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VIDAS N. 1564 19 Outubro 2002
Vencer
a normalidade *
João
Pombeiro sofre de paralisia cerebral, mas isso não o impediu
de se tornar no único em Portugal a defender uma tese de licenciatura.
Esta procura saber o que é a normalidade.
Texto
de Katya Delimbeuf
Fotografias de Jorge Simão
Num vagão de comboio, no sentido Oeiras-Cais
do Sodré, segue um homem numa cadeira de rodas com espelho
retrovisor. Está vestido com uma «t-shirt» amarela
e roxa - onde se lê «O que é a normalidade?»
-, calças de ganga e ténis, ao pescoço tem um
relógio pendurado. É magro, usa óculos, o cabelo
é curto, ralo. Vai sozinho a um canto, a olhar a paisagem que
o ângulo de «estacionamento» lhe permite.
As pessoas que entram olham-no e, em regra, não se aproximam,
à excepção do revisor, que já o conhece
e lhe pisca o olho, e lhe dá uma pancadinha ao de leve no braço
enquanto abre a porta de passagem. A mesma porta que muitos atravessam
e fecham displicentemente, sem notarem se bate ou não na cadeira
de rodas por trás dela. Chega-se ao destino e a carruagem esvazia-se.
João olha em volta, enquanto pensa a quem é que vai
pedir ajuda para conseguir que a cadeira eléctrica, «que
custou 1900 contos em 1984 e pagou IVA, como se fosse um carro»,
salte do vagão para o cais de embarque, ainda separado por
uma pequena altura. Um senhor bem vestido, na casa dos 80 anos, o
último a abandonar a carruagem, aproxima-se: «Precisa
de ajuda?» João responde: «É só para
a cadeira não cair com muita força».
João Pombeiro fez este percurso durante quinze anos, os mesmos
que passou a tirar a licenciatura em Antropologia. No Cais do Sodré,
um autocarro especial da Carris espera-o para o levar até à
universidade, onde apresentou, há uns meses, perante uma larga
plateia, a tese que lhe ocupou os últimos três anos.
«Uma Antropologia da Deficiência», sobre a forma
como as pessoas olham para os deficientes e os preconceitos que têm
deles. «Não havia nada sobre o assunto no nosso país,
muito menos feito por um deficiente». A tese é inédita
e, por isso mesmo, deverá ser publicada. O júri afiançou
que o trabalho andava próximo de uma tese de mestrado e incentivou-o
a prosseguir. João ainda não sabe: «É mais
uma questão de bolsa».
A tristeza não faz parte do mundo de João. O sorriso
aberto, grande e meigo, é a primeira coisa que mostra quando
nos recebe em casa, onde mora há já vinte anos. A antiga
Estalagem Conde de Oeiras deu origem ao Centro Residencial Nuno Belmar
da Costa para assegurar aos doentes de paralisia cerebral uma casa
com condições dignas. Vinte e três quartos individuais,
com casa de banho própria, elevadores e corredores largos,
ginásio adaptado para fisioterapia e sala de jantar, são
algumas das características do centro onde até a recepcionista
nos atende em cadeira de rodas. As paredes do quarto estão
forradas a quadros pintados por ele e máscaras exóticas
compradas na Expo ou trazidas de viagens. A cama grande, um frigorífico
com leite e sumos equipados com longas palhinhas, para que João
consiga beber sozinho, o computador com ligação à
internet - o seu novo e assumido vício -, a máquina
de escrever com que faz os seus quadros - pintura dactilográfica
- e um armário recheado de livros completam a mobília
do quarto, onde a cadeira eléctrica, cuidadosamente dobrada
a um canto, lhe vai lembrando diariamente a que ponto ela lhe mudou
a vida. Dando-lhe autonomia.
Na estante alinham-se fotografias, prémios, livros de assinaturas
das suas exposições - «mais de trinta» -,
dos quais João mostra com orgulho comentários de ilustres
como David Mourão Ferreira ou Fernando Pessa, que o entrevistou
várias vezes. João fala com dificuldade, entre esgares
e trejeitos, mas faz-se compreender. No fundo, é o exemplo
do que muitos não sabem: que uma pessoa com paralisia cerebral
não tem de ter um atraso mental. Esta deficiência resulta
sempre de um traumatismo - no caso do João, na altura do parto
-, mas a lesão só lhe afectou a parte motora, não
a intelectual. Como se pode ler num dicionário da especialidade:
«a paralisia cerebral traduz-se por fraca coordenação
muscular, espasmos e fraquezas que limitam os movimentos, e perturbações
da fala. As crianças com esta deficiência podem ser tão
inteligentes como as crianças normais. Contudo, como por vezes
se babam e fazem caretas e emitem sons incompreensíveis, podem
parecer anormais».
