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ÚNICA N. 1665 - 25 Setembro 2004
Aldeias com dono
Povoados em ruínas, há décadas esvaziados
de habitantes pela emigração e a fuga para as cidades,
estão a ser comprados em bloco e restaurados por amantes da
natureza e do património com olho para o negócio. Aí
está a era do turismo de aldeia.
Texto
de Katya Delimbeuf
Fotografias de Ana Baião / Mário Selson / Rui Duarte
Silva e José Simão
Começam por ser pessoas com um
sonho: transformar um monte de pedras na aldeia que foi em tempos.
São ainda raros os que decidem comprar uma aldeia e recuperá-la,
investindo anos, paciência e dinheiro para que volte a haver
vida onde antes havia abandono. Mas por trás do sonho - e do
serviço público, diga-se - há também um
mercado nascente. Basta ver a quantidade de aldeias abandonadas, no
Norte, no Interior alentejano ou nas serras da Lousã... O turismo
de aldeia está aí em força. Eis quatro exemplos
de aldeias compradas por uma pessoa, resgatadas à ruína.
À Mata Pequena ninguém chega por acaso. Tem mesmo de
se saber o caminho, de tal modo as indicações são
rudimentares: «Passa por um nicho com uma santinha, vira à
direita, vê um moinho abandonado à beira da estrada...»
Mas os 8 km que dista de Mafra valem plenamente o esforço.
Numa paisagem intocada, reinam o verde e o silêncio. Três
águias reais sobrevoam a aldeia. É uma fileira de casas
caiadas de branco, com barras azuis ou amarelas, de arquitectura saloia,
que a recuperação teimou em manter.
Das nove casas que constituem a aldeia, seis foram compradas e recuperadas
por Diogo Batalha, que aqui mora com a mulher, Ana, há quase
três anos. Dentro de um mês, chegará Afonso, o
primeiro filho. Nascerá a tempo da inauguração
do projecto de turismo de aldeia, prevista para Novembro. Aos 33 anos,
Diogo, formado em Gestão de Empresas, sempre revelou apetência
pela área do turismo e património. E, apesar de ter
vivido e estudado em Lisboa, sonhava morar num sítio calmo.
«A confusão urbana não é para mim»,
assume. Como a família é da região de Mafra,
começou por procurar ali à volta. Utilizou uma técnica
original: foi ao Instituto Geográfico do Exército buscar
cartas militares com escala de 1/25.000, e confrontou uma de 1910
com outra actual, para descobrir os sítios mais ou menos inalterados.
Palmilhou o concelho todo, mas encontrou «muito pouca coisa
preservada»
Descobriu a Mata Pequena há sete
anos, com todas as habitações abandonadas, à
excepção de uma. A compra das casas teve episódios
engraçados. Diogo e Ana recordam uma escritura com 12 herdeiros
desavindos, «alguns de costas uns para os outros, outros que
não se falavam há anos...» Agora que já
foram recuperadas, é possível apreciar os elementos
originais: as cozinhas amplas com forno a lenha e as pias, as salgadeiras
e os lagares, as manjedouras, o chão de lajedo, as namoradeiras
junto às janelas dos quartos. Claro, todas as casas de banho
foram feitas de raiz - ocupam, por exemplo, o lugar do antigo galinheiro.
A decoração mantém-se fiel à tradição
rural. Lá estão os arados, os cortinados de chita, os
penicos ao pé das camas, os candeeiros a petróleo pelos
quais Diogo se desunhou, na Feira da Ladra. «Agora já
todos acham isto muito giro», graceja, resumindo a atitude dos
amigos e da família, que recearam que investisse «o que
tinha e o que não tinha» num amontoado de pedras. Algumas
casas só tinham meias paredes, nenhuma tinha telhado.
Foram sete anos de fins-de-semana passados
a cortar mato, a comprar telhas e azulejos antigos em fábricas
ou a aproveitar loiças de casas demolidas. «Durante os
três anos que demoraram as obras, vinha cá todos os dias,
três vezes ao dia», lembra Diogo. «Antes de ir para
o trabalho, às 6h da manhã, à hora de almoço
e ao fim do dia». O investimento, que ronda os 400 mil euros
(80 mil contos), não teve apoios comunitários, pelo
facto de a região de Lisboa e Vale do Tejo ser considerada
zona rica.
Hoje, a vida voltou à Mata Pequena. Vivem aqui quatro famílias
(cerca de 15 pessoas), entre as quais Dona Silvestre e «ti»
Eduardo, os residentes mais antigos. O tio Eduardo, de 78 anos, nasceu
cá, e Silvestre vive aqui desde 1951. É uma mulher do
campo, habituada à monda, à apanha da azeitona e do
trigo, às costas vergadas de sol a sol. É uma das maiores
entusiastas da recuperação, e critica os proprietários
que não querem vender o seu «monte de pedras».
