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ÚNICA Nº 1864 || 19 Julho
2008
‘É quando
temos fome que cheiramos melhor’
Entrevista
de Katya Delimbeuf
Não
fuma, evita comer alho e trava as constipações
com sauna. E, claro, tem o nariz no seguro. O perfumista François
Demachy criou aromas que ainda hoje são um sucesso. É dele
o novo Dior
Aos
58 anos, o francês François Demachy é director
artístico do grupo de luxo LVMH (Louis Vuitton Moet Hennessy),
um dos mais sólidos do mundo. Perfumista há mais de
30 anos, criou dezenas de fragrâncias conhecidas para a Chanel,
onde trabalhou 29 anos, e recentemente para a casa Dior, para onde
transitou em 2006. Este homem elegante e pausado foi responsável
por sucessos como Égoiste, Fahrenheit 32, Eau Sauvage, J’Adore,
Acqua di Parma e outros tantos. A sua última criação
dá pelo nome de Dior Homme Sport, um perfume fresco e sedutor,
dominado pelo gengibre, o cedro e a bergamota, que chega a Portugal
a 22 de Setembro.
Como é que
uma pessoa se apercebe que quer ser perfumista? Nasce-se perfumista?
No meu caso, foi tanto um acaso como uma sorte. Quando se vive na
região de Grasse [zona por excelência da indústria
dos perfumes], também se torna mais fácil...
Lembra-se da primeira vez que se emocionou com um cheiro?
Não me lembro exactamente da primeira vez, mas recordo-me,
no regresso das boîtes, de madrugada, do cheiro dos campos
de jasmim por onde passava de lambreta. Tinha 16 anos.
Como começou a fazer estágios de Verão
no universo da perfumaria?
O meu pai, que era bastante severo, disse-me sempre que eu teria
que pagar as minhas saídas. Por isso, comecei a trabalhar
muito cedo nas fábricas de perfumes, onde no Verão
precisavam de mão-de-obra. Aprendi tudo o que sei sobre perfumes
na fábrica, no laboratório. Um perfumista obrigou-me
a fazer tudo aquilo de que ele não gostava. É assim
que se aprende.
Leu «O Perfume», de Patrick Süskind?
Sim, claro.
E o que lhe sugere o personagem principal, Grenouille?
Que não há grandes erros técnicos. Que tudo
pode ser verdade, tudo é credível, a nível técnico.
As sensações são muito bem descritas. E as fantasias
são sempre extremas. É um livro com muitas qualidades,
até porque deu a conhecer este aspecto do «métier» a
muita gente.
Como se inspira no dia-a-dia? Passeia pelo campo? Procura cheiros
na cozinha? Viaja?
Vejo a minha profissão como um «métier» de «transmissão».
Somos simples intérpretes. Preciso de ser alimentado, seja
por palavras, cores, sensações... Gosto muito de ópera,
e vou muitas vezes. Gosto de cenários exuberantes... O meu
trabalho consiste em transformar todas estas sensações
e impressões em cheiros. Portanto, tudo serve de inspiração.
As viagens, as conversas, as palavras...
Dê-me um exemplo.
Este último perfume que criei, o Dior Homme Sport, começou
nos EUA, com uns bombons ingleses que tinham um cheiro muito apimentado.
Daqueles que são tão fortes que quando se põem
na boca precisamos de inspirar ar para acalmar. Procurei transpor
para o perfume essa sensação de frescura e o meu desafio
foi trabalhá-la de forma diferente. Há coisas muito
interessantes, como o que se passa agora com o chocolate. Redescobriu-se
o chocolate na cozinha, para usar sem ser como doce. Há imensos
pratos mexicanos, por exemplo, que usam o chocolate com carne...
