ÚNICA No. 1764 / 19 Agosto 2006

Mergulho no grande azul

Nos últimos anos, parecem ter brotado como cogumelos: mergulhadores, escolas de mergulho, agências que vendem destinos de mergulho... São cada vez mais os adeptos de Jacques Cousteau que se deixaram seduzir por esse universo feito de paz, beleza e azul. Um outro mundo, mesmo ali à mão, abaixo da linha de água.

Textos de Katya Delimbeuf
Fotografias de Vasco Pinhol, José Ventura, Carla Ribeiro e Alberto Frias

Enchouriçados num fato de neoprene de 7 milímetros, como Uma Thurman em Kill Bill, vogamos ao largo da baía dos Porcos, em Sesimbra, prontos para o nosso primeiro mergulho em alto mar. Colete vestido debaixo do fato, fato de mergulho bem colado ao corpo, carapuço por cima da cabeça por causa do frio que se sente lá em baixo. O mar de Sesimbra está a 18 graus centígrados, mas a 10 metros de profundidade a coisa pia mais fino. Por isso, calçam-se botas de borracha e luvas para aguentar mais tempo no outro mundo. «É normal esta ligeira sensação de asfixia junto ao pescoço?», pergunta Carla, uma das mergulhadoras que também vai ser baptizada na água do mar. «Eu já tinha feito mergulho, mas não me lembrava deste peso todo».

Colete, fato e carapuço vestidos, já «só» falta o cinto de pesos que nos ajudará a descer (que tem uns bons 10 quilos) e a garrafa de oxigénio que nos põem às costas (que pesa 16,7 quilos). Para pessoas não muito pesadas (como é o caso da repórter), em que o peso dos artefactos quase perfaz metade do seu, a sensação de aperto do fato em conjugação com o fardo do material não ajudam ao conforto. Além de precisarmos de ajuda para nos mantermos de pé (o que não deixa de ser embaraçoso), o calor que se sente dentro do fato é muito. «Então é isto o mergulho?» Tanta coisa, tantos olhos brilhantes... para isto?
A resposta não tarda, dali a cinco minutos, quando o desconforto é substituído pelo flutuar dentro de água e o calor dá lugar à frescura. Pergunte-se a qualquer mergulhador, e a resposta é unânime: a pior altura é a espera, depois de equipados e antes de se entrar dentro de água. Minutos mais tarde, quando a direcção do corpo é descendente, rumo ao fundo, a realidade passa a ser outra. Os olhos captam o azul ou o verde do mar, filtrado pelos raios de sol que o atravessam, o único som que se ouve é o da nossa respiração, através das bolhinhas de ar que saem do escafandro, e a visão é o sentido mais recompensado.

Concentramo-nos no nosso parceiro de mergulho (uma das regras de ouro é nunca mergulhar sozinho), no caso o instrutor João Esteves, que nunca me perde de vista e me vai guiando debaixo de água. Agora, a minha única preocupação é ir equalizando, ou seja, apertar o nariz para tentar que os ouvidos estalem e não doam à medida que se vai descendo.
A 10 metros de profundidade dá-se graças a Deus pela quantidade de camadas de neoprene que nos mantêm aquecidos - Sesimbra não é o Caribe -, e toda a atenção foge para o admirável mundo novo que surge à nossa frente. Pelo nosso ângulo de visão passam pequenos peixes transparentes, cardumes amarelos e laranja, robalos, lírios... Seguimos uma lula e damos de caras com um polvo, que se esconde debaixo de uma rocha depois de almoçar uma amêijoa. Há conchas e aliótis no fundo do mar, e os 34 minutos que permanecemos debaixo de água passam a correr. Fomos até 10 metros de profundidade, o que não envergonha ninguém num baptismo.
Na véspera, tínhamos passado pela piscina, a 2,5 metros de profundidade, onde fizemos exercícios de respiração e aprendemos a inspirar e expirar só pela boca, através do regulador. Explicam-nos como usar os botões azul e negro do colete, para expelir o ar e descer, ou para encher de ar e vir à superfície, e a linguagem gestual para comunicar debaixo de água. Um curso normal de mergulho tem 30 horas, divididas entre cinco módulos de duas horas de teoria, outro tanto de piscina e ainda mais outro de mar. O nosso, compactado para satisfazer prazos de reportagem, conteve apenas a informação essencial.

