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ÚNICA No. 1651 - 19 Junho 2004
Cultivar o hábito
Cresce o cultivo caseiro de «cannabis»
em Portugal. As pequenas plantações clandestinas ocupam
despensas ou arrecadações e obrigam a cuidados diários.
Texto de Katya
Delimbeuf
Fotografias de Rui Duarte Silva
Dificilmente um agricultor de
«cannabis» mostra a sua plantação. Teme
rumores na vizinhança, zangas de prédio, buscas policiais
e, em última instância, dois a quatro anos de prisão.
Em Portugal, a partir dos 50 gramas, já se pode ser acusado
de tráfico - e é comum haver mais do que isso em casa
destes agricultores domésticos. O caso de Joringel Gutbub,
o alemão de 17 anos preso durante cinco meses por causa da
plantação de marijuana do pai, está presente
na memória de muitos. Por isso, não há nomes
reais nem caras nesta reportagem. João (nome fictício)
tem 30 anos, é «designer» e vive em Lisboa. Há
dois anos que cultiva «a sério», sem ser a brincadeira
de pôr umas sementes num vaso.
O cheiro silvestre que traz na roupa,
nas mãos, no cabelo, ilustra bem a sua relação
com o cânhamo. Consome erva desde os 17 anos e fuma em média
cinco a seis «charros» por dia - cerca de um grama. Apesar
de ser um habituado, a «cannabis» continua a relaxá-lo.
Gosta de fumar erva essencialmente quando está stressado, mas
não só.
Quando começou a plantar «indoor» (dentro de casa),
há dois anos, nada do que era necessário existia em
Portugal. Por isso, teve de comprar as sementes pela Internet, num
«site» espanhol. Os pacotes, com 10 a 15 unidades, custam
entre 15 e 150 euros, consoante as espécies e a qualidade.
João cultiva essencialmente «híbridas»,
mas também há «índicas» (provenientes
da zona abaixo dos 30º de latitude: México, Colômbia,
Tailândia, Nigéria) ou «sativa» (da zona
acima da latitude 30º: Marrocos, Líbano, até ao Nepal).
LÂMPADAS E VENTOINHAS
Começou com três plantas, numa arrecadação
do jardim caseiro: a sua «growroom», como se diz na gíria.
Comprou uma luz de 400 Watts (entre 100 e 120 euros), falou com um
electricista e disse-lhe que queria montar um sistema HPS (luz amarela,
para floração). Além das sementes e da luz (indispensável
para quem cultiva dentro de casa mas não para o ar livre),
«é fundamental que o ar seja renovado», o que pode
ser feito com uma simples ventoinha. «A temperatura ideal é
de 24º-26º C», explica João, que dois anos passados consegue
reconhecer sem dificuldade uma planta «doente, com bolor, ou
com excesso de adubo, pelo modo como as folhas encaracolam».
Depois de plantadas as sementes, é só regar - em média
dia sim, dia não - e esperar que as «meninas» cresçam.
«Meninas» sim, porque só estas é que prestam:
«Só se fumam as fêmeas». Ficamos a saber
que as plantas de cânhamo têm dois sexos. Depois de provocada
a floração, já se consegue reconhecer o sexo:
os machos têm bolinhas, as fêmeas têm pêlos.
«Devem-se matar os machos, porque se se deixam os dois juntos
eles polinizam-nas, e a colheita perde qualidade», explica João.
«As cabeças das plantas ficam cheias de sementes».
Ora, o melhor para fumar são cabeças
sem sementes, embora aquilo que em muitos casos se vende na rua sejam
cabeças cheias de sementes ou folhas, «que sabem muito
pior». João não tem dúvidas: «A erva
cultivada em casa não tem nada a ver com a que se vende na
rua. É como ter a minha própria horta».
Mortos os machos, qual cultura chinesa ao contrário, dão-se
18 horas de luz às plantas, quando elas estão em período
de crescimento, ou 12 horas, para provocar a floração.
As luzes estão ligadas a relógios, funcionando automaticamente.
As flores das fêmeas crescem, ganham pêlos, produzem resina,
transformam-se em cabeças. Depois, estas são cortadas
e postas a secar num sítio escuro, como um guarda-fatos, penduradas
em posição invertida. No fim, vem o melhor: fumar aquilo
que se plantou.
O máximo de plantas que João
chegou a ter foram vinte «clones». Mas não é
a quantidade que define a qualidade da colheita, diz ele. «Os
clones não crescem muito. E é a altura das plantas e
o tamanho que interessam». Supostamente, cada colheita, de três
em três meses, dá um grama por watt de luz e por metro
quadrado - ou seja, uma lâmpada de 400 Watts deveria alimentar
400 gramas de erva. Mas o máximo que João conseguiu
foram 200 gramas (cerca de 1.200 «charros», ou seja, 200
dias fumegantes dele). A produtividade é outra grande diferença
entre cultivar «indoor» ou «outdoor»: uma
cultura ao ar livre só dá uma colheita por ano, ao passo
que com um cultivo entre paredes conseguem-se três ou quatro
colheitas.
