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VIDAS Nº 1550 13 Julho 2002
Umbigos
ao véu
A
febre do Clone contagiou as portuguesas. A dança do ventre é a mais
recente moda nacional.
Texto
de Katya Delimbeuf
Fotografias de Ana Baião
O
fenómeno de popularidade da telenovela «O Clone» fez explodir a
procura da dança do ventre no nosso país. São cada vez mais as
pessoas que querem aprender a arte das mil e uma noites e cada vez mais
os professores dispostos a ensiná-las. Tentámos perceber quais os sítios
onde se frequentam aulas de dança do Oriente, quem as procura e quem as
dá. Conclusões? Há quem ande nisto há muito tempo, muito antes da
Jade ter invadido os serões televisivos. Mas muita gente despertou para
esta dança por causa dela.
O restolhar das medalhinhas
anuncia o caminho para a aula. Confiando no ouvido, encontramos
facilmente a sala onde uma trintena de odaliscas vestidas a rigor - de
saias vaporosas e lenços de tilintantes moedas à cintura, umbigos à
mostra e véus esvoaçantes - conversam entre si e ensaiam passos em
frente do espelho. A música começa e os quadris ganham vida própria.
Braços erguidos e mãos arqueadas, as alunas cumprem círculos
bamboleantes com as ancas e treinam os movimentos que aprenderam na aula
passada.
São jovens, todas elas, aparentemente na
vintena. O professor, Mohamed, ocupa a sua posição em frente das
alunas e dá início à aula. Começa pelo aquecimento, com rotações
da cintura. É fácil perceber porque é que esta dança é considerada
tão sensual e, por vezes, provocatória: os movimentos são muito
localizados na zona da pélvis. Aquele é, seguramente, um sítio onde
nenhum homem se importaria de estar. E há ali barriguinhas de perder a
cabeça...
As alunas estão
concentradas, sérias. Muitas transpiram, nota-se que estão cansadas.
Alguns dos exercícios requerem muita força nos músculos da barriga e
nas nádegas. Há alturas em que o chocalhar das medalhas nos lenços à
cintura é quase ensurdecedor. A aula é muito energética. Dura sempre
mais de uma hora. No fim da primeira parte, as Jades portuguesas correm
em busca da garrafa de água. A segunda parte da aula faz-se com véus,
tornando a dança ainda mais bonita. Fluidos e transparentes, de todas
as cores - azuis, vermelhos, laranjas e amarelos -, ondulam por cima das
cabeças, em toda a sala. Mohamed ensina a usar o véu, esticado por trás
da cabeça. Há passos complicados, balanços para a frente e para trás,
posições de pés e mãos, é preciso acertar no ritmo... Isto é bem
menos fácil do que parece...
Mohamed Elmasseri sabe que não
é usual um professor de dança do ventre homem. «Mas eu pode
ensinar técnica», explica, num português incipiente. O egípcio,
de 30 anos, está em Portugal há um ano e há dois meses que dá aulas
no Ateneu Comercial, aos Restauradores. Tempo suficiente para contar com
perto de 120 alunas, entre as quais a Gisela, do «Masterplan»,
fazer coreografia para televisão e teatro e trabalhar com o seu próprio
grupo de danças folclóricas do Egipto.
Segue-se a dinâmica de grupo. Três
colunas de odaliscas deslizam, de uma ponta a outra da sala. A seguir,
sentam-se numa roda e dança uma de cada vez, enquanto as outras batem
palmas. Depois, duas a duas, improvisam, ao desafio. É o lado comunitário
da dança que se alia ao lado estético, muito presente nestas aulas. No
final, levantam-se e ensaiam todas juntas, lembrando as origens da dança,
quando esta era um ritual religioso praticado exclusivamente entre
mulheres, no qual se pedia aos deuses fertilidade e harmonia para o
casal.
Ana e Mariana treinam para
uma exibição na Feira Internacional de Lisboa. Uma ajoelhada, à
frente, e a outra de pé, por trás dela, brincam com a imagem que o
espelho lhes devolve, onde a deusa Shiva, de vários braços, toma forma
e desloca a cabeça de um ombro para o outro. São duas das veteranas,
percebe-se pelo à-vontade com que dançam. Ana Santana tem 26 anos e é
consultora na Arthur Andersen - não propriamente a profissão que estaríamos
mais à espera de encontrar ali. Rosto bonito, cabelo castanho ondulado,
a cair pelos ombros, sorriso simpático. Pratica dança do ventre desde
Janeiro, mas a rapidez com que o seu corpo apanhou o jeito deve-a ao seu
passado nesta área: fez quizumba, salsa, ritmos africanos... Assume-se
como «uma viciada em dança». Não veio por causa de «O
Clone», mas acha que a novela trouxe muita gente para estas aulas. «A
dança do Oriente fez-me gostar mais de mim. Faz bem ao ego.
É preciso ter cuidado para não se cair na vaidade», diz Ana. «Todas
as mulheres podem praticar esta arte, independentemente do corpo que têm.
