ÚNICA N. 1730 / 23 Dezembro 2005 Um fim sem B.leza Na semana em que comemora dez
anos de vida, o B.leza vê-se na iminência de sair do palácio
que sempre o albergou. Só pela mistura de públicos, o B.leza distingue-se dos outros sítios que passam música africana. Talvez seja a fusão entre o espaço europeu e a música africana que contribui para isso, ou o acaso de por ali passarem muitos cantores cabo-verdianos - e Cabo Verde ser mais Europa que África. O certo é que ali sempre conviveram brancos e negros - e esse é um dos segredos do sucesso do B.leza. É um misto de café-concerto e de bar-dançante, onde os pares se constituem na pista de dança, música a música. Dançam-se mornas, coladeras, funanás, ouve-se Tito Paris ou Dany Silva, Celina Pereira ou Nancy Vieira, que já fazem parte da história daquela casa. Agora, o local que o acolheu durante dez anos, arrendado ao Casa Pia Atlético Clube há 80, e pertença de um particular, corre sério risco de deixar de sediar o espaço. «Há uma questão legal entre o proprietário e o Casa Pia Atlético Clube, que é através de quem nós temos um contrato de arrendamento», diz Sofia Saudade e Silva. Neste momento, vive-se o impasse. Apesar de ter havido uma conversa com a Câmara de Lisboa, o B.leza continua sem saber para onde - nem quando - irá. Não há datas nem certezas. No abaixo-assinado que circula na Internet em www.marvirtual.com/bleza, e que conta com 1.350 assinaturas, lêem-se comentários de gente tão diversa como professores, realizadores, estudantes, arquitectos ou anónimos, mas sempre a mesma mensagem: «O B.leza é um espaço onde a lusofonia é um facto. Com sítios como este não podem existir tensões como as que eclodiram em França porque este é um local de encontro, de comunicação, de integração», escreve Lurdes Alexandre, socióloga. Nesse sentido, quase pode dizer-se que o B.leza fez mais pela divulgação da cultura dos PALOP e pela integração do que muitas políticas governamentais. A diversidade do público é talvez das coisas mais fascinantes - e interessantes. O B.leza deve ser dos poucos sítios de Lisboa onde um pedreiro ou um operário pode dançar com uma juíza sem que o saibam - e sem que isso importe. «O que é constante é a mistura. Os brancos vão chegando mais cedo, porque querem mesa e, ao longo da noite, vai escurecendo», explica Madalena Saudade e Silva, uma das três responsáveis do espaço, a par da irmã Sofia, e de Alcides Nascimento (filho do cantor cabo-verdiano Bana), responsável musical. E a mistura foi sempre um elemento muito presente no projecto, desde o início, desde logo no nome de família, que conjuga a doçura africana ao nome mais português, e nas pessoas que ali trabalham - as irmãs Saudade e Silva, portuguesas, e Alcides, cabo-verdiano. Madalena estava longe de imaginar, há 11 anos - os mesmos que ela trabalha aqui «à séria» -, que alguma vez fosse ter um espaço de música africana. Antes disso, tinha ela 18 anos, «vinha obrigada, com a irmã, a avó e o batalhão de amigos, ajudar o pai» Saudade e Silva, que lhes disse que tinha encontrado «um espaço muito bonito». O pai era advogado do Casa Pia, e soube através deste que tinham uma parte do palacete para arrendar. Como também era amigo do cantor Dany Silva, Saudade e Silva falou com ele. A ideia era fazerem daquilo um espaço de música africana. «O sítio era muito diferente», recorda Madalena, «pintado de branco, com cortinas azul-acinzentado, em tafetá». Ainda não era tempo do B.leza, mas sim do Baile, o nome dado ao espaço. Na altura, Madalena nem gostava de música africana e queria era frequentar o Frágil e os Três Pastorinhos, no Bairro Alto. Não chegou a conhecer o Noites Longas, o bar que antecedeu o B.leza, entre 1985 e 1989, um marco cultural na noite de Lisboa. «Era o espaço mais alternativo em Lisboa», que juntava as pessoas