Em fóruns na Internet trocam-se dicas e conselhos em relação
ao cultivo como quem frequenta um «chat» de jardinagem.
E agora começou a publicar-se a edição portuguesa
da revista «Cânhamo», que faz ponto de honra em
aportuguesar o nome da planta para canábis. João nota
um aumento do número de «agricultores caseiros»
em Portugal. «Basta ver as lojas que há hoje e que não
havia há dois anos. Actualmente, quem quiser comprar luzes,
terra ou adubos só precisa de ir à Cogniscitiva, no
Bairro Alto, em Lisboa. E os produtos estão sempre esgotados...
Depois, há mais duas lojas, uma em Braga e outra prestes a
abrir, nas Caldas da Rainha».
Em Espanha, já com anos de experiência na matéria,
há «centenas de growshops legais e milhões
de cultivadores caseiros», afiança João. Aliás,
ali, é legal vender sementes e ter «growshops».
Em Barcelona, de 20 a 22 de Fevereiro, houve uma feira dedicada ao
cultivo da «cannabis». Há inúmeras associações
e até um Partido Canábico, que foi a votos e obteve
4.176 votos nas eleições municipais de Maio de 2003.
PROIBIÇÃO RECENTE
De resto, se formos a ver, a proibição do cânhamo
e a antipatia institucional que este granjeou é relativamente
recente: as plantações começaram a ser proibidas
a seguir à II Guerra Mundial. Alguns defendem que foi para
não ameaçar o petróleo, dado o crescimento muito
rápido da planta e o facto de poder servir de matéria-prima
combustível.
No entanto, e só para dar alguns exemplos, é sabido
que as cordas das caravelas, na altura dos Descobrimentos, eram feitas
de cânhamo, para serem mais resistentes à água
salgada. E nem é preciso recuar tanto. Basta ir a uma loja
de animais e pedir mistura para pássaros, para se ver sementes
de cânhamo. A própria União Europeia atribui subsídios
para plantações de cânhamo com baixo teor de THC
(tetrahidrocannabinol), a «substância que faz rir».
João aconselha toda a gente que gosta de fumar erva a cultivar.
«Digo sempre: não compres, planta. Ajudas a acabar com
o tráfico e sabes o que consomes. Pela minha parte, há
dois anos que não dou dinheiro a ninguém». Mas
cultivar implica muito trabalho diário e dedicação.
«Às vezes, duas horas por dia... É como um animal
de estimação», explica. Fazer férias é
complicado - se estiver uma semana fora, as plantas morrem. Ele garante:
«Há uma relação de amor entre mim e as
minhas plantas. Mesmo que produzisse em quantidade para vender, não
conseguiria. Seria como vender uma parte de mim».
«SOU NORMAL, PAGO OS MEUS IMPOSTOS»
Atitude idêntica têm outras duas pessoas que cultivam
em casa. Pedro, 24 anos, é casado e vive no Norte do país.
Trabalha por conta própria e cultiva «cannabis»
há três anos. Tem um metro quadrado - a unidade de medida
utilizada neste ramo agrícola - e uma luz de 400 W. Para ele,
é «o suficiente». «Sinto-me feliz por saber
aquilo que fumo e por não contribuir para o enriquecimento
dos barões da droga. Sou uma pessoa normal, trabalho, pago
os meus impostos e cumpro todas as responsabilidades de qualquer cidadão.
Por alma de quem é que tenho de levar com leis hipócritas?»,
questiona.
António é mais novo nestas lides. Cultiva há
menos de seis meses: 50 cm2 divididos por quatro plantas «super
skunk» - para ele, «manifestamente pouco». Uma cultura,
explica, «demora três a quatro meses no mínimo
e a colheita não satisfaz o meu consumo».
Com 26 anos, este estudante de línguas e literaturas modernas
assegura que não há problemas com a vizinhança,
até porque «as plantas praticamente não têm
cheiro». Isto é contrariado por vários visitantes
de «growrooms» nacionais e estrangeiras, mas ele insiste:
«São rumores que levam as pessoas a pensar que elas soltam
cheiro, mas não é verdade: fumar um charro produz muito
mais cheiro do que as plantas propriamente ditas».
Informação disponível em:
www.growroom.net
www.overgrow.com
www.canhamo.net («homepage»
da revista portuguesa)
www.hortadacouve.com
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Plantação
doméstica de marijuana, com luzes e ventilação:
horta de sonhos
Cânhamo
macho - os machos cortam-se
Cânhamo
fêmea em flor - as «meninas» fumam-se
Plantas
em crescimento numa arrecadação
A
«Cânhamo», revista bimestral «de cultura canábica»,
foi lançada no dia 6 deste mês
Camponês
do Norte do Afeganistão fumando «cannabis»
Um
relógio regula o tempo de funcionamento da luz
Um
indiano sikh com uma bebida de marijuana antes de uma cerimónia
religiosa
Participante numa manifestação pela legalização
da erva em Londres
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