ÚNICA N. 1586 / 22 Março 2003

Prazer sem barreiras

Sexo, afectos, prazer e família fazem parte da vida dos deficientes motores. É preciso aprender novos comportamentos e não ter medo de fracassar. Ao contrário do que muitos supõem, quase tudo é possível - embora seja diferente.

Textos de Katya Delimbeuf
Fotografias de Luiz Carvalho

Não será certamente por acaso que entre as divindades gregas do Olimpo apenas uma tenha ficado na História com uma deficiência. Hefesto, o Vulcano dos romanos - um deus menor - nasceu feio e coxo, e a mãe, Hera, lançou-o ao mar por vergonha. O mais feio dos imortais foi recolhido e criado por Tétis, habitante do mundo marinho, e tornou-se, em adulto, o ferreiro dos deuses, Deus do Fogo e da Metalurgia. A sua vingança cumprir-se-ia aparentemente quando, regressado ao Olimpo por ordem de Zeus, seu pai, casou com a cobiçada Afrodite, Deusa da Beleza. Mas o casamento não lhe trouxe amor, pois Afrodite foi-lhe muitas vezes infiel.

Por vezes não é fácil falar sobre deficiência. Nem sobre sexualidade. Muito menos sobre sexualidade na deficiência. Mas existem 571.652 deficientes no nosso país - o equivalente a 5% da população. E este tema, como tudo o que existe, merece ser tratado. Se calhar, por ser tabu, merece ainda mais.

Fala-se de «reaprender a sexualidade» em Alcoitão. É aqui que vêm parar todos os acidentados, os paraplégicos e os «tetras», como se diz na gíria médica. Maria da Paz Carvalho é especialista em medicina física e reabilitação no serviço de lesões vértebro-medulares. Não existe uma consulta de sexologia em Alcoitão. Na prática, é ela e outros médicos que, em conjunto, tratam da reabilitação destes pacientes a nível sexual.

«A princípio chegam todos com muito medo. Alguns têm vergonha de assumir que têm uma disfunção sexual», explica. São várias as dificuldades com que estes doentes se deparam: «Alteração da imagem corporal, declínio da auto-estima, stresse emocional acrescido... A maioria chega aqui e diz: ‘Não é nada como dantes...’ Mas, passado um tempo, alguns confessam que a experiência até pode ser mais rica. Tenho um paciente homem que me disse que redescobriu a sua sexualidade de uma forma que nunca tinha julgado possível».

Desengane-se quem sempre assumiu que a sexualidade de um deficiente motor é inexistente. Que os paraplégicos e os tetraplégicos não podem ter relações sexuais, sentir prazer e ter filhos. Tudo isto não só é possível, como é desejável e acontece. Até porque todos os homens acidentados têm erecções, independentemente do grau das lesões, e todas as mulheres - salvo raríssimas excepções - continuam a ser férteis e a menstruar. «Há sempre erecções reflexas, mesmo no caso dos tetraplégicos» , assegura a fisiatra. «Só que, muitas vezes, isso não chega para satisfazer a parceira. Algumas delas vêm falar connosco. Dizem sobretudo que não os querem magoar. Eu costumo dizer que, se não havia sinceridade antes do acidente, dificilmente haverá depois».

Há vários factores importantes na recuperação destes pacientes: «A componente psicológica, de ser atractivo para o parceiro, olhar para o espelho e gostar de se ver; e a componente comportamental, que implica aprender a despertar novas zonas de estimulação - nomeadamente a nível do cérebro - e novos padrões de sexo: sexo oral, a importância das carícias, do beijo...» Depois, existem diversas terapêuticas, com elevado grau de sucesso: a prótese peniana (a mais antiga e menos cómoda); a injecção intra-cavernosa, auto-ministrada ou dada pela parceira, no caso dos tetraplégicos; e o Viagra, a terapêutica mais apreciada, por ser a mais próxima da reacção fisiológica.

ORGASMO FEMININO MAIS FÁCIL
É diferente a recuperação e reacção de homens e mulheres. «Elas atingem mais facilmente o orgasmo sem estimulação genital» , garante Maria da Paz. «O prazer passa mais pelo afecto. Até porque muitas não têm sensibilidade da cintura para baixo».

