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VIDAS Nº 1505 1 Setembro 2001
As
mulheres da loja
A
maçonaria feminina ainda suscita interrogações a muita gente. Descubra
o que fazem 150 mulheres de avental
Texto
de Katya Delimbeuf
Todas
as semanas, algures numa loja de nome Lusitânia, Invicta ou Claridade, várias
dezenas de mulheres reúnem-se, trajadas a rigor. Passam horas em exercícios
e conversas, os movimentos e passos cifrados pela magia de um ritual
secular. Há 14 anos que repetem os mesmos gestos, num segredo que dá
pelo nome de maçonaria feminina. Apesar de desconhecida da maioria, a
associação existe desde 1983, mas só em 1997 se autonomizou. Hoje, são
já 150 as mulheres da Grande Loja Feminina de Portugal (GLFP).
Numa iniciativa inédita, cinco maçonas falaram com o EXPRESSO, dando o
nome e a cara em prol da informação e do rigor. Falámos com a primeira
grã-mestra, e com a actual; com a fundadora da primeira loja portuguesa e
com mulheres que estão na maçonaria desde o princípio. Maria Belo, de
63 anos, psicanalista; Manuela Cruzeiro, de 67, professora universitária;
Júlia Maranha, de 61, professora de Matemática; Helena Sanches Osório,
de 58, jornalista; e Maria Helena Carvalho dos Santos, de 64,
historiadora.
Querem contribuir para que a maçonaria deixe de ser vista como «uma
coisa esquisita» e garantem que não comem criancinhas ao
pequeno-almoço. Se não sabia que havia maçonaria feminina em Portugal,
descubra o que fazem 150 mulheres de avental. Uma pista: não trocam
receitas de cozinha...
O que se faz numa reunião da maçonaria
feminina? Como são as lojas, por dentro e por fora? Porque é que há
tanto secretismo em torno da instituição? Será que tem algo a esconder?
Porque é que as pessoas aderem à maçonaria? O que procuram? Existem
ligações ao poder? Quais as diferenças em relação à maçonaria
regular? Algumas das perguntas que povoam o nosso imaginário encontram
resposta nos testemunhos prestados por estas mulheres.
Diferenças quanto à maçonaria
masculina não as há. «Simplesmente, como não nos deixavam
entrar, decidimos fazer uma nossa», revela Helena Sanches Osório,
ex-directora dos jornais «O Independente» e «A Capital», na maçonaria
feminina desde 1983. Ainda hoje a maçonaria regular não reconhece
oficialmente as mulheres como seus pares.
As reuniões decorrem todas as
semanas ou de duas em duas. Tenta-se ir ao encontro do tempo livre das
pessoas - afinal, as mulheres maçonas também são mães e esposas, com
empregos como todas as outras pessoas. Por isso, reúnem-se sobretudo à
noite e aos fins-de-semana. Duração? Qualquer coisa entre as duas e as
quatro horas. Afinal, há sempre muito para falar.
Com uma estrutura extremamente formal, própria
da ritualística maçónica, as reuniões dividem-se em três partes: os
trabalhos filosóficos, os trabalhos práticos e, por fim, os rituais. O
que se faz em cada um desses momentos? «Os trabalhos filosóficos
servem para pensar problemas da sociedade e ajudar a encontrar soluções»,
explica Helena Sanches Osório. Já um trabalho prático tentaria
encontrar uma solução para a reforma da educação ou da segurança
social. É assim que a associação acredita contribuir para a sociedade,
nem que seja através dos círculos de amigos e familiares com quem as maçonas
contactam posteriormente, alargando as discussões.
Seguem-se os rituais, aqueles
em que muitos dariam tudo para ser uma mosquinha colada à parede do
templo. Frequentemente acompanhados de música - a Flauta Mágica,
de Mozart, é uma escolha habitual por ser considerada uma obra maçónica,
assim como o seu autor - as maçonas entram, trajando a respectiva
indumentária. Vestem segundo o grau de cada uma. As aprendizas - o grau
mais baixo - envergam aventais brancos, com a pala virada para cima; as
companheiras (2º grau) trazem a pala virada para baixo; e as mestras (3º
grau) aventais debruados a azul. Outros adereços, como espadas,
simbolizam a defesa do segredo e das «irmãs».
«Quem vê de fora, não
reconhece as lojas. São casas iguais às outras. Só que, de vez em
quando, entram lá muitas mulheres»,
explica Helena. No interior, recria-se o espaço do templo: uma sala
rectangular com duas colunas, chão de xadrez preto e branco. Nas paredes,
há símbolos maçónicos (o triângulo, o sol, a lua, as estrelas, o olho
da sabedoria), mas nada que desvie a atenção do essencial.