Uma pessoa complexada não só pode vir aprender como deve - porque
qualquer mulher fica feminina a dançar isto».
Mariana Portugal, 23 anos,
estudante de Audiovisuais e Multimédia na Universidade Lusófona. Veste
de azul, com um «top» de lantejoulas brilhantes, uma saia comprida
rendada e uma pulseira a adornar-lhe o braço. O cristal a meio da testa
completa o visual exótico, para o qual a longa cabeleira de caracóis
negros contribui. Há quatro anos que pratica dança do ventre - já não
é uma novata nestas «andanças»... Começou por ter aulas na Dance
Factory com a alemã Prisca Diedrich. Considera a dança «uma
terapia. Eleva-nos». Assume-se como uma feminista convicta. É sem
pejo que diz que «é o olhar ocidental que faz com que a dança
do ventre seja vista como algo sexual. Afinal, fazem-se 'strips' com
ela...». E defende: «Esta é uma dança de mulheres. E eu
acho que elas devem impor-se e ter todos os direitos», afirma,
categórica.
É num palácio cor-de-rosa,
em Algés, albergue do Centro de Dança de Oeiras, que encontramos
Prisca Diedrich, 36 anos, a primeira professora de dança do Oriente em
Portugal. Toda vestida de branco, com opalas nos brincos e pescoço,
olhos verdes delineados a lápis negro, à volta dos quais brilham
pozinhos dourados, cabelo liso comprido, castanho. Veio da Alemanha há
dez anos, numa altura em que a procura era insignificante no nosso país,
ao contrário do que acontecia no seu, onde a divulgação se fazia há
mais de 30 anos. O interesse pela dança oriental chegou à Alemanha com
os numerosos imigrantes vindos do Médio-Oriente, nomeadamente turcos e
egípcios. «Hoje, a febre da dança do ventre é tal que
existem escolas em quase todas as aldeias alemãs», assegura.
Prisca licenciou-se em
Pedagogia Social, especializou-se em expressão dramática e plástica,
e foi em sítios que dinamizava enquanto animadora sociocultural, onde
lidava com muitos imigrantes, que teve os primeiros contactos com a dança
oriental. Aprendeu a dançar e veio para Lisboa mas, na altura, ninguém
se mostrou interessado neste tipo de aulas. No Porto, onde morou seis
anos, começou a dar aulas como segunda profissão. Agora, regressada a
Lisboa, sente uma receptividade totalmente diferente da que encontrou na
primeira vez em que ofereceu os seus préstimos. Actualmente, já
consegue viver só disto.
Numa sala ampla e luminosa,
com janelas forradas a cortinas de várias cores, por onde a luz
filtrada assume tons de arco-íris, Joana Saahirah, 23 anos, dança para
a objectiva do fotógrafo, antes de dar a sua aula, no Alfa Omega Zen.
Vestida com um fato turco, a ruiva de cabelo comprido, olhões azuis, lábios
carnudos e sorriso Colgate parece uma odalisca (do turco «odalik», que
significa criada de quarto) saída de um filme sobre sultões. O ventre,
doirado por palhetas de purpurina, ondula e vibra ao som da música,
enquanto a câmara se delicia com a sensualidade e aparente facilidade
com que ela dança.
Joana Saahirah faz parte de
uma geração mais nova de professores, na senda da de Prisca Diedrich e
Myriam Zsabo, que desbravaram caminho em Portugal. «Saahirah» é o
nome artístico, mas Joana não revela o seu significado. «É
segredo». Dá aulas há um ano e meio, mas pratica há quatro - e não
hesita em dizer que «é pouco». Ela é que teve uma
aprendizagem muito intensiva, garante: além da formação clássica em
Dança e Teatro, esteve no Egipto várias vezes, onde conheceu melhor as
raízes da dança, aprendeu muito em Madrid com o professor Shokry
Mohamed, uma das autoridades na matéria... Acredita que com «O Clone»
houve um «boom» na procura, mas também na oferta. «De
repente, brotaram professores de dança do Oriente como cogumelos. E
surgiram profissionais nem sempre qualificados para dar aulas».
Para quem está de fora,
pode parecer exagero, mas Joana garante: «A dança do Oriente
mudou a minha vida». Como? «Através do autoconhecimento.
Esta é uma terapia em que tens de descobrir sentimentos dentro de ti
para pôr cá fora. É uma forma de catarse». A dança do Oriente
foi, para ela, como um despertar. Sem se dar conta, foi-a transformando
por dentro. «Ultrapassei alguma timidez, a dança espicaçou a minha
criatividade... É impossível evoluir-se nela sem melhorar como pessoa.
Para mim, é um caminho de crescimento.
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A
portuguesa Joana Saahirah, uma das mestras da arte que veio do Oriente
A
aula de Prisca Diedrich, a primeira professora de dança do ventre em
Portugal, no Centro de Dança de Oeiras
A
aula de Mohamed Elmasseri, no Ateneu Comercial, aos Restauradores, na
altura em que as odaliscas treinam os movimentos com o véu. O «céu»
da sala pinta-se de cores |
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