«O João é muito trabalhador, muito persistente»,
diz a mãe, que até à última discordou
da ideia do filho tirar um curso superior, por conhecer bem as superior,
por conhecer bem as dificuldades de viver em Oeiras e ir diariamente
para Lisboa numa cadeira de rodas. Ir sozinho, do Centro até
à estação, estar dependente da boa vontade de
um desconhecido que o ajude a entrar no comboio, para ir até
ao Cais do Sodré, para só depois chegar à Universidade,
não é só para quem pode, é para quem quer.
João queria, não havia dúvida. E as pessoas ajudam?
«Há de tudo. Desde os prestáveis, até um
que apanhei uma vez a refilar que se queria sentar, que não
havia direito que ele tivesse pago bilhete e estivesse de pé,
quando eu ia sentado». Lembra-se de uma vez, no Cais de Sodré,
lhe terem dado uma esmola, tomando-o por um pedinte, e de não
terem percebido quando ele atirou a moeda fora, indignado. «Se
calhar achou pouco...!», ainda ouviu dizer.
«Mas o João escolhe sempre as pessoas que acha que têm
cara de o ajudar», brinca a mãe, carinhosamente. «Alguns
vêem-se aflitos! É que só a cadeira pesa 95 kg,
e com ele chega bem aos 150...» Maria da Conceição,
a mãe, que toda a gente trata por Conchita, por ter vivido
em Espanha até aos 18 anos, é uma mulher possante de
cabelo louro e 73 anos. Conchita lembra-se bem das dificuldades que
passou e da evolução no nosso país na atitude
em relação aos deficientes. Lembra-se de descer todos
os dias três lances de escadas com o João às costas,
por morar num prédio sem elevador. Lembra-se de ir no comboio
e das pessoas fugirem do João. Lembra-se de estar com ele ao
colo, até aos seus treze anos, porque ele não conseguia
manter-se de pé, na fila da paragem de autocarro, e de ninguém
lhe dar a vez - ou o lugar. «É que o João tem
40 anos - e, há 40 anos, não havia deficientes, havia
anormais». 1981 foi o primeiro Ano Internacional dos Deficientes,
o primeiro em que um deficiente apareceu na televisão. «As
pessoas desligavam. O assunto incomodava-as».
João Carlos Cravo Pombeiro nasceu na noite da passagem de ano
de 1962 no Hospital de Santa Maria, «numa dessas noites em que
ninguém pode ter um acidente», desabafa a mãe,
que esteve «48 horas em trabalho de parto e nove em expulsão».
Hoje, não tem dúvidas: houve negligência médica,
mas ela não acredita que valha a pena processar o hospital.
João não chorou quando nasceu. «Em compensação,
nos três anos seguintes chorava sem parar. Não dormia,
só chorava», lembra a mãe. Diagnosticaram-lhe
«morte aparente». O primeiro mês esteve entre cá
e lá. Teve icterícia. Nasceu com 3,5 kg - dez dias depois
tinha 1,2 kg. As médicas achavam que ele seria deficiente profundo.
O pai, jogador compulsivo, estava há cinco dias no Casino do
Estoril. «Só soube que o filho tinha nascido passados
cinco dias, quando finalmente saiu de lá». O casamento
durou mais quatro anos, pontuados por longas ausências de três
e quatro meses. Também por isso, João não tem
recordações do pai. «Só uma ideia muito
vaga».
O ano que se seguiu foi o mais difícil. Desempregada, sem marido
e a ter de cuidar do João a tempo inteiro, Conchita não
tinha forma de arranjar dinheiro. No primeiro ano, viveram do que
os amigos lhe davam. Depois, alugou os quartos de sua casa. Chegou
a tê-los todos alugados, à excepção do
dos dois filhos - João tem um irmão mais velho, de 51
anos -, e dormia num colchão, na cozinha. Tornou-se vendedora.
Fazia troca directa, foi vendedora «Tupperware» - «uma
das primeiras» -, intermediária na compra de casas...
A infância de João também não foi fácil.
Três internamentos prolongados, resultantes de operações
que fez para andar - primeiro às virilhas e aos tornozelos,
depois aos joelhos, para contrariar as «pernas em tesoura»
-, ditaram uma entrada tardia na escola. Esteve no Centro de Reabilitação
Cerebral, na Av. Casal Ribeiro, em seguida no Hospital de Reabilitação
de Alcoitão, dos 5 aos 9 anos. «Mesmo internado, com
as duas pernas engessadas até cá acima e cheiode dores,
a primeira coisa que o João me mostrava sempre eram os dentes,
num sorriso», lembra a mãe, os olhos rasos de água.
«Foi sempre uma criança muito comunicativa. Precisava
era de falar... O João tem-me dado muito mais alegrias que
problemas», diz. E emociona-se.
Aos 10 anos, João entrou finalmente para a escola. Frequentou
o Centro Calouste Gulbenkian para Paralisia Cerebral até aos
18 anos, onde fez o ensino básico e preparatório. A
mãe ofereceu-lhe uma máquina de escrever para fazer
os trabalhos de casa, e aí começaram as primeiras experiências
de pintura dactilográfica. Esta valeu-lhe vários prémios
- nomeadamente um da Japanese Society for Crippled Children, incentivado
por Pilar Mourão Ferreira, mulher do escritor, ganho em 1981;
e outro da Câmara Municipal de Lisboa, em 1990, no âmbito
da primeira exposição europeia de arte para deficientes.
