ÚNICA N. 1744 - 01 Abril 2006

O sentido da vida

Marta e Rodrigo partiram para uma viagem sem regresso marcado; Carlos sacrificou-se em empregos vários para arranjar dinheiro para a viagem seguinte; Tito da Costa deixou para trás mulher e filhos em nome do sonho de ser realizador em Hollywood; Sara passou o último Natal numa cubata na Etiópia para fugir ao espírito consumista próprio da época. Histórias de portugueses que optaram por dar novo rumo às suas vidas, escapando-se à chamada sociedade de consumo e ao percurso tradicional «universidade-emprego-casamento-filhos»

Reportagem de Katya Delimbeuf

Marta Marques e Rodrigo Ferreira «embarcaram», em Outubro do ano passado, numa viagem para a América Central sem regresso marcado. «Há cerca de cinco anos, começámos a pensar deixar a vidinha do costume», explica Marta, 29 anos, ex-delegada comercial de uma loja de artigos de surf onde trabalhava há quase dez anos, e de onde se despediu. «O meu trabalho começou a exigir mais de mim e o tempo livre não era o suficiente». Rodrigo, 40 anos, já tinha optado por uma vida mais tranquila - «andava a pintar casas com um amigo». O casal queria deixar a rotina de alguns anos e fazer algo que os realizasse. «Há um ano, decidimos sair, por uns tempos, da sociedade consumista, onde o vizinho tem de ter sempre o melhor carro, o melhor telemóvel, o melhor plasma, a melhor casa...», continuam. Deixaram tudo para trás, «desde carros a casa». No entanto, garantem, isso pouco importa: «Os bens materiais são das coisas mais supérfluas». «O mais importante é a família e essa é a única razão pela qual temos a certeza que voltamos», acrescentam.

O casal é apenas um retrato de uma tendência crescente, de uma geração que quer experimentar outras vivências, novos horizontes, outras mentalidades. E que também é portuguesa. Neste momento, Marta e Rodrigo andam entre a Costa Rica e o Panamá, ao sabor da corrente, a usufruir o «tempo, coisa que a nossa sociedade cada vez menos tem». Têm vivido «experiências únicas»: «Ver tartarugas a desovar, sentir o cheiro do enxofre de vulcões activos, aprender a cozinhar com gente de todo o mundo, ver e viver como esta gente, modestamente mas felizes». O casal tem encontrado muitos viajantes como eles, «a maioria por períodos de três a seis meses». Há também «muita gente que tira licenças sem vencimento ou que estipulam, em comum acordo com as suas entidades patronais, um tempo maior de férias e partem por x tempo, com a garantia de que o lugar estará lá quando regressarem».

Não acreditam «que seja uma tendência geracional, porque sempre existiram pessoas a viajar e a ter uma vida alternativa». Marta e Rodrigo têm noção de que, quando regressarem, «os primeiros tempos não vão ser pêra doce». E tomam como exemplo um amigo, Miguel Trindade, que há cinco anos partiu para a América Central e, «das vezes que visitou Portugal, viu como é difícil sair e voltar a entrar no ‘sistema’». De qualquer forma, não parece que Miguel, surfista da Ericeira, tenha grande vontade de voltar: nas palavras de outro amigo, «‘virou’ neo-hippie, vive do artesanato, viaja numa carrinha Volkswagen ‘pão-de-forma’ com a namorada argentina e está agora na Colômbia, a caminho de Ushuaia...»

30 anos, 52 países
O currículo de Carlos Carneiro é muito diferente do da maioria das pessoas. Após a licenciatura em Comunicação Social, a experiência na área inclui um estágio no jornal «O Independente», um curso de fotojornalismo no Cenjor, outro de «Jornalismo freelancer» e outro de «Escrita de viagens», estes dois tirados em Inglaterra. O resto são seis anos de viagens. Pelo meio, trabalhou quatro meses numa fábrica «kosher» de preparação de carne, e dois anos no Departamento de Recursos Humanos de uma mega obra hidro-eléctrica, numa montanha gelada da Islândia. Estas foram as concessões que fez em nome da sua paixão, viajar. Etiquetou centenas de embalagens de salsichas, mas adorou a experiência. «Porque são histórias que não se vivem no escritório», explica. «O porquê de agarrar com unhas e dentes estas desprezíveis, desconfortáveis e quase vergonhosas oportunidades segue o vício e espírito das viagens, a procura de filmes, personagens e vidas que sempre me preencheram o imaginário», remata.

