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VIDAS Nº 1494 16 Junho 2001
Andar
nas nuvens
A
mil pés de altitude, a adrenalina sente-se sobretudo no estômago.
Melhor, só a total sensação de liberdade.
Texto
de Katya Delimbeuf
A
três metros sobre a areia da praia, com as ondas do mar mesmo debaixo
dos pés ou nas alturas, a furar as nuvens, a sensação é sempre de
total liberdade. Num ultraleve, à deriva ou a navegar nas ondas do céu,
ao sabor do vento, aprende-se a dominar receios ao mesmo tempo que se
vive a ilusão de abarcar o mundo. Uma experiência única. Vivida ao
longo da semana passada por 70 pilotos, unidos pelo espírito de
aventura e pela vontade de enfrentar desafios, no caso a primeira Volta
a Portugal em Ultraleve.
Todos os dias, pela manhã,
com as cerca de 40 aeronaves já alinhadas na pista, os pilotos repetem
os mesmos gestos, como se cumprissem um ritual. Vestem primeiro o
cachecol que lhes protege o pescoço, depois o colete, a seguir o blusão,
um corta-vento que apertam até ao queixo. Os mais friorentos vestem
dois, quando não optam por uma combinação, estilo fato para a neve,
que os cobre dos pés à cabeça. É que, mesmo nos dias mais quentes, lá
em cima a temperatura baixa cerca de dez graus e a 120 quilómetros por
hora o vento faz frio, quando bate no corpo.
Depois de verificado o nível
nos depósitos da gasolina, é hora de os pilotos tratarem dos seus
passageiros. Vestem-nos e abotoam-nos com o mesmo cuidado com que se
equiparam, sentam-nos no banco de trás e apertam-lhes o cinto. Põem-lhe
os auscultadores e o microfone, através dos quais vão comunicar entre
si e, por fim, o capacete. Ajustam-lhes a fivela.
A asa delta motorizada (pendular), um dos
dois tipos de ultraleve que encontramos na volta, a par dos mini-aviões
de cabina fechada (também chamados «três eixos»), dá para um ou
dois passageiros. O pendura vai atrás, uma perna para cada lado. No
meio, encaixa o assento do piloto, que tem que esticar as pernas para
alcançar os dois pedais: o da esquerda serve para travar, o da direita
para acelerar. A direcção, essa, é dada pelas barras em forma de triângulo
ligadas às asas, que o piloto move para a esquerda e para a direita,
para cima ou para baixo.
Ligações testadas entre
piloto e passageiro e a frequência de rádio aberta para as comunicações
entre aeronaves, chega a hora de partir. Liga-se o motor de arranque e a
aeronave dirige-se para a pista, pronta a descolar. Em boa verdade,
aquilo que mais parece um triciclo com motor, barras e umas asas, não
inspira, à primeira vista, grande segurança. O cinto serve de pálido
reconforto perante um assento sem qualquer protecção lateral. As mãos
agarram-se instintivamente aos ombros ou à cintura do «homem do leme».
Tudo pronto para a descolagem. O piloto acelera, o pendular ganha altura
e levanta.
Estamos no ar. O termómetro
teima em marcar 19 graus, mas parece que estamos no Pólo Norte. A cerca
de 1000 pés, a adrenalina, que se concentra nos abdominais contraídos,
não impede a sensação de estar nas nuvens. Há bandos de gaivotas que
se cruzam connosco. Portugal visto de cima tem outro encanto.
Para quem vê de fora, a maioria dos
participantes da volta tem um ar cruzado entre o «Mad Max» e «Os
Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras». Há uma nítida despreocupação
com tudo o que não seja a aventura, pura e dura. Usam cores vivas -
amarelo, vermelho, verde, azul -, lenços no pescoço ao estilo dos
motoqueiros, ténis coloridos e cabelos desgrenhados pelo vento. Jean
François Saffray, um padeiro francês com 57 anos - os franceses
estavam em maioria na prova - é um bom exemplo: um «look» à Rod
Stewart que faz questão de acompanhar com uma atitude de galã incorrigível,
cabelo louro oxigenado, olhos azuis, da mesma cor dos óculos escuros
espelhados. Veste-se de forma provocatória, com «T-shirts»
politicamente incorrectas, calções curtinhos e às flores que parecem
boxers, ténis de couro vermelhos. É uma personagem excêntrica,
assume-o, e vive bem com isso. É padeiro desde os 14 anos, mas o facto
de ter uma profissão mais convencional não o impediu de «provar»
quase todos os desportos radicais: foi campeão de motorizadas em França
em 1979, fez «bungie-jumping» e saltou de pára-quedas.