O ambiente comunitário também foi resgatado, e o padeiro
desloca-se hoje de novo à Mata Pequena três vezes por
semana, na sua lambreta. Faz-se pão no forno a lenha, trocam-se
explicações por pimentos, batatas e uvas. Observam-se
os coelhos e os pintos a crescer e acorda-se com os rouxinóis
ou com o galo.
PARAGEM NO TEMPO
Quando, há 16 anos, Teotónia
e Carlos Silva decidiram comprar uma aldeia em ruínas, toda
a gente achou que eram malucos. A aldeia da Cuada, na Ilha das Flores,
nos Açores, foi perdendo habitantes na década de 50.
A maioria rumou à América - e por lá ficou. As
casas de basalto foram progressivamente abandonadas, até se
transformarem num amontoado de pedras. O casal de açorianos
tinha uma casa de férias na Fajã Grande, a 2 km dali.
Quando descobriram a aldeia, parada no tempo, com 12 casas «totalmente
em ruínas», pensaram imediatamente em comprá-la
e recuperá-la. E assim fizeram, aos poucos.
Como a maioria dos proprietários estava nos EUA, tiveram de
contactá-los um por um. «Foi um projecto do coração»,
confessa Carlos. «Não há dinheiro que pague o
trabalho que tivemos, o tempo, o investimento. A luz era a petróleo,
não havia água canalizada, nem electricidade, nem esgotos...»
Apesar de ter sido apoiado a 40% pelo Governo Regional - a aldeia
está classificada como Património Arquitectónico,
Cultural e Paisagístico -, o investimento total cifra-se para
lá dos 500 mil euros (100 mil contos).
Hoje, o ex-funcionário das Finanças e a antiga trabalhadora
da companhia aérea SATA, ambos com 49 anos, vivem na aldeia
durante o Verão e passam o resto do ano em Santa Cruz, mais
por causa das filhas estudantes (têm cinco, três adoptivas).
O turismo de aldeia está a funcionar há cinco anos.
As moradias são procuradas sobretudo nos meses de calor, por
portugueses e alemães. Há onze anos, os primeiros visitantes,
um casal alemão, gostaram tanto da Cuada que acabaram por ficar
14 meses. E de facto, quem vê o sol mergulhar na linha do horizonte,
a partir dali, costuma enamorar-se - e voltar.
MEDIEVAL E DESERTA
A aldeia medieval de Póvoa Dão, a 14 km de Viseu, é
talvez uma das mais conhecidas. Não há dúvida
que o investimento, de 3,5 milhões de euros (700 mil contos),
e a sua dimensão - 20 casas recuperadas e vendidas, e outras
32 por recuperar, numa herdade com 120 hectares - se prestam a isso.
Quem visita esta aldeia, banhada a sul pelo rio que lhe dá
o nome, não pode deixar de sentir admiração pelo
trabalho de recuperação. Desde os anos 30 que Póvoa
Dão estava praticamente abandonada, quando a emigração
levou os habitantes para terras de África e Brasil. Quando
Vítor Catarino dos Santos soube da sua existência, restavam
apenas três dos antigos 127 habitantes na aldeia medieval com
uma via romana intocada e cujos registos, nas inquirições
afonsinas, remetem a fundação para o ano de 1258.
Tudo começou em 1995, quando um corretor imobiliário
lhe ligou a dizer que havia uma aldeia medieval no mercado. Na altura
com 33 anos (hoje tem 41), o empresário - que tem 13 empresas,
entre as quais uma de construção civil e outra de decoração
de interiores - sentiu-se imediatamente seduzido. A proprietária
da aldeia era Virgínia Santos Lima, cuja família havia
comprado a herdade, em hasta pública, aos morgados do Loureiro,
no século XIX.
A recuperação de Póvoa Dão durou oito
anos - só a 15 de Maio deste ano foi oficialmente inaugurada.
Não havia electricidade, nem água, nem esgotos. «A
aldeia nem sequer existia no PDM», lembra Vítor. Todas
as casas foram fotografadas e as pedras medidas, com «levantamento
à fita». O projecto foi entregue a um arquitecto de Viseu,
Jorge Carolino. Vítor queria um projecto de qualidade, e à
traça original das casas, com a alvenaria em pedra e a telha
de canudo, quis aliar os confortos possíveis: piscina, «court»
de ténis, televisão por cabo, aquecimento, lareira...
Há ainda os fornos comunitários, onde se pode cozer
a broa ou fazer uma chanfana, para além dos legumes e animais
produzidos pela quinta, consumidos no restaurante de Póvoa
Dão.
