|
ÚNICA N. 1586 / 22 Março
2003
Prazer sem barreiras
Sexo, afectos, prazer e família fazem parte da vida dos deficientes
motores. É preciso aprender novos comportamentos e não
ter medo de fracassar. Ao contrário do que muitos supõem,
quase tudo é possível - embora seja diferente.
Textos
de Katya Delimbeuf
Fotografias de Luiz Carvalho
Não será certamente por
acaso que entre as divindades gregas do Olimpo apenas uma tenha ficado
na História com uma deficiência. Hefesto, o Vulcano dos
romanos - um deus menor - nasceu feio e coxo, e a mãe, Hera,
lançou-o ao mar por vergonha. O mais feio dos imortais foi
recolhido e criado por Tétis, habitante do mundo marinho, e
tornou-se, em adulto, o ferreiro dos deuses, Deus do Fogo e da Metalurgia.
A sua vingança cumprir-se-ia aparentemente quando, regressado
ao Olimpo por ordem de Zeus, seu pai, casou com a cobiçada
Afrodite, Deusa da Beleza. Mas o casamento não lhe trouxe amor,
pois Afrodite foi-lhe muitas vezes infiel.
Por vezes não é fácil falar sobre deficiência.
Nem sobre sexualidade. Muito menos sobre sexualidade na deficiência.
Mas existem 571.652 deficientes no nosso país - o equivalente
a 5% da população. E este tema, como tudo o que existe,
merece ser tratado. Se calhar, por ser tabu, merece ainda mais.
Fala-se de «reaprender a sexualidade» em Alcoitão.
É aqui que vêm parar todos os acidentados, os paraplégicos
e os «tetras», como se diz na gíria médica.
Maria da Paz Carvalho é especialista em medicina física
e reabilitação no serviço de lesões vértebro-medulares.
Não existe uma consulta de sexologia em Alcoitão. Na
prática, é ela e outros médicos que, em conjunto,
tratam da reabilitação destes pacientes a nível
sexual.
«A princípio chegam todos com muito medo. Alguns têm
vergonha de assumir que têm uma disfunção sexual»,
explica. São várias as dificuldades com que estes doentes
se deparam: «Alteração da imagem corporal, declínio
da auto-estima, stresse emocional acrescido... A maioria chega aqui
e diz: Não é nada como dantes... Mas, passado
um tempo, alguns confessam que a experiência até pode
ser mais rica. Tenho um paciente homem que me disse que redescobriu
a sua sexualidade de uma forma que nunca tinha julgado possível».
Desengane-se quem sempre assumiu que a sexualidade de um deficiente
motor é inexistente. Que os paraplégicos e os tetraplégicos
não podem ter relações sexuais, sentir prazer
e ter filhos. Tudo isto não só é possível,
como é desejável e acontece. Até porque todos
os homens acidentados têm erecções, independentemente
do grau das lesões, e todas as mulheres - salvo raríssimas
excepções - continuam a ser férteis e a menstruar.
«Há sempre erecções reflexas, mesmo no
caso dos tetraplégicos» , assegura a fisiatra. «Só
que, muitas vezes, isso não chega para satisfazer a parceira.
Algumas delas vêm falar connosco. Dizem sobretudo que não
os querem magoar. Eu costumo dizer que, se não havia sinceridade
antes do acidente, dificilmente haverá depois».
Há vários factores importantes na recuperação
destes pacientes: «A componente psicológica, de ser atractivo
para o parceiro, olhar para o espelho e gostar de se ver; e a componente
comportamental, que implica aprender a despertar novas zonas de estimulação
- nomeadamente a nível do cérebro - e novos padrões
de sexo: sexo oral, a importância das carícias, do beijo...»
Depois, existem diversas terapêuticas, com elevado grau de sucesso:
a prótese peniana (a mais antiga e menos cómoda); a
injecção intra-cavernosa, auto-ministrada ou dada pela
parceira, no caso dos tetraplégicos; e o Viagra, a terapêutica
mais apreciada, por ser a mais próxima da reacção
fisiológica.
ORGASMO FEMININO MAIS FÁCIL
É diferente a recuperação e reacção
de homens e mulheres. «Elas atingem mais facilmente o orgasmo
sem estimulação genital» , garante Maria da Paz.
«O prazer passa mais pelo afecto. Até porque muitas não
têm sensibilidade da cintura para baixo».