António Marreiros, português,
tem 76 anos. É o sénior da volta, entre todos os pilotos presentes.
Começou a voar há cinco, numa asa delta motorizada, já estava
reformado como enfermeiro da Armada. «A primeira vez, parecia
que o coração me saltava do peito. Foi uma emoção muito grande! Uma
sensação de liberdade enorme!», diz com os olhos marejados. Às
vezes voa com a mulher, Isabel, de 88 anos. A revista «BMAA» (British
Microlight Aircraft Association) considerou-os o casal voador com a
idade mais elevada no mundo inteiro. Propuseram-lhe a entrada no Livro
de Recordes do Guinness mas o «avô Marreiros» não liga a essas
coisas. Tem o perfil típico das pessoas que voam: mente aberta, amor à
camisola, gosto pelo desporto e por uma vida saudável, espírito de
liberdade. A provar que a idade é mesmo só um estado interior - e que
o passar do tempo não implica que se deixem de fazer actividades mais
arriscadas.
«Há muitas pessoas que me
dizem que isto não é para a minha idade, que eu não me devia meter em
coisas que já não são para mim. Eu respondo sempre que não tenho
idade. Tenho anos. E, enquanto me sentir bem, vou continuar a voar»,
promete António Marreiros.
Este tipo de pensamento é
comum a outros praticantes da modalidade: Manuel Marques, de 61 anos, e
Ivone Costa, com 62, imigraram para França há 38 anos. A maioria das
pessoas tem um carro, o casal Marques um avião. «Quando for
para a reforma, o que é que vou fazer? Em vez de ir para o lar, vou
para o ar...», diz com humor Manuel Marques.
Não se vêem pobres, aqui.
Nem se podiam ver, face ao preço de um ultraleve; afinal, os pendulares
mais baratos custam 2500 contos, os «três eixos» vão dos 3500 aos 27
mil. Fora o «brevet», habilitação obrigatória, para já nem falar
das despesas como o hangar para guardar o brinquedo. Por isso,
percebe-se que os participantes sejam sobretudo médicos, advogados,
pilotos, empresários. E que a média de idades ande na casa dos 40. Ao
contrário de outros desportos radicais praticados sobretudo por jovens,
aqui os «radicais» têm 50, 60, 70 anos. Às vezes mais.
À noite acampa-se perto da
sua asa. «Assim, ninguém rouba nada e não é preciso carro
para se deslocar até à localidade mais próxima», explica Jean
Carretera, 67 anos, outro dos participantes. Como cogumelos, surgem
tendas entre os ultraleves. Jean traz a sua dobrada na bolsa esquerda da
asa delta. Do lado direito, guarda o edredon e, por trás do banco, um
colchão enrolado. Há ainda espaço para um «camping-gás», indispensável
para o café da manhã, e para outros mantimentos. Quem nunca viu uma
asa delta arrisca-se a pensar que é um objecto espaçoso, com muita
arrumação...
O dia termina com convívio obrigatório,
música e muita animação. Apesar do cansaço, as noites são longas -
e quentes. Mas as brincadeiras para as preencher não faltam. Um grupo
sobe para cima de uns bidons encostados à parede do hangar - as
mulheres, em minoria, nem sempre se oferecem como voluntárias, mas alguém
se encarrega de as pôr lá. Dançam ao som da música, fazem
coreografias e «macacadas», enquanto a plateia aplaude e vai
eliminando as prestações menos imaginativas. E menos ousadas. Ao fim
de alguns minutos, as peças de roupa vão rareando, mas o «strip» não
ultrapassa os limites da brincadeira. Como diz Miguel Santana,
organizador da prova, «as mentes são como os pára-quedas: só
funcionam quando abertas...» |
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As
máquinas vistas do céu
O
«strip» em fim de noite
Jean
François Saffray e António Marreiros
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