ÚNICA No. 1641 - 9 Abril 2004

O fim do lobo mau

Às portas de Lisboa, 22 lobos vivem num parque em condições semelhantes às da natureza. O Centro de Recuperação do Lobo Ibérico faz as delícias dos visitantes.


Texto de Katya Delimbeuf
Fotografias de Ana Baião

Há quatro anos que Ana Quaresma vive na Malveira, rodeada de lobos e isolada do mundo. A bióloga de 26 anos não leva a vida habitual dos jovens da sua idade: discotecas, noitadas e propostas culturais só têm lugar à sexta-feira, o único dia em que não está junto dos animais. Dora Videira, de 25, juntou-se-lhe há seis meses. Desde então, esta professora de biologia, a realizar um mestrado em etologia (comportamento animal) partilha com Ana a casinha de madeira do Centro de Recuperação do Lobo Ibérico, de quarta a domingo, remetendo família e namorado para os fins-de-semana.
«É um vício» , confessa Dora, enquanto acaba de lavar a loiça do almoço. «A partir do momento em que os conhecemos um por um, perguntamos por eles ao telefone...» São as duas eremitas de serviço. Quase fazem parte da alcateia.
Talvez a maioria das pessoas não saiba, mas não é preciso rumar ao Gerês para ver lobos no seu habitat natural. Na Malveira, 22 lobos partilham 17 hectares de terreno, divididos por sete cercados. É o único parque do país com lobos em cativeiro - depois de, no Verão passado, o de Mafra ter perdido dois animais nos incêndios e transferido o sobrevivente para o Jardim Zoológico de Lisboa. Duas visitas bastam para nos afeiçoarmos aos animais e começarmos a conhecê-los pelo nome. Ana e Dora, e ainda o voluntário Paulo Figueira, tratam deles como se fossem crias. E conhecem-lhes cada mancha, cada reacção, cada uivo.
Todas as semanas, o centro recebe visitas de escolas, com dezenas de miúdos de olhos esbugalhados, ansiosos por «ver os lobos» . Ao fim-de-semana, é a vez dos escuteiros percorrerem a propriedade de olhos bem abertos, à procura de sinais dos animais. Hoje, às 10h de uma segunda-feira, é o colégio inglês de St. George, do Estoril, que visita os bichos: 24 garotos de fato de treino azul-escuro, com idades entre os 7 e os 9 anos, falam inglês e português enquanto esperam o início da visita. Têm a particular esperança de ver o Tojo, o lobo que adoptaram. O programa de adopções de lobos é uma das fontes de receita do centro. Com um mínimo de 35 euros por ano pode adoptar-se um animal, e com uma doação de 350 euros assegura-se o título de «Pai Adoptivo Vitalício». Dora explica que vai ser difícil, «porque o Tojo tem medo das pessoas, é um lobo muito tímido» . Mas os miúdos nem a ouvem...

O CASAL ALFA É QUE MANDA
Ana inicia a visita e começa a dar informação. Explica o que os lobos comem; que mudam de pêlo duas vezes por ano, tendo a pelagem de Inverno e a de Verão; que as alcateias têm hierarquias rígidas, com um casal dominante - o casal alfa, líder do bando; que uma loba pode ter até sete crias por ano, que nascem em Maio; que a duração média da vida deste animal é de 16 anos; que os meninos não podem fazer-lhes festas, ao contrário do que gostariam, porque «os lobos são animais selvagens» . E, por fim, que «o lobo não é mau, como reza a história do Capuchinho Vermelho» .«É importante não tocar nas redes, não correr, nem fazer barulho» , explica Ana, antes do sinal da «largada», «para que os lobos não tenham medo e não se escondam» . Qual quê! Excitadíssimos, os garotos são incapazes de manter o silêncio.

Nenhum lobo aparece. «Mais de metade das visitas termina assim» , confessa Dora: «Os miúdos saem daqui sem ver lobos nenhuns, por causa do barulho que fazem» .
O dia é salvo quando se avistam dois exemplares em cercados mais pequenos, coroando de glória a visita das crianças. À tarde, pelas 16h, já com tudo mais calmo, é altura da alimentação. Três vezes por semana, os lobos recebem a sua dose de comida. Cada um come semanalmente nove quilos de carne, vaca ou frango. Não precisa de ser fresca, até porque, muitas vezes, os lobos enterram a comida e comem-na quando já está cheia de larvas... Ana pesa os três quilos de hoje, enquanto Dora enfia vitaminas na comida de três animais. «Os comprimidos não podem estar à vista, senão eles cospem-nos...» , diz. Entretanto, Paulo chega. É ele que dá a comida aos lobos desde o Verão passado. Professor de educação física, com 37 anos, rapidamente se afeiçoou aos bichos e integrou este hábito na sua rotina.
À semelhança de Ana e Dora, as duas eremitas dos lobos, também Paulo conhece todos os animais pelo nome. Sabe que o Prado e a Murta são o casal dominante - o líder da alcateia e o único que, em regra, se reproduz - e também o mais territorial. Torce para que a Aurora e o Zimbro, ex-ómega (último lobo na hierarquia da alcateia), acasalem e tenham crias. E já sabe o que quer o Manchas quando estica o focinho para o pé da cerca: festas. Embora o lobo ibérico seja selvagem, nada impede o homem de ter com ele uma relação de afecto. Não há razão para ter medo do «lobo mau».


     

 




Ana, a «eremita residente», mostra os lobos às crianças. Não pode haver barulho




Aurora e Zimbro trocam carinhos






Ana e Dora preparam a comida, que Paulo distribui (em baixo)