A sua compensação é que, aos 30 anos, conhece 52 países. Não construiu uma carreira, mas não está preocupado com isso. Depois de dois anos a «congelar» numa montanha da Islândia, preocupa-se agora em planear a sua «última viagem em grande»: «ir até ao Japão por terra». Tem particular interesse em conhecer «os ‘ões’ todos» em caminho: o Uzbequistão, o Tajiquistão, o Quirguistão, o Paquistão, o Afeganistão... Não tem medo, garante, até porque, da sua experiência, «os países com pior fama são os mais puros, onde as pessoas são mais abertas». Foi o que aconteceu na Colômbia, onde passou quatro meses, na viagem de um ano que fez pela América Latina. Percorreu o México, a Guatemala, as Honduras, El Salvador, a Nicarágua, a Costa Rica, o Panamá, o Equador, o Peru, a Bolívia e o Brasil. Gastou 1400 contos - «o que não é muito, para um ano de viagem», garante. «Dormíamos sempre nos sítios mais baratos (‘youth hostels’ referenciados nos guias «Lonely Planet»), comíamos sempre nos mercados». Com um dinheiro que tinha guardado, quatro meses de trabalho na fábrica «kosher» e a mota que vendeu, juntou para esse plano antigo que era ir do México à Terra do Fogo. Para trás ficavam outras incursões, mais modestas: quatro meses no Sudeste Asiático, entre Cambodja, Laos, Tailândia, Malásia e Singapura; dois meses no Médio Oriente, por Israel, Egipto e Jordânia; três meses na Índia e no Nepal; já para não falar nos «inter-rails» da adolescência.

«O meu pai disse-me sempre: primeiro casa-te contigo (até aos 35) e depois estarás preparado para casar com uma mulher». Carlos decidiu cumprir à risca o conselho. Desde cedo que ele e as irmãs foram incentivados a viajar. Aos 16 anos, integrou um AFS, programa de intercâmbio de um ano em que foi viver com uma família de outro país - no caso, o Canadá. Ao contrário do que imaginava, não sentiu falta de casa - pelo menos, como julgava que iria sentir. Depois, começou com os «inter-rails» na Europa. Quando percebeu que com o mesmo dinheiro poderia passar três meses na Índia, não hesitou. «De início, a escolha dos destinos obedeceu puramente a critérios económicos. Ia para onde o dinheiro permitia», admite. A seguir àquela viagem de um ano, voltou a Portugal, mas a crise tinha-se instalado - estávamos em 2003. «Então, quando a oportunidade da Islândia surgiu, não pensei duas vezes».

Como ele, foram 1200 trabalhar para a maior obra de engenharia da Islândia - uma barragem e 50 km de túneis -, atraídos pela remuneração (o salário mínimo era de 1600 euros), comida, dormida e roupa lavada. Apesar do frio extremo e das difíceis condições (no pico do Inverno, há apenas duas horas de sol), trabalhou dois anos com a cabeça na próxima viagem. «Eu que nunca tinha desejado vida de escritório, trabalhei 12 horas por dia, seis dias por semana», conta. Em Portugal há quatro meses, garante que já gastou mais neste período no nosso país que em oito meses de viagem. Acha absurdo o custo de vida cá. Sabe que um dia vai assentar. «Enquanto viajamos, vemos formas tão distintas de viver, gente sorridente com tão pouco, que o facto de não ter construído carreira não me assusta». Considera que há, cada vez mais, a tendência para viajar nas gerações dos vintes e dos trintas. «Nem que seja como escape».

Atrás da câmara
Já Tito da Costa teve uma motivação diferente para mudar de vida: largou país, mulher e filhos para ir atrás do seu sonho de ser realizador. Atravessou o Atlântico até Hollywood, há três anos, onde terminou um curso de cinema e escreveu e realizou três curtas-metragens. Está neste momento a desenvolver a sua primeira «longa», que deverá rodar este Verão. Foi-se embora «por descontentamento» e por «ver tanta coisa sem pés nem cabeça andarem para a frente». Deixou para trás mulher, dois filhos, pais, uma cobra, um cão «e um país que, apesar de tudo, ainda amo muito» «Surfista de corpo e alma» desde os 12 anos, Tito da Costa, hoje com 35, rodou o seu primeiro filme de surf aos 15. Aos 18, foi estudar para Inglaterra, onde cursou Comércio e Gestão e teve o seu primeiro contacto com computadores.

