ÚNICA N. 1788 - 3  Fevereiro 2007

Cousteau está vivo

Mergulhou pela primeira vez aos 7 anos e sonha viver numa cidade submarina. Anda sempre com uma régua do Oceanário de Lisboa, lembrança de quando esteve na Expo 98. Conversa exclusiva com Jean Michel Cousteau, filho do «Captain Planet».


Texto e entrevista de Katya Delimbeuf

Os fãs de Jacques Cousteau lembram-se sem dificuldade do momento solene que era assistir ao «O Mundo Submarino», a série que ganhou dimensão de culto. Os mesmos fãs podem hoje reconfortar-se ao ver o programa do seu filho mais velho, Jean Michel Cousteau, «Ocean Adventures», e sentir isso como uma espécie de sequela, de continuação do legado de Cousteau. Para os que choraram inconsoláveis a morte do homem do boné vermelho, é bom saber que o seu trabalho continua vivo através de Jean Michel e que os próprios netos também seguiram o apelo do mar. Aos 68 anos, Jean Michel Cousteau já deu provas mais do que suficientes do seu valor. Mas como é viver à sombra do mito? Ontem, a 2 de Fevereiro, numa conferência internacional em Cannes, Jean Michel explicou por que aceitou ser, à semelhança da família Kennedy, a imagem de uma marca internacional que veremos por todo o mundo. Pretexto para uma conversa exclusiva (por «e-mail», ver página 25) com o filho do «Captain Planet»

É o primogénito de Jacques Cousteau, e o seu «legítimo herdeiro» - aquele que lhe seguiu os passos. No entanto, não gosta que lhe digam isto - sente-se uma sombra, e acredita merecer um lugar por si só. Oceanógrafo, ambientalista, ecologista, Jean Michel Cousteau continua a travar a mesma cruzada do pai, a favor dos oceanos. À beira dos 70, tem uma farta barba branca que lhe dá um ar sábio e bonacheirão, mais afável do que o pai, e orgulha-se do seu «nariz Cousteau». Arquitecto de formação, é separado e tem dois filhos, Fabien e Céline, de 38 e 32 anos, também eles com profissões e vidas ligadas ao mar - ele faz documentários para a National Geographic («especializou-se» em tubarões), ela trabalha na Ocean Futures Society, a ONG fundada pelo pai, e ambos participam nas suas expedições.

O currículo de Jean Michel é extenso: produziu mais de 75 documentários, ganhou Emmies, Peabodies e outros galardões de televisão, participou em filmes de animação como À Procura de Nemo. Teve o reconhecimento de Al Gore, das mãos de quem recebeu o prémio de Herói Ambiental, e convenceu George W. Bush a classificar um santuário de baleias de bossa no Havai como Monumento Marinho. Neste momento, a menina dos olhos de Jean Michel é a Ocean Futures Society, fundação que criou em 1999 e sediou em Santa Bárbara, na Califórnia. Através dela, investe todos os anos na educação para o ambiente, para que milhares de crianças incorporem o seu lema: «Proteja o oceano, e estará a proteger-se a si.»

O «lobo do mar» diz ter dois heróis: o pai e um índio da Amazónia chamado Kuskus, que lhe ensinou a importância de planear para as gerações futuras: plantava árvores para que os tetranetos tivessem madeira para construir as suas canoas. Pela causa ecologista, Jean Michel travou a batalha de devolver Keiko, a baleia protagonista de Free Willy, à liberdade - o que conseguiu, em 1999. E pela luta constante tornou-se a primeira pessoa a representar o Ambiente na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de 2002, a par de personalidades como o arcebispo Desmond Tutu, Lech Walesa e Steven Spielberg.