A grã-mestra preside, sentada a uma mesa
ligeiramente elevada, numa das extremidades da sala. A toda a volta estão
as irmãs, também sentadas, cada uma com a sua função - a secretária
ou a «guardiã do templo», atenta à porta e que acolhe quem chega. «Não
há infiltrações possíveis», garantem, porque o toque à porta é
especial, com uma combinação identificativa. Há ainda passos específicos
para quem chega atrasado, outros para quem chega a horas. Por isso é que
as aprendizas, quando entram na maçonaria, passam um ano apenas a
observar, sem dizer nada. Como num voto de silêncio.
Fala-se à vez,
democraticamente, de pé e à ordem (com o braço dobrado por baixo do
queixo). Isto para incentivar a contenção no discurso, já que a posição
obriga a um esforço físico não suportável por mais de uns minutos. É
a função igualitária do rito, que pretende demonstrar que todas as irmãs
são iguais.
Corria o ano de 1983 quando se
fundou a primeira loja feminina em Portugal. Helena Sanches Osório lembra
com carinho essa primeira loja, «uma antiga garagem com uma
gruta por trás», que parecia feita à medida dos rituais iniciáticos
da associação. Chamava-se Unidade e Mátria. Constituíam-na 11
portuguesas e nove francesas - essenciais para a criação de uma maçonaria
feminina autónoma em Portugal. Nesse ano, quatro portuguesas foram
iniciadas pelas irmãs francesas. Hoje, da fundação, restam duas
pessoas: Maria Belo e Manuela Cruzeiro. «Para poder fundar uma
loja, é necessário ter uma patente e, para isso, são precisas sete
mestras. Apresenta-se o projecto, explicam-se os motivos que justificam a
criação da loja, o nome e o sítio, e depois a candidatura é aprovada
ou não», explica Maria Belo.
Hoje, a Maçonaria Feminina conta com seis
lojas, espalhadas pelo país: Lusitânia, África (anexas à loja inicial)
e As Sete Irmãs, em Lisboa; Invicta, no Porto; e Claridade, na Figueira
da Foz. Esta cidade, de fortes tradições maçónicas - terra natal de
Manuel Fernandes Tomás, conhecido maçon - é também a de Júlia
Maranha, a actual grã-mestra da maçonaria feminina, eleita em Setembro
de 2000. O início e o fim do mandato de uma grã-mestra coincide com o
ano escolar, ou com os solstícios e equinócios.
O mandato da primeira durou de
1997 a 2000 mas, no fim de cada ano, há um congresso no qual a grã-mestra
pode ou não ser reconduzida, juntamente com as 15 mestras eleitas ao
mesmo tempo. É preciso é que continue a ter o aval da maioria das irmãs.
Como na política, há campanhas no período que antecede a eleição, que
se realiza democraticamente, pelo voto - não fosse o lema «Liberdade,
Igualdade, Fraternidade» um princípio-chave na maçonaria.
Júlia Maranha, a nova grã-mestra,
nunca deu entrevistas nessa qualidade (ao contrário da primeira), porque
entende que a associação ainda se encontra em formação e tem receio de
atrair pessoas com as motivações erradas. O que é que isto significa?
Significa que uma das ideias difundidas na opinião pública é a de que a
maçonaria está ligada a «lobbies» e poder.
Todas as maçonas negam a veracidade desta
afirmação. Maria Helena Carvalho dos Santos diz mesmo que «a
maçonaria não tem perfil de poder, mas antes de antipoder», porque
se trata de uma «elite que actua nos bastidores». Helena
Sanches Osório afirma peremptoriamente que «a ideia da maçonaria
ser muito poderosa é errada». Mas tanto' Manuela Cruzeiro como Júlia
Maranha, as duas grã-mestras, afirmam que «há pessoas que
tentam entrar porque pensam que é uma via para o poder. E nem sempre isso
se detecta.Nesses casos, é passível a noutros países, mas em menos de um por cento dos casos». Opinião
diferente tem Helena Sanches Osório. «As pessoas que me pedem
para entrar fazem-no porque estão desencantadas com o mundo e a falta de
alternativas cívicas e espirituais», assegura.
«Sonho com o dia
emque se poderá pôr a morada das lojas da maçonaria na lista telefónica
e tabuletas à porta, como se faz em França, Espanha, Itália, Bélgica,
Luxemburgo ou Inglaterra. Aliás, peço sempre para me tirarem uma
fotografia ao pé delas quando vejo uma.»
