças a Deus não preciso disto para viver». Ali tem «tomate, cebola, batata, alface, couves, favas, pepinos, ‘courgettes’, e uma ginjeira que é uma categoria».
Enquanto falamos, à volta do lume, vão chegando os comensais - oito ou nove homens que ali se juntam para conviver. «Quando aqui comecei, isto era terreno de um particular», explica Fernando. «Só há dez anos passou a ser da Câmara. No outro dia, andou aí uma senhora do departamento dos Espaços Verdes a dizer que iam fazer aqui umas coisas - um passeio grande -, mas parece que as hortas são para manter...» Ali, ao lado do maior centro comercial da capital, as milhares de formiguinhas que se atarefam nas compras provavelmente nunca repararam que, naquele vale, há dezenas de hortas, um poço de água com 26 metros - e campo. O mais puro campo.

Casas com hortas nas traseiras
Mas também há bairros que foram pensados com logradouros e quintais nas traseiras próprios para hortas. Alvalade, construída nos anos 50 como bairro social, serviu para alojar empregados de várias áreas: Carris, Marinha, Segurança Social... Nos anos 50 e 60, não havia uma horta por arranjar. Depois, à medida que os mais velhos morreram, foram sendo negligenciadas. Mas Alvalade tem, hoje ainda, inúmeras hortas, sendo talvez o bairro onde o fenómeno é mais visível - embora seja preciso embrenhar-se nas paralelas às avenidas, pela parte de trás.

É como se chegássemos a outro mundo. Aqui imperam o verde, as árvores altas e frondosas, o cheiro das flores, o som intenso da passarada. Definitivamente, ninguém diz que estamos no centro da capital. Na Avenida da Igreja, quase a chegar ao Campo Grande, Adriano estende uma cerveja a Porfírio, do r/c para o quintal. Vai agora adormecer o bebé, e já se junta a nós no jardim. Há cinco anos que o n.º 59 da Av. da Igreja é «cliente» de Porfírio, empregado de café que toma conta de várias hortas ali no bairro. Neste momento, são seis as que tem ao seu cuidado, «todas pertença dos condomínios». Tem clientes mais velhos, «que deixaram de poder arranjar a terra», casais de meia idade e casais mais novos, que gostam de ter o quintal limpo. «O casal à volta dos 30 anos só quer flores, outro de 40 tem ervas de cheiros, batatas, árvores de fruto, favas, cebolo...»

«Tenho gosto em cultivar. Sempre fui da aldeia, de Ponte de Abade, na Beira Alta», conta. Por isso, todos os dias de folga são dedicados às hortas. Um dia de trabalho vai dos €20 aos €50, «conforme o estado de degradação do quintal». Porfírio sente-se «feliz» a trabalhar a terra. E o «bónus» é que «ainda se fazem amigos»... «Acaba por ser um ambiente familiar», diz, enquanto bate à janela de Rita, do r/c esquerdo. Aquele quintalinho alberga grande variedade hortícola: há «cebolas, couves, tomates, pimentos, batatas, alhos, espinafres, xuxus, uma macieira, uma ginjeira, um abacateiro, um limoeiro, uma nespereira, pêra-melão, kiwis, muitos plantados por mim», confidencia. E favas: «Até agora, tirámos mais de 20 kg». «E já está tudo carregadinho, pronto a colher.» A Rita calhou-lhe um balde cheio - «e eram óptimas!», garante.

Já com o Diogo adormecido, Adriano junta-se-nos no quintal, à mesa com chapéu de sol. Há oito anos, quando se mudou, achou que «entre ter um matagal nas traseiras da casa ou algo cuidado, era preferível o quintal arranjado». A churrasqueira ao ar livre foi «o primeiro passo», seguiram-se os legumes; depois comprou uns «Borda d’Água», e «a seguir chegou o Porfírio». O que o quadro médio da GALP mais gosta no facto de ter uma horta é «ter verde» à volta. «Das favas, que deram três refeições este ano e que o Diogo adora descascar, e dos espinafres, que foram para a sua sopa. Até o Diogo já rega parte da horta - embora acabe também por nos dar banho...»

No Caramão da Ajuda, bairro construído em 1945, perto do Restelo, também era usual todos terem a sua horta, há 50 anos. Hoje, já poucos moradores cultivam, mas há quem resista. Salvador Pires da Silva, 61 anos, morador do Caramão há 26, é dos mais fiéis à horta. Tem-na há 15 anos, «herança de uma velhota», e paga «€15 por ano à Câmara» para a poder cuidar. É da Beira Baixa, por isso sempre teve ligação à terra. Desde que se reformou, vem para aqui todos os dias, para o pé das galinhas, das couves, das alfaces, do feijão, dos coentros, do poejo, da vinha, da nespereira. «Uma pessoa assim sabe o que come. E sempre ajuda em casa. Hortaliça, não é preciso comprar o ano inteiro.» Para o Sr. Salvador, a Câmara deveria fornecer terrenos baldios a quem quisesse cultivar, porque, «ao menos, estavam limpos e cuidados». Mas, para ele, o melhor de tudo é o descanso mental que uma horta proporciona. «Aqui, não dou pelo tempo passar. E sempre é mais saudável do que andar nas tascas.