Dois anos mais tarde, «exorcisou» os fantasmas do passado ao escrever o livro O Meu Pai, o Capitão. Fê-lo para «repor a verdade», segundo diz, a propósito de várias biografias sobre Jacques Yves que vieram a público. Na obra, lê-se a influência determinante que o pai teve no filho, mas também algumas descobertas chocantes para os fãs, como a revelação de que para levar a cabo certas filmagens, por vezes maltrataram-se animais, como golfinhos. Jean Michel garante que este era um procedimento normal entre os realizadores da época, e que o pai considerava que os fins justificavam os meios - embora condene o acto.

No livro, Jean Michel exprime também a sua mágoa e desilusão. Nem sempre as relações familiares foram fáceis, e não se pode dizer que não tenha havido motivos para isso. Casado com Simone, Jacques Cousteau manteve durante mais de uma década, secretamente, uma relação extraconjugal com Francine Triplet, de quem teve dois filhos, Diane e Pierre Yves. A vida dupla durou até ao fim da sua vida - só no funeral do comandante, em 1997, as duas famílias tiveram conhecimento da existência uma da outra. Entretanto sucedem acontecimentos importantes na vida de Cousteau, como a morte do filho mais novo, Philippe, num acidente de hidravião, a 28 de Junho de 1979, no Mar da Palha, em Alverca, na costa portuguesa. O filho amado - com quem o capitão fazia a maioria das expedições, considerado o seu natural herdeiro - seria sepultado no mar, como Jacques Cousteau queria para si, embora não tenha sido esse o seu destino. Um escasso ano mais tarde, nascia o primeiro filho da relação com Francine, que se oficializou em 1990, meses após a morte de Simone, primeira mulher e companheira de muitas expedições a bordo do «Calypso» - e no mesmo dia do aniversário da morte de Philippe... Rudes golpes para Jean Michel, último «sobrevivente» do primeiro casamento e de uma época.

Nos últimos anos de vida do pai, Jean Michel acusou-o de vaidade excessiva e de perseguir honrarias. Jacques também não primava pela meiguice. Em 1991, quando o Parque Oceânico Cousteau em Paris encerrou, um ano após a inauguração (tendo custado 120 milhões de francos), o comandante culpou directamente Jean Michel pelo fracasso. «Não foi o parque que fracassou, foi o meu filho que fracassou», disse. E rematou, amargo: «Não é por alguém ter nascido do nosso esperma que tem as qualidades para nos substituir...» Mais tarde, em 1996, levaria mesmo o filho a tribunal, por usar o apelido Cousteau na denominação do «resort» de Jean Michel nas ilhas Fiji. O «eco-resort» passaria a chamar-se especificamente Jean Michel Cousteau Fiji Resort - e em 2005, ganhou o prémio Condé Nast para Small Resort Environmental Design.

Foi nesse mesmo ano que se iniciou outra batalha familiar, desta feita pela posse do «Calypso», depois de o antigo caça-minas da II Guerra Mundial ter sido abalroado por um cargueiro e naufragado em Singapura. A madrasta de Jean Michel, Francine, queria reparar o navio nas Bahamas, e ancorá-lo nas Caraíbas, fazendo dele um museu. Jean Michel opunha-se a que o navio da sua meninice saísse de França, considerando-o património cultural do país. O tribunal atribuiu o «Calypso» a Francine, presidente da Societé Cousteau, e desde 1998 que este se encontra a ganhar ferrugem no porto francês de La Rochelle. Também o rumo da Société Cousteau não é certo, acumulando dívidas e sendo alvo de muitas críticas por parte de Jean Michel, que considera que esta perdeu o rumo e não apresenta trabalho válido há muito.

Talvez por isso o primogénito tenha querido criar a sua própria fundação, a Ocean Futures Society, e talvez por isso a tenha baseado longe, nos EUA, onde vive. Rancores esquecidos, prefere guardar a admiração e a aprendizagem que apenas pôde adquirir por ser um Cousteau. Este ano, o filho de peixe que provou saber nadar prepara-se para produzir oito documentários: dois sobre a Amazónia, dois sobre o Mississipi, um sobre as orcas, outro sobre baleias beluga, outro ainda sobre a vida dos crustáceos, e possivelmente um último acerca da ilha de Truk, no Pacífico, onde repousam no fundo do mar 35 navios, três submarinos e um avião da II Guerra Mundial. Na corrida de obstáculos que foi a vida dos Cousteau, o testemunho parece ter sido passado com sucesso.