O caso dos homens não é tão simples. A ideia de masculinidade está mais associada ao funcionamento do pénis e ao desempenho sexual. «Os homens têm uma maior pressão social do que as mulheres, e isso condiciona-os» , explica o psicólogo Jorge Cardoso, que está a concluir o doutoramento sobre sexualidade dos deficientes vértebro-medulares, sob a orientação do sexólogo Júlio Machado Vaz. O clínico tem poucas dúvidas: «A sociedade considera estes seres assexuados - ou ineficazes do ponto de vista sexual» .

Na sua amostra, de 150 homens (porque oito em cada dez deficientes motores são do sexo masculino), a maioria afirmou estar «insatisfeita a nível sexual» . Todos os inquiridos iniciaram a sua vida sexual antes de se terem tornado deficientes motores e mantinham, no presente, parceira fixa ou ocasional. Por isso, todos tinham a experiência da sexualidade antes e depois. Nos aspectos analisados, quase todos os parâmetros diminuem: «A importância atribuída à sexualidade, a frequência das relações, a capacidade funcional» . Tudo, à excepção dos afectos: «A dimensão afectiva passa a trazer mais satisfação. O homem tem maior preocupação com a satisfação da parceira. Valoriza mais o orgasmo da mulher».

Embora haja erecção, em 80% dos casos não existe ejaculação: «Há emissão, mas não expulsão. O esperma recolhe e aloja-se na bexiga. É por isso que se torna necessário recorrer à electro-ejaculação quando se quer ter filhos», diz Jorge Cardoso. Com a ajuda de eléctrodos, expulsam-se os espermatozóides - embora as infecções urinárias, comuns nestes pacientes, diminuam a sua qualidade.
Ainda que não tenha ejaculação, a maioria percepciona o orgasmo - mesmo não tendo sensibilidade genital. «O que quer dizer que o prazer está muito mais entre as orelhas do que entre as pernas» , conclui o médico.

Ao contrário do que muitos pensam, a possibilidade de os deficientes motores terem filhos é real - existe até, no Porto, uma consulta de sexologia e reeducação sexual específica para estes doentes, a cargo da médica Maria João Tripa. As mulheres podem ter filhos, apesar de serem gravidezes de risco - porque contraem muitas infecções urinárias e porque, como não têm sensibilidade da cintura para baixo, dificilmente se apercebem que entraram em trabalho de parto. A maioria acaba por fazer cesariana, por causa da dificuldade de cicatrização do corte perineal. Mas o importante é que constituir família é possível. Na verdade, quase tudo é possível.

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Carlos Domingos, de 29 anos, união de facto

«Amooor...», chama Carlos da sala. A cabeça de Mónica surge prontamente por trás da porta. « Podes trazer-me os meus cigarros, por favor?» «Não querem comer nada, umas bolachinhas, um chá?» , preocupa-se ela. Na casa nova, que os dois inauguraram há três meses, respira-se um clima de harmonia. Há cinco anos que Carlos, de 29, e Mónica, de 23, namoram. Ele é promotor de vendas numa loja ortopédica perto de Alcoitão, ela é terapeuta ocupacional. Ele é um rapagão bem-parecido, com perto de metro e oitenta. Ela é uma rapariga bonita, com ar meigo. Ele está numa cadeira de rodas desde os 20 anos.

Não foi isso que o impediu de ser feliz, garante ele. De ter concretizado já o primeiro sonho, «a casa» , e de caminhar para a realização de outros - nomeadamente, «os filhotes» . Carlos e Mónica tencionam casar e ter filhos - «pelo menos um» . Mas, para isso, é preciso recorrer a tratamento, porque ele não ejacula e há que ir buscar o esperma à bexiga para o processo de fecundação. «A fertilização tem de ser feita por inseminação », explica Carlos. Se as coisas não resultarem, o casal coloca duas hipóteses: «Banco de esperma ou adopção» .