Com o acentuar da veia artística, João sonha em entrar
na Escola Secundária António Arroio, onde o ensino era
bastante orientado para as artes. As barreiras arquitectónicas
e a distância de casa impedem, no entanto, que a ideia avance
e acaba por frequentar, em regime nocturno, a Escola Secundária
de Carcavelos - experiência que durou sete anos mas não
correu nada bem. «As professoras fugiam dele como o diabo da
cruz», recorda Conchita. «Os alunos atiravam-lhe laranjas
no recreio e aviões na sala de aula para o assustar... Cheguei
a ter de ir com ele várias vezes para evitar aquela humilhação...»
«A minha integração na faculdade foi mais fácil»,
diz João cabisbaixo, como que a desculpar-se de algo de que
não tem culpa. Hoje, ainda mantém amigos dessa altura.
Foi o irmão mais velho, que não se conformava com o
facto de saber que João tinha capacidade para tirar um curso
e não o fazia, que foi à procura de uma Universidade
para ele. E achou a Nova uma boa escolha. João queria História
de Arte, mas, mais uma vez, as barreiras arquitectónicas do
(na altura) antigo quartel ditaram uma opção diferente:
Antropologia. «Caí de pára-quedas, mas acabei
por gostar do curso», admite. «A Nova dos soldados - como
se refere Conchita à universidade do tempo em que João
se matriculou, em 1985 - tinha casas de banho estreitas, onde não
conseguia passar uma cadeira de rodas. E o João fez muitas
vezes as necessidades na rua», confessa.
Hoje, esse período está ultrapassado. O rapaz independente,
que vai sozinho à Feira do Livro e que nunca deixa de votar,
conta com vários episódios engraçados na bagagem:
como quando foi assistir a um concerto no CCB, em 1998, e reparou
que Mega Ferreira estava sentado ao seu lado. A Expo ainda não
tinha aberto, mas no fim do espectáculo, João foi atrás
dele pedir-lhe um bilhete especial para deficientes - como houve na
Exposição de Sevilha, que João calcorreou. Três
dias antes da Expo começar, a secretária de Mega Ferreira
ligou a dizer que João podia ir buscar o seu bilhete - um passe
de três meses. Foi à Expo mais de trinta vezes. Como
tinha direito a um voluntário para o acompanhar, pedia sempre
um. Tinha era que ser menina... Um dia apareceu-lhe um rapaz. Passados
cinco minutos, João despachou-o subtilmente, dizendo que já
não precisava de ajuda. Quando teve a certeza de que ele se
tinha afastado, dirigiu-se a um grupo de voluntárias e solicitou
a companhia de uma. Vieram três. João estava no céu.
De outra vez, foi parar à esquadra, quando, ao querer entrar
num barco no Cais do Sodré que era bar e «boîte»,
furou um dos pneus da cadeira eléctrica e nenhuma bomba de
gasolina lho quis encher. A preocupação de João
era a cadeira. De tal forma que, quando a mãe chegou para «ir
buscar o filho à prisão», havia um piquete montado
em torno da cadeira, com um agente destacado para a guardar.
João tem muitos sonhos: «Viajar - ao México, ao
Egipto, à Índia, à Grécia...» E
continua: «Trabalhar - nalguma área ligada à cultura,
a ajudar a montar exposições», apesar de ter noção
de que, «hoje em dia, um emprego é difícil para
muita gente». Gostava de um pequeno ateliê para pintar;
de ver os acessos para deficientes mais facilitados, para poderem
ir a mais sítios, e os transportes com horários alargados.
Pondera em tirar o mestrado. E admite que «adorava participar
no Big Brother, nem que fossem três dias...!»
Por último, confessa um sonho mais pessoal: «Gostava
de ter relações sexuais. Porque nunca tive». João
tem uma namorada, Ana Cristina, que conheceu no Centro e se encontra
no hospital, a ser operada. Estão juntos há cerca de
um ano. Ela não fala. «Só mete a língua
de fora quando quer dizer não». O que é mais difícil
para uma pessoa deficiente? «Sentir-se rejeitada. Não
ser aceite como tal». E o que é, afinal, a normalidade?
«A normalidade está em cada indivíduo, na subjectividade
de cada um de nós»
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este artigo foi objecto de um trabalho na cadeira de Pedagogia dos
Media, do curso de comunicação Social, na Universidade
de Faro, e a presença da jornalista solicitada para apresentação
e debate. |
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João
Pombeiro no percurso habitual entre a sua casa, em Oeiras, e a Universidade
Nova de Lisboa. «Corrida» de 10 min. até ao comboio,
depois autocarro, por fim universidade
Na
casa-de-banho da faculdade
Com
a família, no seu quarto, entre os quadros que pintou, a internet
e as máscaras, que o fascinam
Em
bebé
A
pintar, evidenciando a veia artística |
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