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ÚNICA No. 1652 - 26 Junho 2004
A camarada Dudu
A angolana Alice é mulher a dias em Portugal. Mas tem um passado
de secretária em embaixadas e membro da polícia política
de Angola, de onde fugiu. E escreveu três livros.
Texto de Katya
Delimbeuf
Fotografias de António Pedro Ferreira
É impossível não
nos determos nos olhos desta negra. Azuis, herdados do pai. Angolana
de 60 anos bem disfarçados, cabelo curto à rapaz, sorriso
simples e jovial, Alice é mulher a dias. Não se envergonha.
Para ela, todo o trabalho é digno. «E é preciso
ganhar xuxu (dinheiro)», diz ela, com uma gargalhada.
Mas já o ganhou de outras formas. O seu currículo e
a sua vida são ricos de experiências.
Alice Palmira, a negra dos olhos azuis, foi secretária na Embaixada
Centro-Africana, no Congo, e na Embaixada da Guiné-Conacri,
em Angola; no Ministério do Trabalho, em Brazzaville, e no
Ministério da Defesa Nacional, em Angola. Foi dactilógrafa
no Bureau Político do Partido Congolês do Trabalho e
tradutora na loja diplomática e na loja dos cooperantes, no
Ministério do Comércio Interno, em Angola. Foi ainda
redactora na Rádio Nacional de Angola. É membro da União
de Escritores Angolanos e da Organização das Mulheres
Angolanas. Publicou um livro de poemas em 1981, Liberdade, tem outro
escrito, A Mulemba da Saudade, e outro ainda, A Panela Divina, que
está a terminar.
Há 23 anos em Portugal, vive em Camarate, nos arrabaldes de
Lisboa, e gosta de cá morar. Escreve todos os dias, quando
chega a casa, «às vezes depois de dançar e chorar».
Anda sempre com papel e caneta. Por trás destes olhos, há
muitas histórias por contar.
Chegou a Portugal em 1981, segundo ela, «perseguida pelos colegas
da DISA», a polícia política angolana, para a
qual trabalhou quatro anos. Ameaçada de morte, com a casa assaltada,
viu-se forçada a fugir para Portugal.
Mas comecemos do princípio, para não confundir ninguém.
Mãe de «meia dúzia de filhos» e avó
de sete netos, Alice Palmira nasceu em Brazzaville, no Congo, onde
viveu até aos 32 anos. Aí teve os primeiros cinco rebentos,
aí trabalhou, entre 1963 e 1976, como secretária-dactilógrafa
na Embaixada Centro-Africana, no Ministério do Trabalho e da
Indústria e na direcção do Partido do Trabalho.
Um dia, em 1976, o presidente de Angola,
Agostinho Neto, foi à República Popular do Congo e levava,
na comitiva, um assessor - que piscou o olho a Alice: Sebastião
Coelho, jornalista angolano, futuro amigo e companheiro de aventuras.
«Olha aquele branco!», disse Alice para uma amiga da OMA
(Organização das Mulheres Angolanas) que estava com
ela no aeroporto. «Ordinário... Piscou-me o olho!»
Sebastião veio ter com ela e disse-lhe: «Vamos embora!
Do que é que você está à espera?»«De
um ombro amigo...», retorquiu ela. «Esse ombro amigo sou
eu», disse ele. E assim foi. Partiram para Luanda, com três
dos filhos de Alice.
Em Angola, ela começou a trabalhar na Embaixada da Guiné-Conacri.
Depois passou para o Ministério da Defesa e para o Ministério
do Comércio Interno. Diz que se tornou agente da DISA em 1976
e que Sebastião a incentivou a alistar-se nas FAPLA, as Forças
Armadas Populares para a Libertação de Angola, o que
fez em 1977. Reza o cartão que ainda hoje guarda: «A
prestação de falsas informações será
punida nos termos da lei de disciplina das FAPLA». Na DISA eram-lhe
dadas missões de vigilância, fotografias de pessoas cujos
movimentos tinha de seguir e relatar aos seus superiores, ou conversas
para escutar... Teve treino militar. Recorda, por exemplo, que eram
obrigados «a beber água com parasitas ou café
com sal».
Mas a «camarada Dudu», como era conhecida, não
concordava com todas as ordens. Garante que ajudou muitos estrangeiros
considerados inimigos de Angola a fugir, avisando-os com um telefonema
anónimo quando tinha conhecimento de que iam matá-los.
À conta disso e de «invejas», começou a
ser perseguida. Foi ameaçada de morte, assaltaram-lhe a casa.
Teve de fugir. Foi assim que veio parar a Portugal, terra do pai da
sua sexta filha, um português que se apaixonou por ela e pelos
seus olhos - como de resto todos os homens da sua vida.
Começou a escrever em 1976. A literatura foi uma descoberta
tardia, mas que ainda a apanhou na curva, a tempo de se fazer membro
da União de Escritores Angolanos e de privar com escritores
como Pepetela, Luandino Vieira, Dario de Melo, António Cardoso
ou Ana Paula Tavares. Começou por escrever poesia, em francês.
Em 1981 publicou Liberdade.
O segundo livro só foi escrito em 2002, ano da morte do seu
amigo Sebastião Coelho, a quem dedicou a obra. Escrito em português,
este livro contou com a preciosa ajuda de um dos advogados da sociedade
onde Alice faz limpezas. O jurista, ao encontrá-la um dia a
bater textos à máquina, descobrindo-lhe uma veia artística
que desconhecia, ofereceu-se para lhe corrigir os erros de gramática
e acrescentar «algum tempero», nas palavras dela.
Quando ela pediu a máquina de escrever emprestada para passar
poemas seus à máquina, foi a surpresa geral. Agora,
está a terminar A Panela Divina, sobre a sua experiência
de vida e actividade política, enquanto vai assistindo a lançamentos
de livros e espera que alguma editora se interesse pelos seus. A negra
dos olhos azuis não desanima em relação à
vida: «Enquanto se tem dois braços, duas pernas, e cabeça,
o que é preciso é andar para a frente».
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Alice com o manuscrito
de «A Mulemba da Saudade»
Alice nos tempos da DISA
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