«Os deficientes motores precisam de lutar a dobrar para dar provas» , considera ele. «Ao estarmos numa cadeira de rodas, sentimos mais necessidade de nos afirmarmos como homens. Porque as pessoas acham que os deficientes não podem fazer nada...» Refere-se a sexo. Mas, no seu caso, até já comentou com os amigos que teve «mais namoradas depois de estar em cadeira de rodas do que antes» . Diz, com ironia, que ficou «pior» a seguir ao acidente: «Mais atrevido, mais bem-disposto...» E lembra-se de responder, quando as raparigas lhe diziam que se sentiam atraídas por ele: «Atracção? Por mim? Só se for pela minha bela estrutura metálica...!»

Carlos acredita que o seu relativo sucesso junto do sexo oposto passa por uma pessoa ser brincalhona, bem disposta - e, sobretudo, não se inferiorizar. É esse que julga ser o principal motivo para muitos deficientes motores não terem companheiro(a): «Põem-se demasiado à margem, têm medo de fracassar» .

Foi há nove anos, o acidente. Viseu, 29 de Março de 1993. Ele e um amigo regressavam de uma noitada na discoteca. «Era de madrugada e íamos tomar o pequeno-almoço », conta. Mas o cansaço falou mais alto. O condutor adormeceu, o carro capotou, Carlos ficou paraplégico. Esteve sete meses no Hospital de Coimbra, três dos quais em coma, ligado ao ventilador. As hipóteses de sobrevivência não eram muitas - mas Carlos safou-se.

Depois, passou um ano no Hospital de Abrantes. Aí, viveu um dos momentos mais difíceis. Esteve meses imobilizado, de barriga para baixo, por conta de «seis operações a escaras (feridas comuns em pessoas acamadas, provocadas pela falta de movimentos) e três à coluna .Foi a altura em que chorei mais» , confessa. Na altura, tinha uma namorada há três anos - «o primeiro grande amor» . Ao contrário do que sucede na maior parte dos casos, ela manteve-se sempre a seu lado, a seguir ao acidente. Foi ele que pôs termo à relação, «por achar que não tinha futuro nenhum para oferecer-lhe» .

Carlos tinha iniciado a sua vida sexual antes do acidente. Começou cedo, aos 15. «E era bastante activo» , diz, com um sorriso malandro. Tinha sucesso junto das mulheres. «Sabe como é? Vida de feira... Em cada terra, uma novidade...» Das primeiras coisas que perguntou ao médico foi: «Então, doutor? Como é que vai ser agora? » Referia-se à vida sexual. Depois começou a perceber, aos poucos, quando as enfermeiras o lavavam ou o algaliavam, que continuava a ter erecções.

Os amigos tiveram um papel importante na sua recuperação. «Levavam-me para a praia, para dentro de água... Conseguiram desinibir-me» . Carlos foi sempre dado a festas. E não alterou a sua forma de ser. Frequentava discotecas, «adorava dançar, ia com a cadeira para o meio da pista, às vezes chegava a cair, mas não me importava» . Lembra-se de, uma noite, duas mulheres (uma italiana e outra brasileira) o terem abordado. Uma delas sentou-se no seu colo, «e houve uma reacção física imediata» . Ao que ela inquiriu se ele já tinha programa para o resto da noite... «Foi uma surpresa pela positiva» , recorda.

A primeira vez que teve relações sexuais depois do acidente foi passados dois anos, «com uma pessoa bastante mais velha» . Antes, não se sentia preparado. Tinha medo de se expor, de não conseguir ter prazer, dar prazer. Mas a experiência correu bem. «Todos nós temos pontos sensíveis» , explica. «É só uma questão de os procurar» .

Quanto às diferenças do antes e do depois, diz: «Hoje, as coisas passam mais pelo cérebro. Antes eram mais carnais - a sensibilidade era imediata. Agora, a busca tem de ser mais intensa. Nesse aspecto, é mais parecido com o prazer da mulher. Tem de haver uma maior preparação» .

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Pedro Grilo, 31 anos, casado

O fato e gravata dá-lhe um ar sério, levemente institucional. Cabelo ralo, óculos de aros finos. O discurso denuncia a instrução deste economista e assessor da Câmara de Lisboa na área do planeamento e do urbanismo. Aos 31 anos, Pedro Grilo desdobra-se entre o emprego, o trabalho na Associação Portuguesa de Deficientes, onde é membro da direcção, e o doutoramento em planeamento urbano e desenvolvimento sustentável, na Universidade de Salford, Manchester.

