ÚNICA No. 1705 - 2 Julho 2005

África a pé
 
O que passa na cabeça de duas pessoas para decidirem atravessar África a pé? Loucura? Paixão? Ou, tão-somente, seguir as pisadas do australopiteco?

Texto de Katya Delimbeuf
Fotografias de Alexandre Poussin

As vidas de Sónia e Alexandre cruzaram-se em 1993, pouco antes da primeira grande viagem deste, uma volta ao Mundo em bicicleta. Em vésperas de partir, andava ele a pintar casas para arranjar dinheiro, e saía ela de um mestrado de Administração Económica e Social, um amigo comum apresentou-os. «Conhecemo-nos em frente a uma loja da Rolex, na Rua do Coliseu, em Paris», conta Alexandre. Apaixonaram-se, ela prometeu esperar por ele no máximo um ano, ele voltou ao 365.º dia e foi a casa dela, numa «rua cheia de jovens ricos de Porsches», montado numa bicicleta para «resgatar o coração» da amada. Desde então, têm alimentado as mesmas paixões - a de um pelo outro e a das viagens.
No caso de Alexandre, formado em Ciência Política e hoje com 35 anos, essa volta ao mundo em bicicleta - aventura que fez com mil dólares no bolso e que o fez percorrer 25 mil quilómetros «de Paris a Paris, passando por Lhassa» - seria seguida por várias outras. Dessa, que o levou com o amigo Sylvain Tesson a mais de trinta países e cujo magro orçamento obrigou a episódios imaginativos, como pagar a hospedagem com espectáculos de malabarismo e de flauta, resultou o livro On A Roulé sur la Terre.

Depois, em 1997, atravessou os Himalaias, fazendo 5.000 quilómetros a pé, em seis meses, do Butão ao Tajiquistão, para conhecer os povos da região. De onde vem o prazer das viagens? «Do amor pelos outros, pelo mundo, da curiosidade de ir ver as coisas como elas são realmente. É uma sede de verdade. De terreno», diz Alexandre.
Sónia também acumulou umas quantas viagens «a solo» na bagagem, algumas das quais de carácter humanitário. Esteve no Uzbequistão e no Tajiquistão por conta da UNESCO, liderou um projecto de ensino de francês em Ho Chi Minh (Vietname), geriu um orfanato perto de Katmandu (Nepal)… Em 1997 partiu sozinha, de mochila às costas, para o Rajastão, na Índia, à descoberta do deserto de Thar; anda pelo Vietname; fez uma viagem de «side-car» de Kiev a Paris…
«Calejados» pelas várias viagens, Sónia e Alexandra decidiram lançar-se na grande aventura africana - atravessar todo o continente a pé, de sul para norte, seguindo a fractura do Rift, na senda dos «passos do Homem». «Sendo África o berço da Humanidade, queríamos percorrê-la no início do terceiro milénio», explica Sónia, realçando o carácter simbólico de uma viagem que pretendeu reproduzir a caminhada desde o australopiteco até ao homem moderno.

Partiram no dia 1 de Janeiro de 2001. Durante três anos e três meses atravessaram África, com sete quilos às costas - três dos quais equipamento fotográfico e de vídeo. «Na mochila não havia nada. Só o mínimo vital. Quando temos tudo o que é necessário, não precisamos dos outros e não encontramos ninguém», explica Alexandre.
Foram 14 mil quilómetros a pé, passando por dez países, com partida do Cabo da Boa Esperança e chegada ao lago Tiberíades, em Israel. Atravessaram a África do Sul, o Zimbabwe, Moçambique, a Tanzânia, o Quénia, a Etiópia, o Sudão, o Egipto e Israel. Sempre a pé, sempre a dormir em aldeias ou ao relento, «com a linha do horizonte em vista e o céu como tecto». «Foi ao mesmo tempo uma busca iniciática, lua-de-mel, viagem de estudo profissional, um pouco de tudo isto…», diz Sónia.
A aventura africana incluiu perseguições de rinocerontes, tempestades de areia, vários surtos de malária, encontros com masai e com barbaig (a tribo inimiga), a subida do Quilimanjaro e pelo menos dois resultados materiais: um livro, Africa Trek, o terceiro de Alexandre; e uma filha, Philae, concebida numa ilha do Egipto que lhe valeu o nome (Philae quer dizer «que ama») - o que não impediu a mãe de caminhar ainda várias centenas de quilómetros a pé, mesmo depois de saber que estava grávida.