O caso dos homens não é tão simples. A ideia
de masculinidade está mais associada ao funcionamento do pénis
e ao desempenho sexual. «Os homens têm uma maior pressão
social do que as mulheres, e isso condiciona-os» , explica o
psicólogo Jorge Cardoso, que está a concluir o doutoramento
sobre sexualidade dos deficientes vértebro-medulares, sob a
orientação do sexólogo Júlio Machado Vaz.
O clínico tem poucas dúvidas: «A sociedade considera
estes seres assexuados - ou ineficazes do ponto de vista sexual»
.
Na sua amostra, de 150 homens (porque oito em cada dez deficientes
motores são do sexo masculino), a maioria afirmou estar «insatisfeita
a nível sexual» . Todos os inquiridos iniciaram a sua
vida sexual antes de se terem tornado deficientes motores e mantinham,
no presente, parceira fixa ou ocasional. Por isso, todos tinham a
experiência da sexualidade antes e depois. Nos aspectos analisados,
quase todos os parâmetros diminuem: «A importância
atribuída à sexualidade, a frequência das relações,
a capacidade funcional» . Tudo, à excepção
dos afectos: «A dimensão afectiva passa a trazer mais
satisfação. O homem tem maior preocupação
com a satisfação da parceira. Valoriza mais o orgasmo
da mulher».
Embora haja erecção, em 80% dos casos não existe
ejaculação: «Há emissão, mas não
expulsão. O esperma recolhe e aloja-se na bexiga. É
por isso que se torna necessário recorrer à electro-ejaculação
quando se quer ter filhos», diz Jorge Cardoso. Com a ajuda de
eléctrodos, expulsam-se os espermatozóides - embora
as infecções urinárias, comuns nestes pacientes,
diminuam a sua qualidade.
Ainda que não tenha ejaculação, a maioria percepciona
o orgasmo - mesmo não tendo sensibilidade genital. «O
que quer dizer que o prazer está muito mais entre as orelhas
do que entre as pernas» , conclui o médico.
Ao contrário do que muitos pensam, a possibilidade de os deficientes
motores terem filhos é real - existe até, no Porto,
uma consulta de sexologia e reeducação sexual específica
para estes doentes, a cargo da médica Maria João Tripa.
As mulheres podem ter filhos, apesar de serem gravidezes de risco
- porque contraem muitas infecções urinárias
e porque, como não têm sensibilidade da cintura para
baixo, dificilmente se apercebem que entraram em trabalho de parto.
A maioria acaba por fazer cesariana, por causa da dificuldade de cicatrização
do corte perineal. Mas o importante é que constituir família
é possível. Na verdade, quase tudo é possível.
.....
Carlos Domingos, de 29 anos, união de facto
«Amooor...», chama Carlos da sala. A cabeça de
Mónica surge prontamente por trás da porta. «
Podes trazer-me os meus cigarros, por favor?» «Não
querem comer nada, umas bolachinhas, um chá?» , preocupa-se
ela. Na casa nova, que os dois inauguraram há três meses,
respira-se um clima de harmonia. Há cinco anos que Carlos,
de 29, e Mónica, de 23, namoram. Ele é promotor de vendas
numa loja ortopédica perto de Alcoitão, ela é
terapeuta ocupacional. Ele é um rapagão bem-parecido,
com perto de metro e oitenta. Ela é uma rapariga bonita, com
ar meigo. Ele está numa cadeira de rodas desde os 20 anos.
Não foi isso que o impediu de ser feliz, garante ele. De ter
concretizado já o primeiro sonho, «a casa» , e
de caminhar para a realização de outros - nomeadamente,
«os filhotes» . Carlos e Mónica tencionam casar
e ter filhos - «pelo menos um» . Mas, para isso, é
preciso recorrer a tratamento, porque ele não ejacula e há
que ir buscar o esperma à bexiga para o processo de fecundação.
«A fertilização tem de ser feita por inseminação
», explica Carlos. Se as coisas não resultarem, o casal
coloca duas hipóteses: «Banco de esperma ou adopção»
.
«Os deficientes motores precisam de lutar a dobrar para dar
provas» , considera ele. «Ao estarmos numa cadeira de
rodas, sentimos mais necessidade de nos afirmarmos como homens. Porque
as pessoas acham que os deficientes não podem fazer nada...»