Vive com a mulher, uma arquitecta urbanista de 27 anos, e com a filha, de três. Tenciona ter mais filhos - «pelo menos um» . Tem uma tetraplegia incompleta desde os 14 anos, quando um mergulho na Praia Grande o remeteu para uma cadeira de rodas.

Considera-se «um caso de excepção» . Tem noção de que possui mais auto-estima que a maioria dos deficientes motores e que chegou mais longe do que é costume. É de tal modo que Pedro garante: «Se voltasse atrás, faria tudo da mesma maneira. Inclusive, mergulharia no mesmo sítio... O que provavelmente quer dizer que sou uma pessoa feliz».

21 de Agosto de 1986. Quando Pedro mergulhou, naquele dia de Verão, estava longe de imaginar como a sua vida iria mudar. Os primeiros três meses após o acidente, passou-os em Santa Maria, nos cuidados intensivos. O ano seguinte teve por cenário o Alcoitão. Aí, trabalhou afincadamente a parte superior do corpo, o que lhe devolveu alguns movimentos dos braços e das mãos.

Quando regressou à escola, passados 16 meses, era uma pessoa diferente, e não apenas no aspecto físico. Garante que, socialmente, tentou fazer tudo o que teria feito se não tivesse uma deficiência motora. Refez um grupo de amigos, «porque o primeiro se desmembrou» . Acha que conseguia ser popular - «sempre assumindo a minha diferença» . Foi campeão de natação. Cultivava o corpo, o que lhe aumentava a auto-estima. No entanto, não esconde que houve momentos difíceis. «Por exemplo, quando os meus amigos iam para o Bairro Alto beber umas ‘bejecas’ e fumar umas ‘ganzas’ e eu não podia...»

O contacto com as raparigas foi complicado, a princípio. «Tornava-se difícil distinguir ternura e afectividade de algo mais. Levei a minha primeira tampa. E é tanto pior quando não se percebe se é por causa da cadeira ou por causa de nós...» Com o passar dos anos, essa faceta alterou-se radicalmente. Pedro orgulha-se de, em todas as suas relações, ter sido a outra parte a tomar a iniciativa. Aos 18 anos, teve a primeira grande paixão, com três meses de namoro. Até que se apaixonou platonicamente por outra pessoa.

A sua primeira vez, a nível sexual, «foi muito boa», garante. «Ela disse-me que não acreditava que eu fosse virgem. Isso reforçou a minha auto-estima». A partir daí, sucederam-se as namoradas. E, aparentemente, com facilidade. Uma irlandesa, uma inglesa, uma russa, uma holandesa, uma francesa... A determinada altura, sentiu que o facto de ser deficiente motor não afastava as mulheres. «Antes pelo contrário». Namorou primeiro uma irlandesa, nove meses. Na universidade, fez o programa Erasmus e viveu um ano em Amesterdão. Aí, teve «alguns ‘flirts’» , e duas namoradas: uma inglesa, durante três semanas, e uma russa, com quem esteve um ano. Regressado a Portugal, namorou uma holandesa, outro ano - ao fim de três semanas, estavam a viver juntos, em casa dele. Seguiu-se a segunda paixão da sua vida: uma arquitecta, com quem teve um relacionamento de seis meses. Depois, um «flirt» com uma francesa, estudante de Direito na Sorbonne. Até que surgiu a actual mulher.

«ZONAS ERÓGENAS COM QUE NUNCA SONHARA»
Conheceram-se na universidade onde ele dava aulas. Pedro acredita que aquilo que a atraiu nele foi a sua pessoa, o seu percurso profissional. Passadas umas semanas, ela largou tudo para ir viver com ele. Até hoje.

«O sexo está longe de ser tudo» , afirma Pedro. Em contrapartida, «o facto de ter uma parte sensível menor faz com que descubra zonas erógenas com que nunca tinha sonhado...» Sublinha que «os homens deficientes motores têm maior preocupação com o prazer da sua companheira - porque o seu próprio prazer passa pelo dela» . Nesse sentido, acha que «isso deveria ser um padrão de conduta para os homens ‘normais’...»

