ÚNICA Nº. 1795 - 24 Março 2007

Filhos da Europa

São portugueses e vivem em Bruxelas, onde trabalham nas instituições europeias. Hoje, poucos pensam no regresso, a não ser para uma reforma ao sol. Encontro com várias gerações lusas da «família Europa».


Textos de Katya Delimbeuf
Fotografias de Tiago Miranda
Enviados a Bruxelas



Quando se pergunta a Catarina, 4 anos e meio, qual é o seu país, ela enumera: «Portugal, Bélgica, a Alemanha é do papá...» Filha de Filipa Pimentel, 34 anos, os sete últimos passados em Bruxelas, Catarina é um exemplo de «produção europeia» - a mãe é portuguesa, o pai alemão, e ela fala ambas as línguas dos pais e o francês, que aprende na escola.

Catarina e os pais - que, trabalhando para organismos da União Europeia, se conheceram em Bruxelas - vivem numa casa bonita de quatro andares (com 400 m2 e jardim), no bairro de Leiken, onde nos recebe com pastéis de nata acabados de fazer. Filipa trabalha no Comité Económico e Social Europeu (CESE), onde é assistente dos membros da comissão nas áreas de recursos naturais e desenvolvimento sustentável. Stefan, o marido, é «desk-office» e responsável pela política internacional de biodiversidade na Comissão Europeia. Alemão nascido na Bélgica, é, segundo a mulher, «o protótipo do verdadeiro europeu - trata todas as nacionalidades por ‘eles’». Foi na creche da Comissão que Catarina ficou quando a mãe voltou ao trabalho, depois de um ano e meio em casa com ela. Agora, a pequena anda na secção portuguesa da Escola Europeia, numa turma com 25 alunos. Tem aulas de Alemão a partir da 2.ª classe, depois aprende Francês, e sai do liceu a saber quatro línguas. «A Catarina tem uma sorte enorme em crescer aqui», diz Filipa, que chegou com a ideia de regressar a Portugal, mas se apaixonou pelo ambiente internacional de Bruxelas - e «pela Europa». «Acabamos por nos tornar europeístas», garante. «Aqui tocamos mesmo nesta coisa da Europa.»

Ao fim de cinco meses, já não queria voltar. Fez amigos de todas as nacionalidades. Os mais próximos são uma sueca, uma maltesa, uma canadiana e uma espanhola. «É outro mundo. Com a mesma facilidade com que se diz ‘vou ao Porto’, aqui diz-se ‘vou a Amesterdão, vou a Londres, vou a Paris’. De repente, a tua casa passa a ser muito maior». Agora, Filipa imagina-se a viver em Bruxelas até à reforma. «Afectivamente, eu estou aqui. Gosto desta qualidade de vida. E é tudo muito à mão, há imensas iniciativas culturais e para crianças...»

Além disso, «ser funcionário de um organismo da União Europeia é uma ‘gaiola dourada’», admite. «Sabemos que não vamos ter as mesmas condições em nenhum outro lugar. Oferecem muita segurança - e muito dinheiro -, para ter a certeza que têm os melhores.» Uma secretária, por exemplo, ganha cerca de três mil euros, e um administrativo entre 5.500 e seis mil euros.» A renda de uma casa de 100 m/2 no centro fica por mil euros. Por isso, nos concursos às instituições europeias, os testes são muito exigentes. Ninguém se candidata sem pelo menos seis meses de preparação...

De Portugal, Filipa tem saudades «da luz e do sol», «de ter uma pessoa que nos conheça desde sempre para conversar». Vai de férias ao país natal pelo menos três vezes por ano, não contando as alturas em que se mete no avião quando lhe dá «um acesso de saudades». Mas já não se revê no país que encontra. De vez em quando, o casal vê a RTPi. «O Stefan ri-se muito, muito... Diz que as nossas notícias são 45 minutos de futebol, 10 minutos da mulher que matou o marido ou do marido que matou a mulher e a história do porco que se afogou no rio. Depois, nenhuma notícia sobre cimeiras importantíssimas, sobre ambiente ou eventos internacionais...»

Ir e voltar
Ao contrário de Filipa, o seu conterrâneo Fernando Frutuoso de Melo (foto da página 50), também funcionário da UE em Bruxelas, já fez a experiência do regresso a Portugal. Em 1992 tirou uma licença sem vencimento e partiu com a mulher - a belga Rita Steyaert, que conhecera na Comissão - para Lisboa. trabalhar como advogado. «O período lisboeta obedeceu a dois tempos: um primeiro de euforia, ao rever os amigos de sempre; e um segundo de saudades do estilo de vida cosmopolita e internacional de Bruxelas, da qualidade de vida, da ausência de trânsito...» Fernando estava preparado para ficar. A mulher, licenciada em Línguas e doutorada em Filosofia, trabalhou entre 2002 e 2005 no Observatório Europeu contra a Droga e adorou Portugal.