No regresso à superfície, só a impressão nos ouvidos - a sensação é a de estar engarrafada dentro de mim mesma - interfere no brilho que se traz nos olhos. É assim quase sempre, asseguram os instrutores da Cipreia, a escola de mergulho que nos levou.
Não é difícil perceber porque é que tantos se apaixonam pelo mergulho - e de forma tão arrebatadora. Muitos mergulhadores são pessoas com profissões exigentes, com elevado grau de stresse, que encontram nesta actividade uma ruptura com a rotina.
Foi assim com Miguel Queirós, 30 anos, mergulhador desde os 22, quando fez umas férias na Tailândia. Hoje, mergulha «onde houver água». Semanalmente, faz-se ao mar com amigos em Sesimbra, nas Berlengas, em Sines, em Sagres. Explica assim a sua paixão: cresceu a ver os documentários de Jacques Cousteau e a achar que aquele mundo nunca lhe seria acessível. Quando percebeu que isso estava à distância de um curso... não hesitou. Gosta essencialmente «da ausência de peso, da harmonia que há no fundo do mar ao contrário do stresse da superfície, da solidão do mergulho apesar de não se mergulhar sozinho». Remata: «Há momentos religiosos debaixo de água, em que acontecem coisas inesperadas - como um bando de golfinhos aparecer ao nosso lado ou ouvir-se o cântico das baleias».

De resto, só um estado como o da paixão explica que um episódio como o do Verão de 2004 não tenha demovido Miguel um centímetro que fosse. A manchete do EXPRESSO dava conta do regresso a casa de uma dezena de mergulhadores que tinham andado perdidos no mar Vermelho. Miguel era um deles. Após 14 horas à deriva com ondas de vários metros e «a noção do quão difícil é ser-se encontrado no mar alto», a primeira coisa que ele fez no dia seguinte - apesar de desidratado, sem comer nem dormir há mais de meio dia - foi... mergulhar. Claro.
Como momentos especiais, destaca o contacto com tubarões-baleia, em Malpelo, no mar da Colômbia, ou a sensação de estar rodeado de tubarões-martelo a dois metros de distância... Desde 2001 que Miguel, à semelhança da maioria dos mergulhadores, faz todos os anos férias de mergulho. Já rumou ao mar Vermelho, às Maldivas, ao Panamá, a Cuba, Moçambique, Guadalupe e Colômbia. Admite que «para quem está de fora possa parecer um pouco fundamentalista estas viagens todas dedicadas ao mergulho», mas garante que não é assim. No entanto, já «converteu» uma série de amigos à actividade. E confessa que dificilmente consegue imaginar a sua vida sem mergulho.
A trabalhar no controlo de gestão da EMI-Valentim de Carvalho, o louro de olhos verdes tem noção de que o salário médio português não é o mais adequado à prática do mergulho. Mas ressalva que é sobretudo o investimento inicial que fica caro. Um equipamento completo, com fato, escafandro e botija, cifra-se nos 1000 euros, um curso ronda os 300 a 400 euros, cada mergulho fica em cerca de 30 euros. Há actividades mais baratas, é verdade, mas também é possível alugar o equipamento e reduzir a despesa para uns simples 30 euros mensais. Há um lado social fortemente presente no mergulho, feito de jantares onde circulam fotografias da última viagem ou das últimas aventuras e onde os graus e as profissões se diluem num ambiente informal. Esse é um dos factores que atrai Jorge Correia, gestor de 35 anos, mergulhador entusiasta há três. «É um ambiente muito agradável, em que muitas vezes as pessoas não imaginam o que as outras fazem profissionalmente e onde o tema de todas as conversas é o mergulho». Agrada-lhe o facto de ser tudo «tu cá, tu lá», de não se falar de trabalho, «de se ir para um sítio onde não há telemóveis e não se está contactável». Outra coisa que aprecia é o facto de o mergulho ensinar «a fazer a gestão do medo, visto não se estar num meio conhecido».