Refere-se a sexo. Mas, no seu caso, até já comentou
com os amigos que teve «mais namoradas depois de estar em cadeira
de rodas do que antes» . Diz, com ironia, que ficou «pior»
a seguir ao acidente: «Mais atrevido, mais bem-disposto...»
E lembra-se de responder, quando as raparigas lhe diziam que se sentiam
atraídas por ele: «Atracção? Por mim? Só
se for pela minha bela estrutura metálica...!»
Carlos acredita que o seu relativo sucesso junto do sexo oposto passa
por uma pessoa ser brincalhona, bem disposta - e, sobretudo, não
se inferiorizar. É esse que julga ser o principal motivo para
muitos deficientes motores não terem companheiro(a): «Põem-se
demasiado à margem, têm medo de fracassar» .
Foi há nove anos, o acidente. Viseu, 29 de Março de
1993. Ele e um amigo regressavam de uma noitada na discoteca. «Era
de madrugada e íamos tomar o pequeno-almoço »,
conta. Mas o cansaço falou mais alto. O condutor adormeceu,
o carro capotou, Carlos ficou paraplégico. Esteve sete meses
no Hospital de Coimbra, três dos quais em coma, ligado ao ventilador.
As hipóteses de sobrevivência não eram muitas
- mas Carlos safou-se.
Depois, passou um ano no Hospital de Abrantes. Aí, viveu um
dos momentos mais difíceis. Esteve meses imobilizado, de barriga
para baixo, por conta de «seis operações a escaras
(feridas comuns em pessoas acamadas, provocadas pela falta de movimentos)
e três à coluna .Foi a altura em que chorei mais»
, confessa. Na altura, tinha uma namorada há três anos
- «o primeiro grande amor» . Ao contrário do que
sucede na maior parte dos casos, ela manteve-se sempre a seu lado,
a seguir ao acidente. Foi ele que pôs termo à relação,
«por achar que não tinha futuro nenhum para oferecer-lhe»
.
Carlos tinha iniciado a sua vida sexual antes do acidente. Começou
cedo, aos 15. «E era bastante activo» , diz, com um sorriso
malandro. Tinha sucesso junto das mulheres. «Sabe como é?
Vida de feira... Em cada terra, uma novidade...» Das primeiras
coisas que perguntou ao médico foi: «Então, doutor?
Como é que vai ser agora? » Referia-se à vida
sexual. Depois começou a perceber, aos poucos, quando as enfermeiras
o lavavam ou o algaliavam, que continuava a ter erecções.
Os amigos tiveram um papel importante na sua recuperação.
«Levavam-me para a praia, para dentro de água... Conseguiram
desinibir-me» . Carlos foi sempre dado a festas. E não
alterou a sua forma de ser. Frequentava discotecas, «adorava
dançar, ia com a cadeira para o meio da pista, às vezes
chegava a cair, mas não me importava» . Lembra-se de,
uma noite, duas mulheres (uma italiana e outra brasileira) o terem
abordado. Uma delas sentou-se no seu colo, «e houve uma reacção
física imediata» . Ao que ela inquiriu se ele já
tinha programa para o resto da noite... «Foi uma surpresa pela
positiva» , recorda.
A primeira vez que teve relações sexuais depois do acidente
foi passados dois anos, «com uma pessoa bastante mais velha»
. Antes, não se sentia preparado. Tinha medo de se expor, de
não conseguir ter prazer, dar prazer. Mas a experiência
correu bem. «Todos nós temos pontos sensíveis»
, explica. «É só uma questão de os procurar»
.
Quanto às diferenças do antes e do depois, diz: «Hoje,
as coisas passam mais pelo cérebro. Antes eram mais carnais
- a sensibilidade era imediata. Agora, a busca tem de ser mais intensa.
Nesse aspecto, é mais parecido com o prazer da mulher. Tem
de haver uma maior preparação» .
.....
Pedro Grilo, 31 anos, casado
O fato e gravata dá-lhe um ar sério, levemente institucional.
Cabelo ralo, óculos de aros finos. O discurso denuncia a instrução
deste economista e assessor da Câmara de Lisboa na área
do planeamento e do urbanismo. Aos 31 anos, Pedro Grilo desdobra-se
entre o emprego, o trabalho na Associação Portuguesa
de Deficientes, onde é membro da direcção, e
o doutoramento em planeamento urbano e desenvolvimento sustentável,
na Universidade de Salford, Manchester.