do meio boémio, cultural e artístico, e «onde se assavam frangos no pátio». O Noites Longas ficaria para sempre associado a uma personagem inesquecível da noite de Lisboa, o Zé da Guiné, um negro altíssimo, que parecia de ébano, com um físico invejável, que vestia da forma mais incrível e ousada, ora encarnando a figura de «gangster» ora a de aristocrata ou de outra coisa qualquer. Entre 1985 e 1985, o Noites Longas, dinamizado pelo Zé da Guiné, Hernâni Miguel e Mário Duarte, foi palco de inúmeros «eventos culturais», de lançamentos de livros a passagens de moda ou concertos dos Ena Pá 2000. Ao Noites Longas seguiu-se O Baile, em 1988, «que era basicamente um chá dançante, para pessoas mais velhas, com um ambiente mais formal», lembra Madalena. Por ali passaram nomes como Cesária Évora, Tito Paris, Celina Pereira ou Paulino Vieira. Até que, em 1995, criou-se o B.leza, na altura com a participação de Chico Morgado e Tito Paris. «O nome surgiu num brainstorming com os músicos na Garça, uma tasquinha ao pé do Enclave onde se ia comer uma cachupa com ovo estrelado às tantas da manhã. E alguém se lembrou, e bem, do B.leza, o poeta cabo-verdiano cujo verdadeiro nome é Francisco Xavier da Cruz». B.leza ficou. E quem for atento pode ver, nas paredes cor de morango do salão de baile, versos do B.leza escritos em crioulo, que falam do Tejo e da saudade do imigrante. Voltando então a Madalena e a como ela foi ali parar. Em 1995, Saudade e Silva faleceu de doença prolongada. «Quando o meu pai morreu, eu e a minha irmã Sofia achámos que conseguiríamos manter o sonho do meu pai vivo. Foi um pouco uma forma de prolongar o projecto do meu pai», de perpetuar a sua memória. Na altura, tanto Madalena como a irmã cursavam Direito, e tencionavam ser advogadas, seguindo a tradição familiar (o avô também era advogado, nas Caldas da Rainha). De repente, a vida tomou um rumo totalmente diferente. As irmãs Saudade e Silva convidaram Alcides Nascimento, filho do cantor cabo-verdiano Bana, para responsável musical, e deram início a uma aventura que tem hoje dez anos. «Esta casa é realmente um projecto de amor», afirma Madalena. Por aqui passaram nomes como Dany Silva ou Tito Paris, que gravou no B.leza um disco duplo ao vivo, Maria Alice, Rui Veloso, Mariza, Celina Pereira. Dany Silva, que trabalhou no B.eleza desde sempre, sempre se sentiu em família ali. «É um ambiente extraordinário que se vive naqueles espaço, muito sui generis, entre africanos e não africanos, onde reina a harmonia. Assisti a muitos casamentos entre raças diferentes que ainda hoje duram», comenta. Ali se fizeram nomes como Nancy Vieira, que descobriu que queria ser cantora profissional naquele palco. Quanto ao futuro, apesar de admitir estar «na agonia da indefinição», Madalena tem fé e quer acreditar que as coisas se vão resolver. Sabe que «tudo se transforma», mas o importante para ela é «manter o espírito e o projecto». Espera que o conceito do B.leza seja mais importante que o espaço físico, apesar daquele ser «um local privilegiado de Lisboa». Tito Paris considera que «para o B.leza continuar a existir noutro espaço, terá de encontrar um lugar à altura do nome do poeta - porque o B.leza é um poeta cabo-verdiano tão grande como Fernando Pessoa é para Portugal». Se calhar, Madalena até vai aproveitar a mudança para «acentuar a vertente cultural e pedagógica, com ateliês de música, de dança, de restauro ou de jóias. Gostava que o B.leza pudesse ser um minipólo cultural, onde toda a gente possa aprender. E ensinar». Daqui a 10 anos, imagina-se a fazer um projecto «como o B.leza». «Um projecto cultural que faça a ponte entre várias culturas». O facto de dizer «como o B.leza» significa que não acredita que o B.leza continue? «Quero acreditar que sim».
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