ÚNICA N. 1595 24 Maio 2003

PC ao peito

Já é possível fazer «upgrades» ao coração. Mas nem por isso a nossa velha máquina passa a ser virtual.

Texto de Katya Delimbeuf
Fotografias de Jorge Simão

Quando a ciência se alia à tecnologia para melhorar a qualidade de vida das pessoas, por vezes acontecem verdadeiros milagres. Se lhe dissessem que já se podem fazer «upgrades» ao coração como a qualquer PC de trazer por casa, a sua reacção mais provável seria pensar que se tratava de ficção científica. Na verdade, é possível actualizar um «pacemaker» sem precisar de fazer qualquer intervenção cirúrgica. A empresa dinamarquesa Vitatron criou o Selection 9000, o primeiro «pacemaker» actualizável por telemetria — uma tecnologia capaz de instalar «software» e de receber «upgrades», sem que para isso o paciente precise de ser operado.
A primeira intervenção a usar a tecnologia em Portugal decorreu a 8 de Dezembro de 2002, pela mão dos cardiologistas José Carlos Machado Rodrigues e Virgílio Schneider, no Hospital Pulido Valente. Vinte segundos bastaram para que Isolda Bettencourt, uma açoriana de 74 anos, tivesse recebido o primeiro «upgrade» por telemetria, após a colocação do «pacemaker», de 25 gramas. Quinze minutos mais tarde, estava feito o primeiro diagnóstico pós-operatório, e a primeira programação do Selection 9000. Isolda não se cansa de elogiar as virtudes do seu novo «pacemaker» e das «imensas melhorias» que este trouxe à sua vida. «Antes, tinha muita falta de equilíbrio, tremores, era internada com frequência, fazia episódios de fibrilação...», recorda. «Agora, já não preciso de usar bengala, deixei de ter palpitações e voltei a ter equilíbrio...» Em suma: os sintomas desapareceram e a sua qualidade de vida saiu reforçada.

Mas o que é a telemetria e o que torna este «pacemaker» tão especial? Trocando por miúdos: «A telemetria permite ao médico ‘conversar’ com o ‘pacemaker’», explica o cardiologista Machado Rodrigues. «Possibilita a comunicação entre médico e ‘pacemaker’, através de um programador com rádio-frequência». O equipamento não só permite visualizar todos os registos do batimento cardíaco, que ali ficam gravados (à semelhança dum disco rígido), como tem capacidade para levar até oito «softwares» diferentes, conforme as necessidades do paciente. São oito «softwares», porque é também esse o número das principais causas de fibrilação auricular, para a qual o Selection 9000 foi especialmente pensado. Esta é uma desordem na condução eléctrica do coração, mais precisamente, nas aurículas. Quando o coração não bate de forma regular nem eficaz, provoca uma irrigação deficitária do organismo, a par de má oxigenação. Isto traduz-se na seguinte sintomatologia: cansaço, mal-estar, e a longo prazo, maior possibilidade de formação de coágulos — que podem ser fatais.


ANTES PREVENIR QUE REMEDIAR

Até meados da década de 90, não se vislumbravam grandes perspectivas para o problema da fibrilação auricular. A Vitatron foi das primeiras empresas a investir nesse campo. Começou por criar «pacemakers» que registavam todos os movimentos eléctricos, o que permitia perceber quando é que surgiam os episódios de fibrilação. Posteriormente, apostou na prevenção desses episódios — e em pôr-lhes termo. Foi isso que procurou fazer com este «pacemaker», que «atenua a sintomatologia dos pacientes a nível da fibrilação auricular, regularizando o batimento cardíaco», continua o cardiologista, e consegue ser eficaz na prevenção do fenómeno.
Para isso, o Selection 9000 conta com duplo sensor — ao contrário dos «pacemakers» tradicionais que, tendo apenas um cristal, são mais falíveis (não detectam, por exemplo, aquilo que os médicos chamam «falso positivo» — o «pacemaker» julga estar em presença de uma situação de esforço do paciente, quando na realidade não é assim). Outro exemplo de superioridade tecnológica do Selection 9000 é que consegue criar uma resposta ao stresse, provocando a aceleração da batida cardíaca. «São ‘pacemakers’ fisiológicos, que tentam aproximar-se o mais possível da realidade», explica Machado Rodrigues. Para ele, «a principal mais-valia deste ‘pacemaker’ é, a seguir à operação, poder programá-lo à medida das necessidades do paciente, as vezes que forem precisas, sem substituir o equipamento de base». Isto evita ao doente outras intervenções cirúrgicas — qualquer «pacemaker» tem um prazo de validade limitado, após o qual precisa de ser substituído —, o que contribui obviamente para uma qualidade de vida melhorada. E ainda traz benefícios ao Estado, que poupa nos encargos das cirurgias.
Até agora, já foram realizadas no nosso país mais de duas dezenas de operações com este equipamento. Tendo em conta que são implantados «pacemakers» em 4.000 portugueses todos os anos, é a qualidade de vida de muita gente que sai a ganhar. «Na calha» da mesa de operações está já outro avanço tecnológico: o primeiro «pacemaker» digital do mundo deverá ser implantado ainda este mês. Sobre este, José Carlos Pinho, director-geral da Vitatron, garante que «vai ser mais rápido, mais fiável, terá mais capacidade de armazenar informação e mais automaticidade». Aguardamos com impaciência.

 

 

     

 

25 gramas de peso e 15 minutos depois: uma qualidade de vida melhor

 

 

 

 

 

Quinze minutos depois da intervenção, a descontracção é visível

 

 

 

 

 

O sistema de telemetria permite ao médico «conversar» com o «pacemaker»