Vive com a mulher, uma arquitecta urbanista de 27 anos, e com a filha,
de três. Tenciona ter mais filhos - «pelo menos um»
. Tem uma tetraplegia incompleta desde os 14 anos, quando um mergulho
na Praia Grande o remeteu para uma cadeira de rodas.
Considera-se «um caso de excepção» . Tem
noção de que possui mais auto-estima que a maioria dos
deficientes motores e que chegou mais longe do que é costume.
É de tal modo que Pedro garante: «Se voltasse atrás,
faria tudo da mesma maneira. Inclusive, mergulharia no mesmo sítio...
O que provavelmente quer dizer que sou uma pessoa feliz».
21 de Agosto de 1986. Quando Pedro mergulhou, naquele dia de Verão,
estava longe de imaginar como a sua vida iria mudar. Os primeiros
três meses após o acidente, passou-os em Santa Maria,
nos cuidados intensivos. O ano seguinte teve por cenário o
Alcoitão. Aí, trabalhou afincadamente a parte superior
do corpo, o que lhe devolveu alguns movimentos dos braços e
das mãos.
Quando regressou à escola, passados 16 meses, era uma pessoa
diferente, e não apenas no aspecto físico. Garante que,
socialmente, tentou fazer tudo o que teria feito se não tivesse
uma deficiência motora. Refez um grupo de amigos, «porque
o primeiro se desmembrou» . Acha que conseguia ser popular -
«sempre assumindo a minha diferença» . Foi campeão
de natação. Cultivava o corpo, o que lhe aumentava a
auto-estima. No entanto, não esconde que houve momentos difíceis.
«Por exemplo, quando os meus amigos iam para o Bairro Alto beber
umas bejecas e fumar umas ganzas e eu não
podia...»
O contacto com as raparigas foi complicado, a princípio. «Tornava-se
difícil distinguir ternura e afectividade de algo mais. Levei
a minha primeira tampa. E é tanto pior quando não se
percebe se é por causa da cadeira ou por causa de nós...»
Com o passar dos anos, essa faceta alterou-se radicalmente. Pedro
orgulha-se de, em todas as suas relações, ter sido a
outra parte a tomar a iniciativa. Aos 18 anos, teve a primeira grande
paixão, com três meses de namoro. Até que se apaixonou
platonicamente por outra pessoa.
A sua primeira vez, a nível sexual, «foi muito boa»,
garante. «Ela disse-me que não acreditava que eu fosse
virgem. Isso reforçou a minha auto-estima». A partir
daí, sucederam-se as namoradas. E, aparentemente, com facilidade.
Uma irlandesa, uma inglesa, uma russa, uma holandesa, uma francesa...
A determinada altura, sentiu que o facto de ser deficiente motor não
afastava as mulheres. «Antes pelo contrário». Namorou
primeiro uma irlandesa, nove meses. Na universidade, fez o programa
Erasmus e viveu um ano em Amesterdão. Aí, teve «alguns
flirts» , e duas namoradas: uma inglesa, durante
três semanas, e uma russa, com quem esteve um ano. Regressado
a Portugal, namorou uma holandesa, outro ano - ao fim de três
semanas, estavam a viver juntos, em casa dele. Seguiu-se a segunda
paixão da sua vida: uma arquitecta, com quem teve um relacionamento
de seis meses. Depois, um «flirt» com uma francesa, estudante
de Direito na Sorbonne. Até que surgiu a actual mulher.
«ZONAS ERÓGENAS COM QUE NUNCA SONHARA»
Conheceram-se na universidade onde
ele dava aulas. Pedro acredita que aquilo que a atraiu nele foi a
sua pessoa, o seu percurso profissional. Passadas umas semanas, ela
largou tudo para ir viver com ele. Até hoje.
«O sexo está longe de ser tudo» , afirma Pedro.
Em contrapartida, «o facto de ter uma parte sensível
menor faz com que descubra zonas erógenas com que nunca tinha
sonhado...» Sublinha que «os homens deficientes motores
têm maior preocupação com o prazer da sua companheira
- porque o seu próprio prazer passa pelo dela» . Nesse
sentido, acha que «isso deveria ser um padrão de conduta
para os homens normais...»