Em 1991, sagrou-se campeão nacional de longboard, número 6 no «ranking» europeu. O surf competia apenas com outra paixão, a da noite, que o levou a abrir um bar no Bairro Alto, e depois um restaurante, na Costa da Caparica. «O negócio dos bares obrigou-me a desenvolver as minhas capacidades gráficas para desenhar convites e ‘flyers’ em programas como Photoshop e Illustrator», conta. «Assim fui descobrindo a minha verdadeira vocação. O meu Mac começou a ser-me tão fiel quanto a minha prancha, e em 1996 decidi fazer um curso de Design Gráfico na FLAG, em Lisboa, o que mudaria o rumo da minha vida para sempre».
Ainda durante a sua estadia em Londres, fez mais seis cursos na área de programação aplicada à realização. De regresso a Lisboa, deu aulas de multimédia na Escola Profissional de Comunicação e Imagem, e fez o primeiro filme de surf para televisão, a convite de Henrique Balsemão. Foi câmara, realizador e editor de uma «surf trip» no México, mas, considera: «os meus métodos de trabalho não eram bem aceites no mundo profissional português».

Produziu várias coberturas de eventos nacionais e internacionais de surf, concertos, foi câmara aquático da Disney Kids, fez os vídeos de apresentação do Campeonato do Mundo Indoor... mas nunca se sentiu realizado. «Então, vendi tudo e fui para terras do Tio Sam concretizar o sonho da minha vida: fazer um curso de cinema e realizar uma curta-metragem». Três «curtas» e uma «longa» depois, pode considerar-se que alcançou o sonho. Mas apesar da família estar em Portugal, o seu regresso ao país não é de todo uma certeza. «Vive-se em Portugal um período de compadrio e nepotismo», afirma. «As coisas têm ido de mal a pior e estão a chegar a um ponto absurdo».

Há um ano, ele, que já viveu a dois quarteirões do Kodak Theatre, em Hollywood, mudou-se para Playa del Rey, a 30/45 minutos. «Estou na praia, onde posso fazer o meu surf». Normalmente acorda cedo, verifica as condições do mar e vai «dar uma surfada». Quando regressa, fala com a mulher e os filhos via «webcam», antes de se pôr ao trabalho. «De cabeça fresca, trabalho ‘directo’ até ao fim do dia, o que normalmente acontece em casa. Por vezes tenho de ir a estúdios ou a reuniões. Quando estou em filmagens, às vezes não ponho os pés em casa durante dias...» Vale a pena toda esta mudança? «Quando estou em filmagens e um ‘shot’ sai tal e qual como eu o imaginei, vêm-me sempre lágrimas aos olhos. Há um elemento divino nessa experiência, que vale todo e qualquer sacrifício».
Há muito que Sara Battesti, 33 anos, está habituada a fazer «férias diferentes». «Férias» nem será a palavra mais indicada. O melhor será falar em «experiências» - «experiências que nos permitem rever a nossa vida no quotidiano, repensar impulsos consumistas ou preconceitos associados a esta nova sociedade egoísta. Não são apenas férias, são verdadeiras formações de vida», elucida.

Na verdade, a maioria das pessoas não escolheria, como ela, destinos de «férias» como a Guiné-Conacri, o Mali, o Djibuti, ou a Etiópia. Passar o Natal numa cubata na Etiópia foi a última vivência desta directora executiva de uma agência de publicidade, que foi 15 dias para as montanhas daquele país, a 3800 metros de altitude, com três amigos. «Queríamos passar um Natal diferente», conta. A ideia nasceu do facto de uma sua amiga de infância ser professora no Djibuti, um pequeno país ao lado da Etiópia. Durante o «trekking» que fizeram nas montanhas, dormiram em cubatas e contactaram sobejamente com a população local, a quem compravam a comida e a água quente para o banho, que tomavam todos os dias (cada tina de água quente custava cerca de 5 cêntimos). A Sara, o Natal na cubata trouxe «paz e tranquilidade». E uma conclusão: «Nós somos uns sortudos, só temos de ligar o interruptor». «Vivemos numa sociedade projectada para o futuro, em que nunca se vive o presente, o momento...», diz. «Nunca estamos satisfeitos com aquilo que temos. E não há tempo para interiorizar nada. É tudo feito a pensar na próxima conquista, sem saborear esta».