Há três Verões, estava de férias no México com uma amiga que fazia mergulho e decidiu experimentar. «Com água a 30 graus centígrados, corais e peixinhos de todas as cores, foi paixão imediata», conta. Desde então, todas as férias que faz são dedicadas ao mergulho - e diz isto com um sorriso de orelha a orelha. Conheceu o fundo do mar das Honduras, da República Dominicana, de São Tomé, do mar Vermelho, que repetiu por duas vezes, das ilhas Caimão... As próximas férias já estão marcadas: serão no Faial, nos Açores, «para ver atuns, cachalotes, meros». Gostava ainda de ir a Malpelo, no mar da Colômbia, «onde há auto-estradas de tubarões-martelo e a visibilidade pode ser má por haver peixe a mais», graceja, e de «mergulhar na Austrália, dentro de uma jaula, para ver o tubarão-branco». Ele, que já viu tubarões de perto, explica que não se sente medo: «Se aparecer um tubarão pela frente é a felicidade». Confessa que convence meio mundo à volta dele a mergulhar - já converteu sete -, incluindo «obviamente» a namorada, médica, que vai com ele de férias de mergulho para todo o lado. Descreve da seguinte forma aquilo que sente ao descer às profundezas oceânicas: «Entra-se num mundo novo, completamente diferente do que se vê à superfície. A linha de água é uma fronteira para outro mundo, com outro ecosistema, com florestas... É-se convidado num mundo que não é o nosso - e isso é um privilégio».

Mas não se pense que o mergulho é um desporto essencialmente masculino. Como confirma Nuno Maria, da Cipreia, a escola de mergulho que mais cursos dá em Portugal, «mulheres e homens estão praticamente equivalentes neste momento». Que o diga Isabel Ribeiro, mergulhadora há cerca de dois anos. Aos 50 anos, a professora catedrática do Instituto Superior Técnico e directora do Instituto de Sistemas e Robótica, «há 48 anos apaixonada pelo mar», decidiu que «não queria morrer sem fazer um curso de mergulho». Numa ida ao Faial, nos Açores, para acompanhar um robô submarino a 600 metros de profundidade, viu «coisas fabulosas». A partir daí, foi tirar o curso e fazer as primeiras férias de mergulho, no ano passado, no mar Vermelho. «Foram 20 valores», diz. Este ano, as férias já estão marcadas; destino: Cabo Verde. Para «mergulhar, claro». Já não se imagina sem férias de mergulho pelo menos uma vez por ano. «Faz-me salivar», explica.
Na Cipreia, a primeira escola de mergulho particular a abrir em Portugal, em 1992, confirma-se a tendência de aumento da procura, com um pico sasonal de Maio a Setembro. «Em 1992, dávamos 50 cursos por ano», conta Nuno Maria. «Hoje damos 400». Desde a sua criação, a Cipreia formou cerca de 4000 mergulhadores. E quantos há em Portugal? «Depende do que considerarmos um mergulhador», explica Nuno Maria. «Se a pessoa que tira um curso ou a que mergulha com regularidade». No caso dos primeiros, podemos chegar a um número como 30 mil; já se considerarmos os que mergulham regularmente, esse número desce a pique, para não mais de 13 mil. Mas o curioso é que não há certeza de dados exactos a nível nacional. Entre a Marinha (que tem apenas o número de escolas de mergulho certificadas - 66 - e o número de monitores - 186), a Federação Portuguesa de Actividades Sub-Aquáticas (que regista 2186 praticantes federados) e o Centro Português de Actividades Sub-Aquáticas, não há um levantamento do número de cursos de mergulho dados pelas escolas do nosso país. Segundo o fundador da Cipreia, o «boom» do mergulho e a sua «democratização» (antes, os cursos eram restritos sobretudo a atletas e a militares) aconteceu em 1998, com a Expo. «Havia quatro ou cinco escolas de mergulho em Lisboa, nessa altura - hoje há 30 só na capital e 66 pelo país». Os clientes que procuram a escola de Nuno Maria são quase todos citadinos, a maioria é licenciada e trabalha na área dos serviços. Têm entre os 25/35 anos e os 42/50 anos.