Quanto a diferenças, remata: «Fazer amor em cima da máquina
de lavar pode ser complicado para nós. Mas poucos saberão
o prazer que é fazer amor em cima de uma cadeira de rodas...»
.....
Elisabete Pereira, 27 anos, casada
As sardas dão-lhe um ar de menina pequena, que contribui para
que raramente lhe acertem na idade. Elisabete tem feições
finas, um ar frágil de boneca de porcelana, a pele leitosa,
cabelo louro, olhos azuis. É magra, veste bem, nota-se que
tem cuidado consigo. É uma mulher bonita e atraente. Apesar
de estar numa cadeira de rodas. Ou dever-se-ia dizer «independentemente»
de estar numa cadeira de rodas?
Elisabete Pereira é casada há cinco anos e mãe
de dois filhos: Tomás, de quatro anos, e Martim, de cinco meses,
ainda na barriga - uma barriga pequenina, que mal se nota. Licenciada
pela Universidade Lusófona, é psicóloga criminal,
especializada em comportamentos desviantes.
Tinha 16 anos quando aconteceu o acidente. Ela e uns amigos iam, em
duas motos, até à discoteca Coconuts. «Sempre
tive uma paixão por motos. Esta tinha sido prenda de anos.
Foi uma guerra para ma oferecerem...» Na marginal de Cascais,
ao pé da Parede, um carro surgiu na faixa dela, em sentido
contrário. Elisabete guinou a moto, ela e a amiga foram projectadas
pelo ar. O carro - um ligeiro azul, a única coisa que recorda
- nem sequer parou.
A primeira coisa que perguntou foi: «Como é que está
a moto?» As luzes das sirenes da ambulância, a última
coisa que viu antes de desmaiar. A seguir, entrou em coma. Quando
acordou, um mês depois, não se lembrava de nada.
Seguiram-se nove meses em Alcoitão. Quando regressou a casa,
voltou imediatamente à escola. Completou o 12º ano e entrou
na universidade: Antropologia, no ISCSP. Mas as acessibilidades do
edifício eram inexistentes. Ao fim do segundo ano, desistiu,
e mudou para Psicologia, numa universidade privada.
Elisabete tirou a carta, comprou um carro adaptado, ganhou independência.
Terminou a licenciatura. Nessa altura, conheceu o actual marido, através
do seu melhor amigo.
Começaram por sair em grupo e «picarem-se um ao outro»
. Foram-se conhecendo. Até que... aconteceu. Mas a relação
entre os dois não foi fácil. Não porque o casal
se desse mal, mas por causa dos pais dele. «Não me aceitavam.
Não aceitavam a cadeira de rodas», desabafa Elisabete.
Fizeram de tudo para impedir o namoro. Tiraram o carro a Edgar, puseram-no
fora de casa. Chegaram a pôr um detective atrás deles.
Apareciam em sítios públicos e armavam escândalos.
«Foi muito difícil. Houve momentos em que pensámos
se valeria a pena suportar tudo aquilo» . Mas o casal acabou
por sair mais unido. Depois de três anos e meio, casaram. Os
sogros não foram ao casamento e, até hoje, viram o neto
uma única vez.
Elisabete iniciou a sua vida sexual após o acidente. «A
primeira vez, o meu maior medo era que não sentisse nada. Mas
não. Apesar de não haver sensibilidade da cintura para
baixo, existe prazer. Pode não ser tão intenso, mas
sente-se à mesma. A envolvente, o facto de se estar a ver,
são excitantes. Eu posso ser suspeita, mas acho que não
há grandes diferenças entre a minha vida sexual e a
das outras pessoas» . Os amigos que têm mais confiança
perguntam-lhe se é sempre na mesma posição. Ela
ri e responde: «Não há limitações.
Vai-se descobrindo, vai-se experimentando. E depois, depende da imaginação
e do amor que existe entre o casal» .
Quando engravidou do primeiro filho, as pessoas achavam que só
podia ter sido inseminação artificial. Houve mesmo médicos
que lhe perguntaram como era possível estar grávida.
Ao contrário do que é comum, o Tomás nasceu de
parto natural. «O lado bom da questão? Tem-se menos dores»
.
.....
