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ÚNICA No. 1635 - 28 Fevereiro 2004
Portugueses que mandam
em França
Sabia que há 220 autarcas portugueses em França? Eleitos
pela primeira vez em 2001, reúnem-se hoje no Senado.
Texto de Katya
Delimbeuf
Por incrível que pareça,
três gerações depois dos primeiros emigrantes
portugueses terem chegado a França, permanece o cliché
do Manuel de bigode, pedreiro, e da mulher empregada doméstica
ou porteira. Talvez o último passo que faltava à comunidade
portuguesa para se afirmar fosse a participação cívica,
garantia de igualdade de direitos com os nacionais. Em 2001, uma directiva
da União Europeia ditou que os portugueses, como as outras
comunidades estrangeiras, passassem a poder candidatar-se a cargos
municipais. Desde então, há perto de 220 autarcas portugueses
em França, alguns em câmaras tão importantes como
Bordéus ou Limoges.
«Os políticos perceberam que precisavam do voto português»
, explica António Monteiro, o nosso embaixador em França.
Ao contrário da primeira geração de portugueses
emigrados, os novos autarcas provêm essencialmente da classe
média. «Há de tudo» , assegura António
Monteiro, «de pequenos comerciantes que ascenderam na sua carreira
a profissionais liberais reformados ou ex-domésticas com forte
intervenção associativa» .
O percurso social ascendente é
elemento comum a muitas histórias. Que o diga Ana de Oliveira
Pommet, 63 anos, há três na Câmara de Bordéus.
É conselheira municipal, com actividade no sector das Relações
Internacionais e especial incidência na Península Ibérica.
Além disso, está encarregue do pelouro da segurança
dos estabelecimentos públicos e até tem poder para casar
as pessoas civilmente - é «oficial do Estado civil».
Convidada por Alain Juppé para integrar a sua lista pelo UMP
(União do Movimento Popular), partido no Governo, poucos adivinhariam
que a mulher que hoje se dedica à actividade municipal teve
como primeiro ofício o de cozinheira.
Chegou a França em 1960, com 19 anos. Durante um ano trabalhou
como cozinheira em casa de um industrial francês rico cuja mulher
era portuguesa. Depois, foi vendedora numa sapataria e dactilógrafa,
até abrir uma pastelaria no centro de Bordéus, onde
«os clientes faziam bicha à porta» . Era Ana que
confeccionava os bolos, misturando receitas portuguesas e francesas.
Passados uns anos, Ana desfaz-se do salão de chá e investe
no sector imobiliário, assegurando uma renda que lhe permite
viver sem trabalhar. É então que surge o associativismo
em força - no acolhimento dos portugueses e na sua integração.
Fundou várias associações, entre as quais a Action
Aquitaine Portugal, à qual preside ainda hoje.
«Há muita gente aqui a cavalo entre dois mundos»
, afiança Ana. «Sentem que em França são
os portugueses e em Portugal os emigrantes.
Não se sentem bem daqui, mas dizem que também não
são de lá de baixo. O meu filho não
quis falar português até aos 18 anos, não se considerava
português. Não era prestigiante, remetia para a tal primeira
geração de pedreiros e empregadas domésticas»
.
Tanta intervenção social acabou por chamar a atenção
do cônsul de Portugal - e do presidente da câmara, Alain
Juppé. Depois de 44 anos em França, Ana considera que
« a experiência tem sido excelente, mas a nossa comunidade
está ainda um pouco alheia à intervenção
cívica local» . Talvez por isso, admite que «a
imagem dos pedreiros e das empregadas» se mantém em parte.
Para António de Souza Gomes, a imagem da comunidade portuguesa
já não se resume «a pedreiros e trolhas»
. Autarca na Câmara de Blois desde 2001, orgulha-se de ter ajudado
a «correr» com o conhecido Jack Lang de lá. O portuense
de 60 anos, cabeleireiro de profissão, é responsável
pelo pelouro da segurança e higiene dos novos espaços
públicos.
Em França há 39 anos, António lembra-se bem dos
motivos que o fizeram abandonar o seu país. Estava à
beira de ser chamado para a tropa, e Angola só lhe trazia um
pensamento: dois dos seus melhores amigos tinham morrido lá,
e ele não fazia tenções de se lhes juntar numa
guerra que não sentia como sua. Uma noite disse à irmã:
«Amanhã não vou trabalhar» . Assim foi.
No dia seguinte, estava em França.
NATURALIZADO EM ABRIL DE 74
Começou como operário numa fábrica, até
aprender a língua. Depois, arranjou lugar num cabeleireiro,
mas, na altura, a lei proibia os estrangeiros de terem profissões
«artísticas». Era-lhe permitido trabalhar apenas
como barbeiro. Um salão misto foi a solução encontrada
para contornar o problema.
Vir a Portugal envolvia riscos demasiado grandes. Por isso, António
pediu a naturalização francesa... em Abril de 1974.
Entretanto, estendeu os negócios a uma empresa de importação
de produtos portugueses (vinhos e azeite), e montou um restaurante-bar
português. Acredita que foi por ser muito popular - e por ter
sentido na pele os problemas de insegurança que assaltaram
o bairro - que o convidaram para um cargo autárquico. Apesar
do seu esforço para que as duas filhas mantivessem o vínculo
a Portugal, nenhuma fala a língua ou pensa em instalar-se cá.
Aníbal Almoster prefere falar em francês, no qual se
sente mais à vontade. Aos 36 anos, em França desde os
dois, este contabilista casou com uma francesa e é pai de uma
menina com dupla nacionalidade - um requisito seu. Conselheiro municipal
na Câmara de Limoges pelo partido dos Verdes, é responsável
pelos pelouros da cultura, juventude e finanças.
Desde novo, andou metido em associações de estudantes
e activismos. «Deus sabe» que não foi o universo
familiar a despoletar o «bichinho» da política.
Em casa, o fantasma de Salazar habituou os pais a nunca falarem desses
assuntos, como sinónimo de não ter chatices. Ainda hoje,
não discutem a actividade do filho...
Aníbal viveu em França praticamente a vida toda, mas
considera-se português de coração. «Na hora
do Portugal-França, o meu coração bate pela equipa
das quinas» , confessa. Todos os anos vem cá, mas é
realista: «Viver em França permite-me uma realização
profissional e política que duvido que pudesse ter em Portugal»
.
É o único dos irmãos que pensa em voltar. E apesar
de querer transmitir à filha os valores da cultura portuguesa,
Aníbal tem as suas dúvidas quanto à manutenção
da comunidade lusa em França: «Somos cada vez mais franceses.
Eu vejo pelos meus irmãos, que têm filhos chamados Alain
e Élodie. Daqui a 30, 40 anos, penso que não haverá
mais portugueses em França. Acontecerá como com a comunidade
polaca. Desaparecerá»
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Aníbal Almoster com a mulher e a filha
António de Souza
Gomes e Ana de Oliveira Pommet
O livro «A Identidade
Partilhada» reúne 52 testemunhos de autarcas portugueses
eleitos em França
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