Mas, ao fim dos quatro anos em Lisboa, Fernando voltou a Bruxelas por seis meses - e acabou por ficar. «Porque a Ana Sofia (a filha, de dois anos e meio) se anunciou, e é muito mais fácil educar uma criança aqui», diz. Só no simpático bairro onde vivem, Chant d’Oiseaux, dominado por moradias e espaços verdes, há cinco escolas à escolha. «E o sistema de saúde é muito melhor. Ainda há médicos que vêm a casa, recebem-nos a horas, tratam-nos bem e ainda por cima é mais barato («uma consulta custa 12 euros», diz Rita). E a oferta salarial é muito melhor». Uma qualidade de vida que se pode ver na espaçosa moradia de três andares, nos carros do casal (um jipe e um Saab descapotável), na empregada doméstica, no facto de Rita poder estar em casa.

«A vida aqui é muito mais organizada. Encontra-se casa com facilidade - escolhe-se o bairro onde se quer viver. Em qualquer lugar há estacionamento. O sistema de transportes públicos é óptimo - se o horário diz que o autocarro passa às 8h51, passa às 8h51...» Um rol de vantagens, a que se soma outra: a centralidade de Bruxelas. «Fiz três vezes a volta de cinco Estados-membros num dia», explica Fernando: «Sair de Bruxelas de manhã, estar uma hora depois em Paris a tomar o pequeno-almoço, almoçar no Luxemburgo, lanchar na Holanda e regressar a Bruxelas a tempo de jantar. Um total de 400 km, sempre em auto-estrada...»

No 7.º andar do seu gabinete no Berlaymont, o edifício-sede da Comissão que esteve embargado 15 anos e que Durão Barroso insistiu simbolicamente em reocupar, Fernando Frutuoso de Melo dirige o secretariado-geral. Está em Bruxelas há 20 anos, entrando directamente para a Comissão, no primeiro concurso público para funcionários portugueses. Trabalha das 8h às 20h, com intervalo para almoço, e chefia 54 pessoas de 15 nacionalidades, que gerem uma média de 30 perguntas diárias que o Parlamento coloca à Comissão.

A mulher, Rita, tem uma visão quase federalista da Europa: quando um país entra na União Europeia, é como se se tornasse parte da família. Como belga, sempre se habituou a ter vizinhos. E trabalhou em vários países: Alemanha, Canadá, Portugal... «Bruxelas mudou muito desde 1986», diz Fernando. «Hoje, se eu quiser, posso fazer uma vida completamente portuguesa. Posso comer só comida portuguesa, ir ao médico português, ao dentista português, ao sapateiro português, ter uma empregada portuguesa...»

Essa seria uma ideia inconcebível para Eduardo Bugalho, 59 anos, cosmopolita assumido e «gourmet» aficionado, assinante de 12 revistas mensais de culinária. A viver em Bruxelas desde 1986, aquando da adesão de Portugal à (então) CEE, trabalha no Parlamento como coordenador do secretariado dos deputados não inscritos. Decide quais os deputados que falam, quanto tempo... Casado há oito anos com a suíça Heidi Taroli, vive num bairro chique de Antuérpia. Em sua casa, as centenas de livros de culinária rivalizam apenas com a adega, que conta 1.200 garrafas de vinho - português, comprado na «Matilde». Para comprar enchidos vão à Casa Portuguesa, em Bruxelas.

Eduardo foi trabalhar para o Parlamento Europeu em Bruxelas em 1986, como secretário de Relações Internacionais do defunto Partido Revolucionário Democrático, de Ramalho Eanes. Depois de o partido ter acabado, passou por vários grupos políticos. Formado em Ciências Políticas e Relações Internacionais em Genebra, educado entre Marrocos, Portugal e a Suíça, Eduardo considera-se «português, mas cidadão do mundo». «Posso viver em qualquer sítio», afiança. Mantém casa em Lisboa, um prédio na Av. de Roma, onde vai três a quatro vezes por ano, com Heidi, que adora Portugal. Aliás, a ideia dela é «acabar a vida» no nosso país, montando um turismo rural no Alentejo ou uma «maison d’hôtes». Mas o regresso para trabalhar em Portugal está posto de parte.

O sonho do regresso
Diferente opinião tem Luís Teixeira da Costa, chefe de unidade no departamento de investigação das Pescas no Conselho, em Bruxelas há 15 anos. Casado com a austríaca Eleonora Rossoll, pai de três filhas, de 11, 15 e 18 anos, garante que não se importava nada de viver em Portugal. Acha que teria «outro tipo de qualidade de vida - luz, sol, mar, a comida, as frutas...» O problema seria arranjar um emprego à altura, porque, «por meritocracia», já chegou «onde podia». Nascido em Angola, Luís diz mesmo que «o sonho de voltar a Portugal é o que aguenta a passagem por Bruxelas, uma cidade onde é fácil viver, mas de que é difícil gostar-se».