Outro exemplo são os odores relacionados com o cabedal - uma
carteira envelhecida, por exemplo. Posso trabalhar esse cheiro para
o transcrever para um perfume de homem. Depois, esses cheiros podem
ir para a prateleira, e mais tarde virem a servir. Mas frequentemente é mais
uma conjunção de ideias que leva à criação
do que propriamente uma ideia genial.
E como é que, partindo de um objecto de cabedal, se
converte isso em cheiro? Destila-se?
Ou se faz de uma forma simples, mas sofisticada, capturando o ar
e as moléculas odoríferas por cima dos objectos, com
uma espécie de taça ao contrário, uma seringa
e uma armadilha composta de carvão activo, aspirando-o e analisando-o.
Ou então usa-se o nariz, para um «approach» mais
hedonista, menos analítico.
É um misto de trabalho laboratorial, de físico,
e de trabalho mais sensorial?
Os perfumes são sempre um equilíbrio instável
entre um lado muito hedonista, artístico, e um lado cartesiano,
analítico. Às vezes pende para um lado, outras vezes
para o outro.
Quanto tempo leva um perfume a criar? E quantos ensaios são
precisos?
Não há regras, mas para este perfume, demorámos
um ano e meio - o que não é muito. O número
de ensaios: 432.
Fazem variações infinitesimais?
Imagine uma receita. Experimenta-se 432 vezes, até estar perfeito.
E faz-se com uma equipa de quantos?
No laboratório, é muito restrito - somos três
pessoas. Para manter em segredo. Depois, claro, pedimos opinião
a outras pessoas, incluindo perfumistas.
Nessas alturas, sente-se um pouco como um alquimista?
Não, sinto-me mais como um pintor ou um arquitecto. Porque
um perfume é uma construção. Há uma estrutura,
e há todos os elementos que se põem em cima dessa estrutura.
Que cuidados tem com o seu nariz?
Não fumo. Evito o alho - o que é terrível, porque
adoro. E, até há um tempo, fazia regularmente sauna
para travar as constipações. Não gosto de ar
condicionado. Aliás, a maior parte dos laboratórios
de perfumistas têm janelas, porque se cheira melhor assim.
O seu nariz está no seguro?
Esteve, na Casa Chanel, onde trabalhei muitos anos, e vai voltar
a estar - mas ainda não tratei disso.
Quantos «narizes» há no mundo?
Haverá cerca de 200.
Usa perfume?
Sim. Primeiro, uso protótipos, durante a elaboração,
para ir cheirando. Quando estou de férias - e para me sentir
em férias -, uso uma água de colónia que fiz,
muito simples.
Acontece-lhe ir comprar perfume?
Sim, mas para estudar. Embora haja perfumes que gostaria muito de
usar.
Gosta de países mediterrânicos, com mar, calor...
Portugal cabe nesse conceito. Conhece?
Não. Estive três dias em Lisboa apenas. Mas faz parte
dos lugares que gostaria de perceber melhor, porque não só tem
uma cultura mediterrânica como está virado sobre o oceano
Atlântico. E foi um país de trocas. Daí, há aprendizagens
a retirar.
O que é para si ser perfumista? Tem algo de mágico?
Não. É uma bela profissão, na qual se avança
pela dúvida. Ter a certeza é a pior das coisas. Há sempre
coisas para descobrir.
Já lhe aconteceu olhar para alguém e pensar na fragrância
que lhe assenta?
Nem sempre, mas já me aconteceu.
A imagem escolhida para o perfume Dior Homme Sport é Jude
Law. Está contente com a escolha?
Sim, porque gosto da sua elegância. E do seu lado inglês
refinado. É elegante, e tem, ao mesmo tempo, um piscar de
olhos.
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«EXPERIMENTA-SE vezes sem conta até chegar à perfeição».
Mais do que um alquimista, François Demachy considera-se um
arquitecto ou um pintor
DEVERIA
ter dado seguimento à farmácia do pai, mas
apaixonou-se pelo «métier» durante a adolescência,
quando ganhava uns trocos numa fábrica de perfumes
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