Um facto curioso é que todas as pessoas do ramo do mergulho - sejam de escolas ou de agências de viagens que vendem «dive destinations» - são mergulhadores. Na Cipreia, tanto Nuno Maria como a mulher, Carla, instrutora, são fervorosos adeptos há anos. Ela mergulha há 11, ele desde os 16, e ambos fazem férias de mergulho «duas a três vezes por ano». Já estiveram na África do Sul, no Príncipe (em São Tomé), no mar Vermelho, em Roatán (nas Honduras), nos Açores e na Madeira. Mais: o grupo de amigos conta com 80% de mergulhadores.
Também no Peixe Voador, uma das três agências especializadas em destinos de mergulho no nosso país (a par da Escapetravel e da Geotur, que têm um departamento dedicado à modalidade), Paulo Marques da Silva, Fernando Borges e Mário Alcântara são todos mergulhadores. O ano passado, 800 pessoas viajaram com eles para «dive destinations». Sob o lema «Não se escame, viajar é fácil», o Peixe Voador não tem placa indicativa à porta, nem cartazes colados à janela e situa-se numa praceta interior escondida do Restelo. Ou seja: não é por alguém passar e ver que entra. Os clientes do Peixe Voador chegam até eles a partir das escolas de mergulho.

Vêm de todo o país, essencialmente de Lisboa, Porto e Faro, têm 30 a 40 anos e uma boa situação económica, resume Paulo Marques da Silva. Mas há preços para todas as carteiras - e, ao contrário do que costuma ser a regra, aqui o mais barato não é o menos bom. «O mar Vermelho, que pode começar nos 700 euros, é o destino mais procurado, porque é o melhor mergulho possível», garante. «Pelo tipo de fauna, pela flora, pelos corais, pela relação qualidade/preço, pela média de profundidade do mar ser de 3000 metros». Na verdade, todos os mergulhadores vão ao mar Vermelho - e repetem. Fernando, que se estreou no mergulho nas Maldivas, confirma: «Para mim, tem de ser pelo menos duas vezes por ano!» Depois, uma viagem a Cabo Verde sobe facilmente aos 1000 euros, as Maldivas aos 1800 euros, a África do Sul aos 4000 euros.
Quando criou o Peixe Voador, em 2004, Paulo Marques da Silva já trazia na bagagem a experiência de ter fundado a primeira agência de viagens de mergulho em Portugal, a Escapetravel. «Fomos pioneiros numa altura em que essa faixa de mercado não mexia sequer, mas tínhamos cem clientes», recorda. Para ele, a prática do mergulho aumentou em 2000, «ajudado pelo fluxo de turismo para destinos tropicais que tinham pequenos cursos de mergulho, muito experimentados».

Todos acreditam firmemente no potencial de «negócio sólido» do mergulho e defendem que esta deve ser uma aposta clara a nível de turismo nacional. «Até porque o turista de mergulho é um turista que interessa. Porque tem consciência ecológica, não estraga e tem poder de compra». E menciona o Plano Estratégico de Turismo, que inclui o turismo subaquático como vertente a desenvolver. Um exemplo disso é o investimento de dois milhões de euros que o Porto Santo, na Madeira, vai fazer para construir um centro de mergulho até 2007. Paulo Marques da Silva não duvida: «O turismo subaquático é a grande meta para passar a outro patamar». Para ele, «daqui a 10 anos, o mergulho deve estar perfeitamente banalizado».

 

 

     

 

MERGULHO ao largo de um cabeço de coral, no mar Vermelho

 

PEIXE-PALHAÇO na anémona onde vive (celebrizado para o mundo como Nemo)

 

O MERGULHO para ver tubarões é dos mais procurados...

 

... mas os cardumes de peixes coloridos são sempre um espectáculo: «yellow grunt» nas Bahamas e...

 

... «anthias» nas Maldivas

 

AULA de mergulho na piscina

 

ALGUNS preparativos antes de mergulhar

 

MIGUEL QUEIRÓS, Isabel Ribeiro e Jorge Correia num mergulho em Sesimbra

 

OS SÓCIOS do Peixe Voador, agência de «dive destinations»