|
ÚNICA Nº 1827 -
3 Novembro 2007
O melhor de dois mundos
A última tendência
do turismo mundial dá pelo
nome de «volunturismo». Junta turismo a voluntariado
e oferece uma experiência mais próxima da população
local. Em Portugal, a AMI antecipou-se às agências de
viagem. A partida da segunda Missão Solidária para
o Senegal tinha data marcada para ontem... com lotação
esgotada.
Textos de
Katya Delimbeuf
Trabalhar em prol dos outros, construindo
fornos comunitários
no Peru, tomando conta de órfãos do VIH na África
do Sul ou dando aulas de inglês na Índia não
será a ideia de férias da maioria. Mas há cada
vez mais pessoas a aderirem ao «volunturismo», a mais
recente tendência de viajar. Vai-se para destinos exóticos
e apelativos como o Vietname, a Costa Rica ou o Botswana, ajudar
num projecto comunitário, e no decorrer da viagem - que pode
ser de duas semanas, um mês ou mais -, estão previstas
visitas a sítios bonitos e interessantes. Une-se, assim, uma
vertente de serviço à viagem tradicional, pratica-se
um turismo sustentável, e garante-se que o dinheiro vai directamente
para a comunidade local. E há quem pague (muito) para ir trabalhar.
«Elle travaille comme un homme» (ela trabalha como um
homem), disse Antoine, o responsável pela pintura do Centro
para a Promoção da Mulher Rural, em Réfane,
no Senegal. Falava de Teresa Júdice da Costa, a produtora
de 29 anos, que embarcou na primeira viagem de «turismo solidário» da
AMI, em Abril deste ano. De 13 a 21 de Abril, pelo custo de 1565
euros, 12 pessoas voaram até ao Senegal, onde estiveram uma
semana, na aldeia de Réfane, a 120 km de Dakar. A missão
dos aventureiros solidários era pintar e reconstruir uma casa
para as costureiras da aldeia, contribuindo assim para a directa
criação de emprego. Nos últimos dias, visitas
ao Lago Rosa e à ilha de Gorée compunham a parte turística
da viagem.
O dia começava cedo, pelas 7h, com um duche rápido «de água
quente - aquecida pelo sol» -, e depois trabalhava-se até à hora
de almoço na pintura e reconstrução da casa,
explica Rufina Garcia, outra das ‘Réfanes’ . As
refeições de comida típica estavam a cargo de
uma cozinheira senegalesa: galinha, peixe, arroz, «com refogados
muito apurados»... À tarde, havia sempre actividade
local: «Ou assistíamos a uma peça de teatro que
os miúdos tinham preparado ou víamos uma ‘luta
lamb’, a luta típica senegalesa, no centro da aldeia»,
garante Rufina.
Foram vários os motivos que levaram Teresa a embarcar nesta
viagem: um, egoísta - o «desejo enorme de conhecer uma África
menos ‘comercial’» -, e outro, «a oportunidade
de fazer uma viagem muito mais rica do que um pacote de avião
+ hotel + museus + restaurantes». Para ela, o volunturismo «é uma
alternativa para quem está farto do turismo comum e para quem
quer ajudar. Contribuição é a palavra-chave». «No
fundo, trata-se de 3 em 1: há uma agência de viagem
que ganha dinheiro, uma população ou um projecto que
recebe ajuda, e um turista que conhece outras realidades e enriquece
do ponto de vista humano.»
«O reconforto de dar foi a sensação mais forte»,
e o momento mais importante «a entrega do centro pintado e
equipado com máquinas de costura, às mulheres de Réfane». «É emocionante
perceber que o meu contributo pode fazer a diferença na vida
daquelas mulheres», resume. «Vão poder costurar,
trabalhar e contribuir para o orçamento familiar, o que equivale à integração
de 300 famílias na comunidade local.»
Casa de banho para 12
Rufina Garcia, técnica superior do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, de 56 anos, agarrou a oportunidade mal teve conhecimento
da viagem. Voluntária da AMI há 13 anos, confessa: «Sempre
sonhei fazer uma missão internacional.» Não lhe
custou dar 1500 euros, pois «boa parte revertia para o projecto,
e o resto incluía tudo - alimentação, estadia,
deslocações...» O grupo integrava pessoas de
30, 40 e 50 anos, de todas as profissões, e ficou alojado
na casa dos professores na aldeia. Cada quarto era partilhado por
duas pessoas, a casa de banho era para doze - «mas todos se
respeitaram uns aos outros», esclarece Rufina, explicando que
ninguém tomava duche mais de 10 minutos.
Admite que não é qualquer pessoa que tem perfil para
este tipo de viagens. Não existem os confortos de um hotel
ou de umas férias tradicionais. Não há piscina,
nem bar, nem bebidas alcoólicas. Mas, para quem como ela trabalhou
20 anos na área do turismo, estas viagens são muito
diferentes - para melhor. «Aqui, cada um vive a sua experiência,
pelos seus olhos. E não aquilo que todos vêem. Quem
volta não volta igual.»