Isilda Mendes, 38 anos, solteira
A voz é serena. Isilda Mendes é simpática mas
sóbria, não se lhe lê revolta nos olhos - talvez
somente um travo a desilusão. Vive numa casa fria, em Sintra,
com o irmão mais velho, a cunhada e os três sobrinhos,
que ajudou a criar. Está numa cadeira de rodas desde os 17
anos, quando um acidente de carro a deixou paraplégica. É
solteira, não tem filhos nem companheiro. Encarna o retrato
mais comum dos que partilham a mesma situação.
O mês era o de Maio, o ano 1982. Isilda, o irmão, a irmã
e uma amiga davam um passeio de carro, pela Malveira da Serra. O condutor
tinha a carta há pouco tempo e, numa curva apertada, perdeu
o controlo do Fiat 850, que derrapou e capotou.
O Hospital de Cascais foi o primeiro tecto que Isilda viu quando acordou.
Seguiu-se Alcoitão. Ali ficou um ano. Tempo a mais, no seu
entender. «É o ponto mais complicado. Um momento muito
longo, em que parece que a nossa vida se perde. Acho que as pessoas
devem ser reinseridas na sua vida social tão depressa quanto
possível» .
Nesse infindável ano, Isilda teria ainda de lidar com outra
terrível notícia: a da morte da mãe. Em vésperas
do seu 18º aniversário, esvaziou-se de sentido qualquer vontade
de celebração. Filha de pais separados, ficou entregue
aos irmãos. Apesar disso, garante, nunca sentiu revolta. Mas
confessa que, «para quem estava habituada a ouvir galanteios
dos rapazes à sua passagem, sentir que tudo isso morre é
complicado» .
Namorados, antes do acidente, teve apenas um, dos 15 aos 17. Foi com
este homem que iniciou a sua vida sexual, numa experiência que
não deixou marcas positivas, nem muita saudade. «Às
vezes preferia não a ter tido» , confessa. «Não
correu bem. Fiquei a achar que, se o sexo era aquilo, não percebia
o que tinha de tão especial...» Na véspera do
acidente, Isilda e o namorado ainda falaram. A seguir, o afastamento
foi total. «Isso feriu-me imenso, porque é a altura em
que a pessoa mais precisa das outras. E em que toda a gente se afasta».
Depois de estar em cadeira de rodas, só voltou a envolver-se
afectivamente uma vez. Aos 19, namorou um homem mais velho, durante
um ano - um antigo amigo, do seu grupo de sempre, sem problemas motores.
Aliás, admite: «Nunca pensei em envolver-me com alguém
na mesma situação que eu» .
Tinha passado pouco tempo após o acidente e Isilda ainda não
se sentia segura. O casal encontrava-se em locais públicos,
cafés..., nunca em casa. As demonstrações de
carinho ficavam pelos beijos e abraços. Isilda resguardava-se
assim de situações de maior intimidade. «Nunca
criei oportunidades para que isso acontecesse» . Chegou a pensar
reiniciar a sua vida sexual, mas o medo era superior. «O corpo
é diferente, nós não o conhecemos bem... Não
estava à vontade» .
Foram vários os motivos que levaram à ruptura. Ela não
gostava «de alguma frieza que ele manifestava em relação
ao assunto da deficiência. Depois, ele também não
assumia, perante os amigos e a família, que andava com uma
pessoa diferente, de cadeira de rodas» . Isilda
entendeu que devia terminar a relação. Foi a última
que teve - até hoje, passados quase 20 anos.
Neste tempo todo, voltou a nutrir afectos por outros homens. «Mas
não eram a pessoa certa» . De resto, garante, «há
muita coisa que se mantém igual. Todos os deficientes motores
pensam em sexo. A sua sexualidade é que tem de ser forçosamente
diferente. Por exemplo, há limitações físicas
que impedem determinadas posições...»
Hoje, aos 38 anos, mantém «pouca» esperança
de encontrar um companheiro. Concede, no entanto: «Se voltasse
a ter uma relação afectiva, reiniciaria a minha actividade
sexual. Porque implicaria forçosamente sentimentos. E nesse
caso, eu não teria receio».
|
|
Elisabete, Edgar e os
filhos Tomás e Martim (na barriga): uma família feliz
Carlos
Domingos, de 29 anos, união de facto
Pedro
Grilo, 31 anos, casado
Elisabete
Pereira, 27 anos, casada
Isilda
Mendes, 38 anos, solteira
|
|