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ENTREVISTA
«Ainda sonho construir uma cidade debaixo de água»

Em 2007 vai produzir uma série de oito documentários, entre os quais um sobre a Amazónia, 25 anos após lá ter estado com o seu pai. Essa expedição vai ter um sabor especial, ainda por cima fazendo os seus filhos parte da equipa?

«O Regresso à Amazónia» vai dar ao público uma espécie de relatório actualizado sobre a importância da floresta tropical para cada um de nós, habitantes do Planeta. Os meus filhos fazem parte da expedição e ambos partilham o mesmo amor pelo oceano como eu e o meu pai.

Qual foi a coisa mais importante que aprendeu com o seu pai?

Persistência e fé.

E com a sua mãe?

Amor e perdão.

Refere-se à relação que o seu pai manteve com outra mulher enquanto ainda era casado com a sua mãe, e de quem teve dois filhos ilegítimos? Foi por isso que o Jean Michel e o seu pai se zangaram, antes dele morrer, em 1997?

Não houve zanga nenhuma. Fizemos as pazes antes da sua morte, já a minha mãe não era viva há anos. E tenho um meio-irmão e uma meia-irmã.

Nem sempre as relações com o seu pai foram fáceis… Por que sentiu necessidade de escrever o livro «O Meu Pai, o Capitão», em 2004? Para humanizar o mito e desmistificar o homem?

Não. Foi para esclarecer as coisas, para pôr os pontos nos is.

Dá-se com os seus meios-irmãos, ou a vossa relação é tão «boa» como a que mantém com a sua madrasta, Francine?

Não tenho oportunidade de ver a Diane nem o Pierre Yves, porque o acesso a eles me é vedado pela sua mãe, Francine. É triste, mas não é uma escolha minha.

Esteve envolvido numa batalha jurídica com a sua madrasta, a propósito da tutela do «Calypso», ancorado no porto francês de La Rochelle desde 1998, e que o tribunal acabou por atribuir a Francine, em Novembro de 2005. Ainda hoje o «Calypso» continua à espera de restauro, e no «site» da Société Cousteau, presidida pela sua madrasta, são pedidos donativos para o salvar. O que sente face a esta situação?

A equipa que dedicou a vida à minha verdadeira família e ao «Calypso» conseguiu, felizmente, mantê-lo em França. Espero que a Société Cousteau, que agora tem a responsabilidade do navio, honre os desejos do meu pai e da minha mãe, que não queriam que um monumento histórico fosse transformado num nada respeitável circo.

Exactamente o que critica na direcção e gestão da Societé Cousteau por parte da sua madrasta? Tem medo que abra falência?

O meu único comentário sobre a Société Cousteau é que, desde que o meu pai faleceu, em 1997, não produziu nada de significativo e continua a angariar dinheiro público.

Foi por isso que decidiu fundar a Ocean Futures Society, em 1999, sediada em Santa Bárbara, na Califórnia?

Fundei a OFS em honra da memória e filosofia do meu pai.

Por que escolheu os EUA para viver, e não a França, por exemplo?

Aconteceu um pouco por acaso… Vivo cá desde 1968, quando comecei a trabalhar com o meu pai na pós-produção de filmes em Hollywood… E nunca voltei…

Aceitou ser a imagem da Gant, juntamente com os seus filhos Fabien e Céline, em 2007. Como é que isso se coaduna com o seu projecto de vida em prol dos oceanos?

A Gant vai permitir-nos chegar a muita gente a que provavelmente não chegaríamos de outro modo. A nossa mensagem - «Protege o oceano e proteger-te-ás a ti» - vai ser passada a todos os clientes da marca. E como qualquer relação de negócios que eu ou o meu pai mantemos passa por patrocinadores, também a Gant é um patrocínio de alta qualidade.