Quanto a diferenças, remata: «Fazer amor em cima da máquina de lavar pode ser complicado para nós. Mas poucos saberão o prazer que é fazer amor em cima de uma cadeira de rodas...»

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Elisabete Pereira, 27 anos, casada

As sardas dão-lhe um ar de menina pequena, que contribui para que raramente lhe acertem na idade. Elisabete tem feições finas, um ar frágil de boneca de porcelana, a pele leitosa, cabelo louro, olhos azuis. É magra, veste bem, nota-se que tem cuidado consigo. É uma mulher bonita e atraente. Apesar de estar numa cadeira de rodas. Ou dever-se-ia dizer «independentemente» de estar numa cadeira de rodas?

Elisabete Pereira é casada há cinco anos e mãe de dois filhos: Tomás, de quatro anos, e Martim, de cinco meses, ainda na barriga - uma barriga pequenina, que mal se nota. Licenciada pela Universidade Lusófona, é psicóloga criminal, especializada em comportamentos desviantes.

Tinha 16 anos quando aconteceu o acidente. Ela e uns amigos iam, em duas motos, até à discoteca Coconuts. «Sempre tive uma paixão por motos. Esta tinha sido prenda de anos. Foi uma guerra para ma oferecerem...» Na marginal de Cascais, ao pé da Parede, um carro surgiu na faixa dela, em sentido contrário. Elisabete guinou a moto, ela e a amiga foram projectadas pelo ar. O carro - um ligeiro azul, a única coisa que recorda - nem sequer parou.

A primeira coisa que perguntou foi: «Como é que está a moto?» As luzes das sirenes da ambulância, a última coisa que viu antes de desmaiar. A seguir, entrou em coma. Quando acordou, um mês depois, não se lembrava de nada.

Seguiram-se nove meses em Alcoitão. Quando regressou a casa, voltou imediatamente à escola. Completou o 12º ano e entrou na universidade: Antropologia, no ISCSP. Mas as acessibilidades do edifício eram inexistentes. Ao fim do segundo ano, desistiu, e mudou para Psicologia, numa universidade privada.

Elisabete tirou a carta, comprou um carro adaptado, ganhou independência. Terminou a licenciatura. Nessa altura, conheceu o actual marido, através do seu melhor amigo.

Começaram por sair em grupo e «picarem-se um ao outro» . Foram-se conhecendo. Até que... aconteceu. Mas a relação entre os dois não foi fácil. Não porque o casal se desse mal, mas por causa dos pais dele. «Não me aceitavam. Não aceitavam a cadeira de rodas», desabafa Elisabete.

Fizeram de tudo para impedir o namoro. Tiraram o carro a Edgar, puseram-no fora de casa. Chegaram a pôr um detective atrás deles. Apareciam em sítios públicos e armavam escândalos. «Foi muito difícil. Houve momentos em que pensámos se valeria a pena suportar tudo aquilo» . Mas o casal acabou por sair mais unido. Depois de três anos e meio, casaram. Os sogros não foram ao casamento e, até hoje, viram o neto uma única vez.

Elisabete iniciou a sua vida sexual após o acidente. «A primeira vez, o meu maior medo era que não sentisse nada. Mas não. Apesar de não haver sensibilidade da cintura para baixo, existe prazer. Pode não ser tão intenso, mas sente-se à mesma. A envolvente, o facto de se estar a ver, são excitantes. Eu posso ser suspeita, mas acho que não há grandes diferenças entre a minha vida sexual e a das outras pessoas» . Os amigos que têm mais confiança perguntam-lhe se é sempre na mesma posição. Ela ri e responde: «Não há limitações. Vai-se descobrindo, vai-se experimentando. E depois, depende da imaginação e do amor que existe entre o casal» .

Quando engravidou do primeiro filho, as pessoas achavam que só podia ter sido inseminação artificial. Houve mesmo médicos que lhe perguntaram como era possível estar grávida. Ao contrário do que é comum, o Tomás nasceu de parto natural. «O lado bom da questão? Tem-se menos dores» .