Em Portugal, as agências de viagens ainda não despertaram
para o fenómeno. Embora afirmem ter conhecimento da sua existência,
consideram o segmento demasiado pequeno para atrair o ‘interesse
financeiro’. A Abreu, líder de mercado, afirma que o
volunturismo é «um nicho que está a ser estudado,
e que em devido tempo será respondido». Também
a Best Travel garante estar «receptiva a explorar esta vertente,
mas sempre como um nicho», diz Rodrigo de Sousa Pinto, gerente
da agência, explicando que «Portugal muitas vezes reage
tardiamente às tendências mundiais, mas depois funciona
por modas». Chantal Khoueiry não pensou duas vezes quando
deu 2363 euros por uma viagem de 12 dias à Índia. O
preço não seria motivo de reflexão, não
fosse o «programa» singular. A directora de recursos
humanos, de 33 anos, teve dificuldade em explicar a amigos a sua
escolha. «Alguns pensaram que eu era doida por não estar
a tirar férias para descansar, não compreendendo que
era exactamente isto que eu precisava», conta. De facto, quem
conhecer o itinerário da viagem percebe que esta não é de
descanso. A primeira parte, de 13 a 21 de Maio, foi em Delhi, onde
Chantal deu aulas a crianças em 9 escolas das zonas mais pobres.
Ensinou várias disciplinas: inglês, matemática,
canto, desenho, e passou tempo com uma família que tinha uma
bebé com problemas cardíacos. Na segunda metade da
viagem, de 21 a 24 de Maio, a estadia foi em Sunderbans, local da
maior floresta de mangue do mundo, Património da Humanidade,
classificado pela UNESCO. Chantal ficou alojada num acampamento no
meio da selva, prestando apoio à comunidade local. Continuou
a dar aulas, passou tempo com as mulheres da aldeia, discutiu os
temas que as preocupavam, e plantou «árvores todas as
manhãs, às 6h30». «Os serões eram
passados com os locais, a cantar, a cozinhar, ou em inspiradoras
conversas.»
Chantal resume deste modo a sua experiência: «Foram 12
dias esgotantes, muito emocionais, chocantes por vezes - mas extremamente
compensadores. Ajudou-me a pôr as coisas em perspectiva. Adorei
cada momento, descobri coisas sobre mim mesma que desconhecia, e
conheci pessoas incríveis que sei vão permanecer amigos.»
Também Bryan Baylis, engenheiro farmacêutico de 28 anos,
descreve a sua primeira viagem de volunturismo como uma «lifechanging
experience». Em Março deste ano, o norte-americano pagou
1466 euros para ir até à pequena aldeia berbere de
Talamanzou, em Marrocos. Durante semana e meia, deu aulas de inglês
e matemática e ajudou a construir uma nova escola, em cimento.
Também colheu a mesma reacção de amigos - «alguns
acharam ridículo que eu fosse tirar férias para fazer
trabalho braçal num país do Terceiro Mundo». «Mas
apesar de eu estar a pagar para ser voluntário, ganhei tanto
a nível pessoal que o dinheiro e o tempo gastos nesta experiência
se tornaram inconsequentes», conta.
Balanço 100%
positivo
Bryan recorda a sua chegada: «Ao entrar na aldeia, fui cumprimentado
por todos, que estavam ali para me dar as boas-vindas. Foi avassalador.
As pessoas acolheram-me nas suas casas todas as noites, nas várias
refeições. Apesar de haver uma barreira linguística,
entendíamo-nos por gestos ou desenhos. À noite, os
miúdos ensinavam-me frases em árabe e eu ajudava-os
a pintar com aguarelas.»
Cada dia começava com algumas horas de ensino. «Todas
as manhãs, os miúdos punham-se em fila para o ‘aperto
de mão secreto’». As tardes eram passadas a construir
a estrutura de cimento para alojar os primeiros computadores da aldeia,
que iriam servir para os miúdos ficarem ligados ao mundo. «Os
adultos estavam estupefactos que alguém tirasse férias
para trabalhar no duro», conta. O balanço de Bryan é 100%
positivo. Já em busca de nova aventura, garante: «A
experiência moldou a pessoa em que me tornei, e deu-me uma
perspectiva optimista da vida em todo o mundo».
|||||||||||||||||||
O que é o volunturismo?
O
termo surgiu nos últimos anos entre agentes do turismo.
Embora sempre tenha havido viagens de voluntariado, a novidade é esta
possibilidade de associar «o útil ao agradável».
O fenómeno adquiriu de tal modo expressão que a bíblia
dos viajantes - o Lonely Planet - lançou em Junho um guia
sobre volunturismo.
Uma pesquisa rápida na Internet basta para encontrar dezenas
de agências a comercializar a experiência. Esta ‘indústria’ essencialmente
anglo-saxónica está enraizada nos EUA, em Inglaterra,
na Nova Zelândia ou na Austrália, onde existe a tradição
do «year off» - ou «gap year» (o ano passado
a viajar depois de terminar o curso superior e antes de começar
a trabalhar) e onde os hábitos de voluntariado são
incentivados desde cedo. No Reino Unido, a «indústria
do gap year» atinge um quarto dos jovens entre os 18 e os 25
anos. A consultora Mintel avaliou em 7,4 mil milhões de euros
o mercado mundial do «gap year», e prevê que quadruplique
até 2010.
Apesar de em Portugal ainda não se falar no assunto, há já quem
alerte para os aspectos negativos do volunturismo. Um dos argumentos é que
este tipo de viagens serve mais quem as faz do que quem beneficia
delas; outro é que é muito mais caro do que o simples
voluntariado. Mas para quem tem perfil voluntarista, será algo
do outro mundo pagar mais para viajar de outra maneira? Mesmo que
isso inclua trabalhar?
Algumas agências que vendem volunturismo:
www.handsupholiday.com
www.volunturismo.net
www.globeaware.org
|
|
FOTOMONTAGEM
com fotografias cedidas por vários adeptos do
volunturismo, com registos que vão do Botswana ao Vietname
BRYAN, em Marrocos, a dar aulas
TERESA
JÚDICE DA COSTA na primeira viagem de «turismo
solidário» da AMI ao Senegal
|
|