Como foi crescer a bordo do «Calypso», entre expedições? Faltava à escola?

Faltei de facto a alguns períodos escolares nos anos 50, pois o transporte não era tão fácil como é hoje. Eu estava sempre a «apanhar» o «Calypso» e os meus pais (de avião), e passava aproximadamente quatro meses por ano a bordo. Não havia ninguém para me ensinar, como na escola, mas eu aprendia com 20 pessoas a bordo - sobre ciência, navegação, mecânica, geografia, cultura, etc.

Que memórias guarda desses tempos de vivência no Calypso?

Como mais novo, com o meu irmão já falecido Philippe Cousteau morreu em 1979 num acidente de hidravião, em Lisboa, aos 39 anos, eu fazia todos os trabalhos básicos - pintava o barco, limpava as casas de banho… Isso ensinou-me a respeitar todas as profissões. A minha mãe passava mais tempo no barco do que o meu pai, o meu irmão e eu juntos. Ela era a alma daquele navio.

Lembra-se do que sentiu quando mergulhou pela primeira vez, aos sete anos, com o equipamento inventado pelo seu pai?

Lembro-me de querer falar com o meu irmão debaixo de água e do meu pai me estar sempre a pôr o respirador na boca…

Como é crescer com o apelido Cousteau? Uma responsabilidade? Uma sombra?

O meu pai não era conhecido quando eu era criança, por isso nunca sofri com a fama. «Carregar» o nome «Cousteau» é uma enorme responsabilidade, que eu tento honrar diariamente o melhor que sei.

O que mais admirava no seu pai?

O seu sentido de curiosidade, de aventura e descoberta.

E das suas vitórias políticas, de quais se orgulha mais? Do Prémio de Herói Ambiental que recebeu das mãos de Al Gore, em 1998? De ter conseguido que George W. Bush classificasse as Ilhas do Nordeste do Havai Monumento Marinho Nacional, por causa das baleias de bossa?

Sim, acho que ter sido uma das pessoas que convenceu o Presidente Bush a atribuir essa classificação foi a maior realização da Ocean Futures Society até agora.

Donde lhe surgiu a ideia de criar um ecoturismo nas ilhas Fiji?

O projecto das Fiji foi uma oportunidade para mostrar à gigantesca indústria do turismo que se pode ser amigo do ambiente e ter um negócio economicamente rentável.

Esteve em Lisboa em 1998, por altura da Exposição Mundial sobre os Oceanos, como porta-voz do pavilhão dos EUA. Que memórias guarda da cidade?

Tenho muito boas recordações da Expo 98. Estive lá três dias. Estive em Portugal algumas vezes mas não conheço bem o país. Gosto das pessoas, da comida e do vinho. E trago sempre comigo um «sustainable fish card» do Oceanário de Lisboa, uma régua que se usa para ver se o peixe tem o tamanho legal, sustentado, para ser vendido.

Continua a sonhar construir uma cidade submarina? Já o seu pai, em 1965, tinha criado uma casa submarina onde seis pessoas viveram durante um mês, a cem metros de profundidade.

Sim, ainda sonho construir uma cidade debaixo de água, mas isso terá de ser noutra vida. Por agora, há muito a fazer para preservar a qualidade de vida do ser humano neste planeta.

 




     

 

Céline Cousteau, Fabien Cousteau e Jean Michel Cousteau

CAMPANHA Tal como a família Kennedy no ano passado, Céline, Fabien e Jean Michel Cousteau são a imagem da Gant para 2007

FAMÍLIA Cousteau na «era Calypso»: Jacques-Yves, Simone, Jean Michel e Philippe

O primeiro mergulho de Jean Michel, aos 7 anos

Eco resort nas Fiji

Francine e filhos no funeral de Jacques Cousteau, com Jean Michel em fundo

O «Calypso» enferruja no porto de La Rochelle

A luta para salvar a baleia Keiko, em 1999

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