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Isilda Mendes, 38 anos, solteira

A voz é serena. Isilda Mendes é simpática mas sóbria, não se lhe lê revolta nos olhos - talvez somente um travo a desilusão. Vive numa casa fria, em Sintra, com o irmão mais velho, a cunhada e os três sobrinhos, que ajudou a criar. Está numa cadeira de rodas desde os 17 anos, quando um acidente de carro a deixou paraplégica. É solteira, não tem filhos nem companheiro. Encarna o retrato mais comum dos que partilham a mesma situação.

O mês era o de Maio, o ano 1982. Isilda, o irmão, a irmã e uma amiga davam um passeio de carro, pela Malveira da Serra. O condutor tinha a carta há pouco tempo e, numa curva apertada, perdeu o controlo do Fiat 850, que derrapou e capotou.

O Hospital de Cascais foi o primeiro tecto que Isilda viu quando acordou. Seguiu-se Alcoitão. Ali ficou um ano. Tempo a mais, no seu entender. «É o ponto mais complicado. Um momento muito longo, em que parece que a nossa vida se perde. Acho que as pessoas devem ser reinseridas na sua vida social tão depressa quanto possível» .

Nesse infindável ano, Isilda teria ainda de lidar com outra terrível notícia: a da morte da mãe. Em vésperas do seu 18º aniversário, esvaziou-se de sentido qualquer vontade de celebração. Filha de pais separados, ficou entregue aos irmãos. Apesar disso, garante, nunca sentiu revolta. Mas confessa que, «para quem estava habituada a ouvir galanteios dos rapazes à sua passagem, sentir que tudo isso morre é complicado» .

Namorados, antes do acidente, teve apenas um, dos 15 aos 17. Foi com este homem que iniciou a sua vida sexual, numa experiência que não deixou marcas positivas, nem muita saudade. «Às vezes preferia não a ter tido» , confessa. «Não correu bem. Fiquei a achar que, se o sexo era aquilo, não percebia o que tinha de tão especial...» Na véspera do acidente, Isilda e o namorado ainda falaram. A seguir, o afastamento foi total. «Isso feriu-me imenso, porque é a altura em que a pessoa mais precisa das outras. E em que toda a gente se afasta».

Depois de estar em cadeira de rodas, só voltou a envolver-se afectivamente uma vez. Aos 19, namorou um homem mais velho, durante um ano - um antigo amigo, do seu grupo de sempre, sem problemas motores. Aliás, admite: «Nunca pensei em envolver-me com alguém na mesma situação que eu» .

Tinha passado pouco tempo após o acidente e Isilda ainda não se sentia segura. O casal encontrava-se em locais públicos, cafés..., nunca em casa. As demonstrações de carinho ficavam pelos beijos e abraços. Isilda resguardava-se assim de situações de maior intimidade. «Nunca criei oportunidades para que isso acontecesse» . Chegou a pensar reiniciar a sua vida sexual, mas o medo era superior. «O corpo é diferente, nós não o conhecemos bem... Não estava à vontade» .

Foram vários os motivos que levaram à ruptura. Ela não gostava «de alguma frieza que ele manifestava em relação ao assunto da deficiência. Depois, ele também não assumia, perante os amigos e a família, que andava com uma pessoa ‘diferente’, de cadeira de rodas» . Isilda entendeu que devia terminar a relação. Foi a última que teve - até hoje, passados quase 20 anos.

Neste tempo todo, voltou a nutrir afectos por outros homens. «Mas não eram a pessoa certa» . De resto, garante, «há muita coisa que se mantém igual. Todos os deficientes motores pensam em sexo. A sua sexualidade é que tem de ser forçosamente diferente. Por exemplo, há limitações físicas que impedem determinadas posições...»

Hoje, aos 38 anos, mantém «pouca» esperança de encontrar um companheiro. Concede, no entanto: «Se voltasse a ter uma relação afectiva, reiniciaria a minha actividade sexual. Porque implicaria forçosamente sentimentos. E nesse caso, eu não teria receio».

     

 


Elisabete, Edgar e os filhos Tomás e Martim (na barriga): uma família feliz

 

 

 

Carlos Domingos, de 29 anos, união de facto

 

 

 

Pedro Grilo, 31 anos, casado

 

 

 

Elisabete Pereira, 27 anos, casada

 

 

 

Isilda Mendes, 38 anos, solteira