Estes «escritores-viajantes», como se definem, são também «realizadores de imagens e de sonhos» - rodaram filmes, alguns dos quais premiados em festivais. «Fizemos da nossa paixão profissão. Mas ainda não sabemos bem o que escrever nos nossos cartões de visita», graceja Alexandre.
À viagem, que ocupou 10% da vida activa do casal, não faltaram episódios marcantes nem momentos mágicos. Além da notícia da gravidez de Sónia, óbvio momento alto da jornada, o casal destaca outros três. «Uma vez, na África do Sul, conhecemos um amigo pessoal de Nelson Mandela, que tinha tomado conta dos filhos dele enquanto esteve na prisão, e que estava a morrer de cancro. Quisemos deixá-lo sossegado, mas pediu-nos que ficássemos, e transmitiu-nos um testamento filosófico extraordinário. Um verdadeiro sábio. Foram os nossos anjos que nos guiaram até ele. É preciso estar atento aos sinais. Em Paris é mais difícil. Histórias mágicas como esta acontecem pelo menos uma vez por dia. A vida é mais louca que o mais louco dos romances…»

Um segundo momento marcante passou-se em Moçambique. «Tínhamos muita sede. Estávamos numa zona fronteiriça minada - e onde há minas não há populações. Estávamos muito desidratados. Ao fim de três dias sem beber água, à beira da morte, uma mulher salvou-nos. Era muito pobre, e chamava-se Lucy. Foi um piscar de olhos extraordinário, já que a nossa viagem tinha como ‘tema’ seguir os passos dos nossos antepassados hominídeos, dos quais ‘Lucy’, a australopiteco descoberta em 1974 na Etiópia por Yves Coppens, faz parte».
Um último episódio destacado por Alexandre foi o que se passou no deserto de Bayuda, no Sudão: «Depois de 11 mil qulómetros a caminhar, um carro pára. Um homem sai. Falamos. É espanhol. Fica fascinado com as nossas histórias, quer ajudar-nos, dar-nos boleia. Recusamos - não precisamos de nada. Diz-nos que é o ministro dos Desportos da Catalunha e convida-nos a apresentar uma conferência em Barcelona quando regressarmos…»

Actualmente, o casal Poussin vive em Paris. «Hoje, poderia ser apenas uma citadina materialista. Viajar não é ir até ao fim do mundo, é um estilo de vida, uma filosofia. Nós não temos cartão de crédito, temos um carro todo amolgado, não compramos roupa, discos, dvd ou ‘gadgets’ electrónicos. Mas somos livres», diz Sónia, resumindo o efeito que viajar teve na sua vida. E, agora, depois da aventura africana, despedem-se sempre com um «africalement», em vez de «amicalement».

 

 

     

 



A grande travessia africana,
que abrangeu dez países,
incluiu a subida do Quilimanjaro,
na foto, a 4.300 m








Dia 1/1/2001, km zero:
em direcção à Montanha
da Mesa, Cidade do Cabo,
África do Sul



Sónia e Alexandre Poussin
são um casal de
«escritores-viajantes»



Na selva, no sopé
do Quilimanjaro



Filtrando água para beber



Um beijo no topo do mundo:
a 4.800 m, no Campo Arrow (Quilimanjaro)



Sónia atravessando
um rio infestado de crocodilos,
na Tanzânia



Num glaciar a 4.800 metros
de altitude



Com uma chita, na reserva
privada de Tshukutu,
África do Sul



Uma princesa barbaig,
tribo inimiga dos masai,
faz uma tatuagem a Sónia,
na Tanzânia



Preparando uma refeição
numa povoação do Lesoto



Dançando com os barbaig,
na Tanzânia



Na tenda, à luz da vela,
todas as noites Alexandre
escreve no seu diário.
O resultado será
o livro «Africa Trek»,
em dois volumes