É isso também que Sara procura - e encontra - nestas viagens: um outro esquema mental, um outro modelo cultural. «Ali não há preconceitos ou julgamentos», assegura. «Não estão viciados, como nós. Estamos tão habituados a ter tudo e a considerar tudo tão normal que passamos a não dar valor a nada, a não saber distinguir o luxo do necessário. Passamos a ser ‘blazé’ em relação a tudo... numa sociedade de consumo perdemos os parâmetros do que é razoável. Uma casa de duas assoalhadas é considerada pequena, uma casa sem garagem é impensável... Ora, quando estamos num país em que se anda 40 km a pé, em que para se ter leite é preciso ir tirá-lo à cabra ou à vaca, em que se eles não forem vender um animal não têm que comer, reaprendemos o prazer da criança quando bebe um sumo novo».
A noção de «férias» de Sara é «o oposto da estadia num ‘resort’ de luxo, onde se tem tudo feito, e quando se volta entra-se em depressão. A ideia é voltar dando outro valor à tua vida». Noutra viagem, à Guiné, lembra-se de, na alturas da partida, «ter chorado como se tivesse lá deixado um familiar. Apenas porque me senti muito bem integrada naqueles 15 dias...» A maior parte das pessoas com quem convive acha «uma loucura fazer férias deste tipo». «A primeira pergunta que me fazem é: ‘Mas isso não é perigoso?’ A segunda: ‘Tens a certeza que vais ter estrutura psicológica para aguentar?’ As pessoas não sabem lidar com a diferença» - considera -, «são incapazes de gerir o desconhecido».

Viajar, para ela, surgiu como «uma necessidade de amadurecer aspectos pessoais», de descoberta. «Quanto mais fechados, menos desenvolvemos capacidades. Não nos questionamos, não mudamos o que é mau, não melhoramos o que é bom». Aliás, Sara acha que, apesar de estarmos rodeados de meios de comunicação, «vivemos muito isolados». Filha de um inglês «motard», que sempre viajou, e de uma francesa designer de moda, acredita que aquilo que distingue a actual geração em relação às que viajavam no passado é «a capacidade de deslocação para sítios muito mais remotos». E o facto das pessoas terem mais a perder, ao partir. «Antes havia mais pobreza, menos liberdade, mais razões para sair».
Poderíamos falar de mais casos de pessoas que decidiram levar outras vidas. Jorge Vassalo e Francisco Elyseu são dois deles. Mas independentemente dos nomes, interessa o que têm em comum: a busca de novos horizontes. No limite, de um sentido para a vida.

 

     

 

Marta e Rodrigo:
viagem só de ida

Carlos: a vida é uma viagem

Tito: o sonho de ser realizador

Sara: viajar para amadurecer

Marta Marques e Rodrigo Ferreira rumaram à América Central como primeiro destino. Não sabem quando regressam. Neste momento, andam entre a Costa Rica e o Panamá, a usufruir o tempo, a cozinhar, ou a sentir o enxofre de vulcões activos. Na zona de Ostional

Com uma iguana

Em Bocas del Toro

Na Playa Junquilla

Assistindo à desova
das tartarugas

Fábrica de salsichas ‘kosher’ onde Carlos trabalhou, em Inglaterra, para poder viajar

No topo da montanha de Sneiffel, na Islândia, no megaprojecto hidro-eléctrico onde esteve dois anos, também a poupar para viajar

Em viagem: na Colômbia, com a tribo Kogis, a caminho da Cidade Perdida

Na China, e em Petra,
na Jordânia (à direita)

Depois de três curtas-metragens, Tito Costa vai rodar a sua primeira ‘longa’. Em Portugal ficaram mulher e dois filhos. «Vive-se no nosso país um período de compadrio e nepotismo»

Tito da Costa partiu há três anos para Hollywood em busca do sonho de ser realizador

Igreja em Adis Abeba, capital da Etiópia

Sara Battesti e uma amiga na Etiópia, entre pastores, na cordilheira de Mont Balet, onde fizeram um percurso de 15 dias a dormir em cubatas (em baixo)