Este é outro dos pontos de honra
da aldeia. O restaurante em pedra, muito bem decorado, tem uma cozinha
enorme, aberta sobre a sala, e vários compartimentos e recantos.
Vítor vai explicando o que ali havia antes: «O curral
do porco, das vacas, das pombas, o quarto do sr. Soares...»
Ainda hoje, o berço que embalou os seis filhos de José
Soares está ao pé do forno. O actual caseiro, de 79
anos, vive em Póvoa Dão desde os seis. Ele e a mulher
eram dois dos três últimos habitantes que ali continuavam.
Durante a recuperação, foram várias as vezes
que Vítor se viu tentado a desistir. Sobretudo porque «a
recuperação de uma aldeia com 800 anos não se
pode reger por leis de 50 anos». Confessa que, com este enquadramento
jurídico, não se sentiria com forças para começar
tudo de novo. E dá um exemplo: «Ninguém me ajudou
porque isto era um investimento privado, mas não me deixavam
fazer obras de saneamento porque era via pública...»
Mas as dúvidas não levaram a melhor, e hoje, com 20
casas recuperadas e vendidas, Vítor olha com orgulho para a
reabilitação. Os compradores são essencialmente
citadinos, de Lisboa, Porto, Coimbra e Viseu. Há ainda casas
para recuperar na herdade, mas agora, só por encomenda. E uma
meia-dúzia para alugar, no regime de turismo de aldeia.
O «ADULTÁRIO»
DE CAMÕES
Afonso Camões queria, essencialmente, um refúgio para
si - «um adultário, do género infantário
para seniores». O pai deste jornalista de 47 anos, natural de
Castelo Branco, era carteiro, e com ele fez muitas vezes o giro rural.
De pequeno ficou-lhe o gosto pelo campo e, numa das suas andanças,
descobriu a aldeia da Azinheira, perto de Castelo Branco. Apaixonou-se
pelo casario de xisto, no meio da planície, com os olivais
e as ovelhas em redor. Os muros de pedra a dividir os campos e o cheiro
a esteva, giesta e rosmaninho acabaram por fazer o resto.
Como não havia cadastro da propriedade das casas (os últimos
habitantes saíram em 1991), Afonso dirigiu-se à aldeia
mais próxima, falou com várias pessoas, bateu porta
a porta, perguntou a pastores... Comprou a primeira casa em 1986 e
foi comprando, até às duas dezenas. A mais barata custou-lhe
70 contos, a mais cara 1.200. A dada altura, percebeu que o investimento
para a recuperação - entre 1,5 e dois milhões
de euros (300 e 400 mil contos) - o ultrapassava. «A aldeia
precisa de água, de luz e do conforto urbano...» Assim,
contratou dois arquitectos para fazer o levantamento topográfico
casa a casa, e depois negociou o projecto. Conseguiu que a aldeia
fosse classificada - facto crucial, já que ninguém pode
construir sem a aprovação da Câmara. Foram vários
os compradores estrangeiros interessados - noruegueses, alemães
-, mas Afonso preferia que o turismo de aldeia ficasse em mãos
nacionais. Finalmente, surgiu um português interessado, um lisboeta
na trintena: Filipe Vasconcelos, um publicitário que teve conhecimento
da Azinheira através de uma revista.
Ao todo, foi um processo de 15 anos - desde a primeira casa comprada,
em 1986, até o projecto começar a ser negociado, em
2001. Afonso mantém alguns terrenos e casas na Azinheira, mas
já está de olho noutra aldeia. «Há muitas
por este país fora, sobretudo neste interior desertificado»,
assegura. Não era bom que deixasse de ser assim?
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Da esquerda para a direita e de cima para baixo: casas reconstruídas
das aldeias de Mata Pequena (Mafra), Cuada (ilha das Flores, Açores),Póvoa
Dão (Viseu) e Azinheira (Castelo Branco)
Diogo
Batalha com Dona Silvestre, na Mata Pequena: ela é uma das
maiores entusiastas da recuperação
Uma cozinha restaurada
A pequena aldeia
da Cuada, na ilha açoriana das Flores, estava totalmente em
ruínas quando Teotónia e Carlos a compraram
Desde há cinco anos, Cuada é um retiro turístico
Vítor Catarino dos Santos na sua Póvoa Dão, quase
deserta desde os anos 30
José Soares e Merecinda, velhos residentes, hoje caseiros
O antes e o depois na Mata Pequena, perto de Mafra: seis das novas
casas da aldeia foram recuperadas e até o recheio se mantém
fiel á ruralidade
Afonso Camões comprou a primeira casa na Azinhaga em 1986 e,
aos poucos, chegou às 20. Agora, o projecto de turismo de aldeia
está a ser lançado por um lisboeta que decidiu investir
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