A confissão é de Manuela Cruzeiro, a primeira grã-mestra da Grande Loja
Feminina de Portugal, que exerceu de 29 de Março de 1997 a Setembro de
2000. Encontramo-la no Instituto Português da Juventude (IPJ), a
assessorar a presidência. Também ela professora universitária, Manuela
Cruzeiro acredita que «o secretismo da maçonaria vai
desaparecer a pouco e pouco, à medida que as pessoas vão sendo menos
ignorantes». Helena Sanches Osório tem opinião diferente: «Todo
este ambiente secreto dá à maçonaria uma força que ela não tem. Só
que ninguém acredita quando se diz que não há segredos nem ligações
ao poder. O secretismo só existe por causa do período da ditadura, e
porque os maçons em todo o mundo fazem gala nisso.» No entanto, são
muitos os que continuam a não se assumir publicamente como maçons. «Foram
muitos anos de represálias governamentais», justifica Manuela
Cruzeiro.
A maçonaria não se livra, no
entanto, da ideia generalizada de que está ligada ao poder, sobretudo ao
PS. O facto de conhecidas figuras governamentais e socialistas, como Mário
e João Soares, se terem assumido publicamente como maçons também não
contribuiu para dissipar esta noção. No governo e na maçonaria feminina
está Leonor Coutinho, secretária de Estado da Habitação, que não quis
falar connosco. Uma alta representante da associação secreta
confirmou-nos, no entanto, que esta se encontra de funções suspensas por
estar no governo e não ser suposto acumularem-se os dois cargos.
Na verdade, são várias as maçonas
militantes no PS ou que já estiveram no poder por intermédio deste. Das
quatro fundadoras, duas eram filiadas: Maria Belo desde 1979, tendo sido
eurodeputada durante seis anos e meio; Manuela Cruzeiro é militante desde
Outubro de 1974 e foi presidente da junta de freguesia de Santiago, onde
mora. Maria Helena Carvalho dos Santos está no partido desde a fundação,
e foi secretária de Estado da Educação em 1984. E Júlia Maranha também
é filiada no PS desde 1974.
À aparente concentração de
socialistas na maçonaria feminina, que muitas justificam com o argumento
da tradição histórica, Maria Helena garante que a associação,
enquanto microcosmos da sociedade, tem pessoas de todos os quadrantes políticos.
«Até porque - explica Manuela Cruzeiro - não se
fazem perguntas sobre partido ereligião.» Colocam-se, isso sim, «questões
de ordem moral, sobre a violência, o aborto, o suicídio... Muitas das
irmãs não sabiam sequer que eu era socialista quando me elegeram»,
diz a primeira grã-mestra.
Quais os requisitos para
entrar na maçonaria feminina? Há um perfil-tipo das mulheres maçonas?
É preciso ter um padrinho - neste caso, uma madrinha? «Requisitos
para entrar são apenas humanos», garante a jornalista Helena Sanches
Osório, iniciada por uma madrinha francesa. Maria Helena Carvalho dos
Santos acrescenta que «devem ser pessoas livres e de bons
costumes, maiores de 18 anos e com autonomia financeira» para poderem
pagar as quotas mensais, que existem na maçonaria como em qualquer outra
associação. Júlia Maranha afirma que «a vontade de entrar é
o único requisito», ideia que encontra eco nas palavras da anterior
grã-mestra, que considera que, querendo, «é a própria pessoa
que vai lá dar».
Contudo, para entrar é
preciso conhecer alguém. A não ser que se seja convidado, como aconteceu
às fundadoras da primeira loja. São as mestras as incumbidas de
encontrar pessoas com o perfil adequado para aderir à maçonaria. Mas «a
forma de recrutamento, a nível intelectual, dependendo do grau de
cultura, leva à criação de uma elite, muito do meio universitário, com
um claro predomínio de uma classe social e intelectual», garante
Helena Sanches Osório. Maria Helena Carvalho dos Santos concorda que
existe o predomínio de uma classe cultural. «Não há
analfabetos na maçonaria. Mas esta também não tem receio em afirmar-se
como uma elite, cultural e moral», afirma. Contrariamente, Júlia
Maranha e Manuela Cruzeiro dizem que «há todo o tipo de classes
sociais na maçonaria». Assim como Maria Belo, que assegura que «há
pessoas de extracto muito baixo, mas com qualidade maçónica e humana».
Quanto à faixa etária dominante, «é sobretudo dos 40 para
cima», diz Júlia Maranha, «mas já há gente jovem».
Afinal, também o tecido maçónico precisa de renovação.
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A primeira
grã-mestra, Manuela
Cruzeiro
Helena Sanches Osório
Avental de uma mestra, com as
iniciais MB (Maq Benah, a morte do arquitecto, em grego)
A historiadora Maria Helena Carvalho
dos Santos
A psicanalista Maria Belo, fundadora
da primeira loja portuguesa da maçonaria feminina, Unidade e Mátria,
em 1983
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