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ÚNICA No. 1640 - 3 Abril 2004
Pulos de gigante
Na Cova da Moura, uma associação local luta contra o
insucesso escolar e por maior responsabilização paternal
com armas domésticas: as «mães de bairro»
ensinam conceitos básicos a pais e filhos.
Texto de Katya
Delimbeuf
Fotografias de Ana Baião
Ouve-se alta a música, na
rua estreita da Cova da Moura. « Tou nem aí, tou nem
aí... » Os carros passam depressa no bairro africano
dos arredores de Lisboa, alguns com sistemas de «tuning»
e rádios a expulsarem decibéis capazes de eclipsar qualquer
lei do ruído. Vanessa e Márcia estão atrasadas.
Passa quase meia hora das seis da tarde e não há vestígio
das meninas, de 11 e 3 anos. «Não é costume»
, garante Domingas, colaboradora do Moinho da Juventude, a associação
que se instalou no bairro há 12 anos e se tornou parte da sua
geografia.
Domingas é uma «mãe de bairro». Trabalha
com a associação desde 1997, quando o projecto «Pulo»
começou. Aí, recebe formação contínua
e remuneração para ensinar aos miúdos conceitos
básicos, como a aprendizagem da língua portuguesa ou
o raciocínio lógico e matemático. Recrutados
entre os moradores pelo seu perfil de liderança, os «pais
de bairro» são hoje 21, cada um com 23 famílias
a cargo. Todos os bairros abrangidos no concelho da Amadora - da Cova
da Moura às Fontainhas, passando pelo Estrela dÁfrica
e o 6 de Maio - têm um coordenador. Em 2001, o «Pulo»
passou o testemunho ao «Caleidoscópio», mantendo
os mesmos objectivos: combater o insucesso escolar e promover uma
maior responsabilidade parental.
«Muitas vezes, o projecto entra
em conflito com a família, obriga-a a estar presente - a não
aproveitar aquela hora semanal para ir às compras ou fazer
o jantar», explica Marília Garcia, a coordenadora. «Alterar
a mentalidade da família, que acha que para lá da alimentação
e do vestuário o resto é com a escola », é
o objectivo último que permanece.
Para isso, todas as semanas os «pais de bairro» deslocam-se
a casa das famílias e aí passam uma hora com as crianças
dos 2 aos 4 anos (a idade-alvo do projecto) e outro elemento - a mãe,
o pai, ou um irmão mais velho que cuida dos mais pequenos.
Dos 6 mil moradores que vivem na Cova da Moura, 84 famílias
são abrangidas pelo «Pulo» e 105 pelo «Caleidoscópio».
Destes, 87% são cabo-verdianos, e os restantes são-tomenses
e guineenses.
«Ao fim de sete anos de Pulo, começam a sentir-se
os efeitos no bairro» , diz Marília. «Já
não há crianças na rua, a descoberto, como há
alguns anos ». E é precisamente esta geração
de miúdos, « que não tem ninguém em casa
e cresce sem referenciais, que se torna problemática»
, afirma a coordenadora. « Hoje, já muitos pais têm
a iniciativa de inscrever os miúdos em projectos nas associaç
ões ».
Meia hora depois, chegam as duas irmãs. Vanessa e Márcia
vêm do infantário, onde a mais pequenita esteve a comer
o lanche: «couscous». Os vestígios são indesmentíveis:
traz a boca branca. Todos os dias está na creche, das 9h30
às 15h. Depois, Vanessa vai buscá-la e fica com ela
até a mãe chegar.
Entramos na casa, humilde e húmida. A roupa dos miúdos
está espalhada um pouco por todo o lado, e há fotografias
da família pelas paredes. É ali, na sala, aproveitando
a mesa, que se inicia a hora semanal das «mães de bairro».
Começa-se pela leitura de um livro: Alice no País das
Maravilhas . Vanessa, a mais velha, lê para a irmã. Depois,
esta continua, contando aquilo que vê. Domingas ajuda a encontrar
as palavras certas quando Márcia tem mais dificuldades.
O CONTACTO COM
O PAPEL
Falar em português é ponto assente no projecto, e fundamental
para que as crianças saibam alguma coisa da língua quando
chegam à escola - geralmente, os pais falam crioulo com os
filhos. «O facto do crioulo ser uma língua exclusivamente
oral leva a que a maioria desvalorize os documentos escritos »,
explica Marília Garcia. «Daí que muitos não
estejam legalizados...» Por isso também, de dois em dois
meses, o Moinho oferece livros às crianças, para que
elas se habituem ao contacto com o papel.
Segue-se uma canção, também em português.
« O balão... do João..., sobe, sobe pelo ar...»
Márcia posa para a máquina fotográfica, sorri.
Está maravilhada. Chega a altura das colagens e dos recortes
para fazer os cartazes da Festa da Primavera, a decorrer no Moinho,
no próximo fim-de-semana. « Eu vou fazer bolinhas!»
, exclama a pequena, enquanto amassa o papel colorido para fazer uma
flor. «Com a ponta dos dedos» , especifica Domingas. Deste
modo, espera-se que as crianças se habituem ao material escolar
e desenvolvam apetência pela escola, não a abandonando.
O tempo passa a correr. Quando damos por ela, a hora já acabou.
São quatro os momentos que devem compor a sessão semanal:
o momento da história; o da canção; o da motricidade,
em que a criança deve pular, saltar...; e o do conceito, em
que se aprendem noções abstractas. « Trabalha-se
a concentração, a memorização, o raciocínio
lógico e matemático », continua a coordenadora.
Trata-se de investir na fase da conceptualização, dos
2 aos 4 anos.
Seguimos com nova «mãe de bairro»: Maria dos Anjos
trabalha no Moinho há dois anos e mora na Cova da Moura «
desde sempre» , há 27. Desde o início acompanha
Ruben, um menino de tranças pretas e 4 anos. Ruben tem dois
irmãos: Tiago, de oito meses, no berço, em frente à
televisão; e Vânia, de dois anos, tímida, ao colo
do pai. José, o patriarca, está hoje em casa. Chegou
mais cedo do trabalho nas obras, a tempo de assistir à hora
da «mãe de bairro».
Ruben está no jardim de infância há pouco tempo
- o Moinho conseguiu arranjar uma vaga para ele. É outros dos
objectivos do projecto, para que as crianças cheguem à
escola mais bem preparadas. No sofá da sala, decorre a «sessão».
Depois das bolinhas comporem a flor, cola-se a fotografia do Ruben
no centro da corola.
Ruben é tímido e pouco falador. Agora aparafusa e desaparafusa
parafusos, que emparelha segundo as cores ou o número. Conta-os,
de um a cinco. Maria dos Anjos vai tirando uns, pondo outros, perguntando
quantos ficam. Assim se aprende a somar e a subtrair. E o que aprendem
os pais? « A importância de falar com os filhos. De demonstrar
o seu afecto. De lhes abrir horizontes para fora do bairro. De perceber
que não é preciso dinheiro para fazer brinquedos...»
, enumera Marília Garcia.
Segue-se a leitura do livro e, finalmente, a canção.
O tempo terminou. Para a semana há mais.
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A «mãe
de bairro» Célia faz colagens com as irmãs Elísia,
Elisabete e Sabina, na hora semanal do projecto
Vanessa, a irmã
mais velha, ajuda Márcia na leitura de algumas palavras
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