 

Hortas em Lisboa ocupam área de 100 campos de futebol

A Câmara de Lisboa tem agora, pela primeira vez, um grupo de trabalho dedicado em exclusivo às hortas urbanas

Pela primeira vez, a Câmara de Lisboa criou um grupo de trabalho específico para tratar das hortas urbanas. Numa altura em que a alta dos preços da comida está na ordem do dia, e em que é urgente aumentar a produção de alimentos, o tema da agricultura nas cidades ganha outra acuidade. Sendo certo que não será pelas hortas municipais que o problema se resolve, a verdade é que todas as pequenas soluções podem ser uma ajuda para debelar o problema global.

Ninguém vai ficar sem horta, garante Sá Fernandes, vereador do Ambiente, Espaços Verdes e Plano Verde. “Nunca comi morangos tão bons como os que plantei”, confessa José Sá Fernandes. “A salsa era a melhor, as couves...”, acrescenta. O vereador do Bloco de Esquerda, que já teve uma horta em Tondela - na verdade, “horta, pomar e vinha” -, conhece bem os benefícios e os sabores de quem extrai da terra o produto do seu trabalho. Há muito que queria ter avançado na questão das hortas urbanas, mas só agora conseguiu criar uma equipa para se dedicar em exclusivo ao assunto, composta por três arquitectas: Maria João Sobral, a coordenar, Rosário Salema e Maria José Fundevila. “Serão completamente integrados todos os que actualmente façam agricultura em solos municipais”, garante.

Essa é a primeira resolução da equipa que terá em mãos a questão da agricultura urbana, depois de aprovado o Plano Verde, largamente inspirado no arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles.
Se pensarmos que a Câmara estima que haja em Lisboa “61 hectares de hortas em terrenos municipais e 35 hectares de zonas agrícolas em quintas e terrenos privados”, ou seja, cerca de 100 hectares de hortas no total (para se ter uma ideia, uma área equivalente à de 100 campos de futebol de 11) é muito trabalho que o grupo tem pela frente. Isto inclui todas as hortas que vemos nos taludes ao longo das estradas? Sim, garante a Câmara Municipal. Ninguém que actualmente cultive ficará sem terreno, mesmo que seja noutro lugar. Vão construir-se barracões para guardar as ferramentas, criando mais condições para os hortelãos, e embelezando os espaços verdes.

Numa altura em que a FAO (a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) recomenda que as cidades sejam cada vez mais auto-suficientes na geração dos seus recursos alimentares, a Câmara decidiu garantir áreas de reserva agrícola na revisão do PDM. A exemplo da cosmopolita Munique, na Alemanha, cidade que tem o seu próprio sistema agrícola, e até tractores comunitários, o Plano Verde quer preservar as hortas existentes, integrando-as em parques biológicos, que deverão ver a luz do dia em Agosto do próximo ano.

Em duas zonas específicas, a Quinta da Granja, em Benfica, e Vale Fundão, em Marvila, os parques biológicos terão vias pedonais para as pessoas passearem, e vias próprias para bicicletas, “o que é também uma forma de aumentar a segurança, porque passará a haver gente a todas as horas ao pé das hortas”, explica o vereador.
Em Vale Fundão, a aposta será “levar para lá a BIOCOOP e direccionar os hortelãos para a agricultura biológica”. E através de anúncios e de concursos, ver-se-á a adesão dos moradores de Telheiras, onde outro projecto de parque biológico está previsto para Agosto de 2009, “com ligação às escolas”.

A equipa agora criada terá a seu cargo três missões: a de acompanhar as pessoas que têm hortas, garantindo que as mantêm; regulamentar as candidaturas dos concursos que irão atribuir novas parcelas de terreno, dando primazia a quem já cultiva; e acompanhar a execução de todos os trabalhos no terreno. Para que Lisboa seja cada mais verde e mais auto-sustentável.

 


 

 

     

 

HÁ 25 ANOS que Fernando Mendes, agente da PSP, tem uma horta a dois passos do Colombo, com vista para o Estádio da Luz

AMADORA-SINTRA Ao lado do hospital, a família de Vitorino Sanches, moradores da Cova da Moura, vai todos os dias para a horta, de autocarro. E é uma alegria!

ALVALADE Porfírio (ao centro) é há cinco anos o jardineiro contratado para tratar da horta. Adriano, o filho Diogo e a vizinha Rita são alguns dos que usufruem do espaço verde

 

ESTRADA DE BENFICA Há quase 30 anos que António Barroqueiro e outros seis hortelãos amanham uma ilha de verde encaixada entre duas fileiras de prédios

 

CARAMÃO DA AJUDA Salvador da Silva paga 15 euros por ano à Câmara para manter a sua horta, «herança de uma velhota». Há 15 anos que se entretém, «em vez de andar nas tascas»

 

VISTA PARCIAL do «segredo» urbano por trás da Estrada de Benfica. Seis hortelãos cuidam de meio hectare de terreno, onde há de tudo, como no campo - incluindo convívio

 

TODA A FAMÍLIA SANCHES vai para a horta, a terceira que têm em Portugal: Cirilo e Carlos ajudam os pais, Isabel e Vitorino