No entanto, é o primeiro a reconhecer que «a qualidade de vida em Bruxelas é incrível». As «miúdas» - Teresa, Antónia e Francisca - frequentam a escola europeia, secção inglesa. São trilingues: falam inglês, alemão e português, apesar de «culturalmente, serem portuguesas», afiança o pai. E sentem-se mais o quê? «Um bocadinho de tudo», garante a mãe. À mesa de jantar dos Teixeira da Costa, fala-se uma babel de línguas. Entre si, as raparigas comunicam em inglês, com a mãe falam alemão, com o pai, português. E em que língua pensam? «Depende de onde estamos e com quem estamos», explicam. Até sonham em línguas diferentes, consoante o contexto e os interlocutores, explicam.

A mais velha prepara-se para ir estudar «japonês e ciência política» em Inglaterra, para ser diplomata no Japão ou trabalhar numa multinacional como a Toyota. Os pais acham que as mais novas veriam com bons olhos uma ida para Portugal - sobretudo pelo clima -, onde poderiam frequentar a escola inglesa do Porto.

Luís, que já trabalhou nas três instituições principais da UE - a Comissão, o Parlamento e o Conselho -, mantém-se informado sobre Portugal através da imprensa, que reserva na Mercearia do André (sem reserva, os jornais e revistas esgotam), e da Internet. Eleonora está em casa, para acompanhar as filhas. Especializada em Assuntos Europeus, estagiou com o marido na Comissão, mas não regressou ao trabalho depois do nascimento da primeira filha.

A um minuto da escola
Às 8h30 da manhã, noutro ponto da cidade, Maria Carvalho Dias e o marido, Cees Vis, deixam a filha, Sophia, na escola holandesa. A opção recaiu naquele estabelecimento pelo facto do pai ser holandês - e por a escola ser literalmente ao lado de casa. Um minuto mais tarde, Maria monta na sua bicicleta e Cees na sua Vespa em direcção ao emprego, na Comissão, onde estão em menos de quinze minutos.

Maria é «press-officer» e «project officer» em várias áreas, da astrofísica ao ambiente. Está em Bruxelas há 15 anos, Cees há 10. Apesar de os dois trabalharem nas instituições há uma década, são ainda «agentes temporários», com contratos de cinco anos. Esse é um factor de instabilidade que os aborrece, mas mesmo assim Maria não se vê a trabalhar em Portugal. «Aqui, os horizontes são outros. É difícil voltar para ambientes não multiculturais», diz. E, além disso, «a Sophia, sendo também holandesa, tem mais oportunidades na Bélgica».

Mas nem todos os funcionários das instâncias europeias são altos quadros. Joaquim Fernandes, 53 anos, motorista de Durão Barroso desde o primeiro dia - e, antes, de António Vitorino e de João de Deus Pinheiro -, é funcionário da Comissão há 14 anos, embora esteja em Bruxelas há 30. De fato e gravata, poderia passar por deputado. Conduz o Audi A8 blindado do «presidente», como trata Durão Barroso, e está disponível - «como qualquer funcionário da Comissão tem escrito no contrato - 24 horas por dia».

Os dias de Joaquim começam pelas seis da manhã. Normalmente, sai de casa com uma hora de antecedência se tem de fazer um percurso que demora 15 minutos. Chegar atrasado é que não pode acontecer, e está a «ficar cada vez pior com os anos», admite. Antes de se dirigir para casa de «José Manuel Barroso» vai buscar os jornais (o «Le Monde», «El País», «Herald Tribune», «Finantial Times» e o «Le Soir»), seguindo depois para o bairro do «presidente», 20 minutos ou meia hora antes, para fazer um «reconhecimento». «De um motorista do presidente da Comissão Europeia não se espera só que saiba conduzir», diz. «Muita discrição, pontualidade e flexibilidade» são características que destaca.

Como todos os imigrantes, saiu de Portugal «à procura de uma vida melhor». Quando chegou a Bruxelas, com 23 anos, já casado, não gostou da capital belga. «Do tempo, sobretudo. Senti muita falta do nosso céu azul», confessa. «Se alguém me dissesse que eu ia ficar na Bélgica 20 anos, teria respondido que não me desejassem mal. Hoje, só tenho coisas boas a dizer deste país.» Comprou casa, no centro de Bruxelas, perto do Cinquentenaire, pôs os filhos na escola belga, foi ficando. Agora, voltar para Portugal, para a sua casa de Viseu, é só uma hipótese para a reforma. E não será fácil convencer a mulher, já com netos e que tem «muito má ideia do sistema de saúde de Portugal».

Quando vai «à terra», em Agosto e no Natal, já acha que «há muita burocracia». «Aqui na Bélgica tudo é mais fácil. A parte financeira também pesa. E Bruxelas é uma cidade segura, agradável para se viver».

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1.300 portugueses

Desde que o Tratado de Roma foi assinado, no dia 25 de Março de 1957, as principais instituições europeias - Comissão, Conselho e Parlamento - instalaram-se em Bruxelas, onde funcionam também outros organismos mais pequenos, de consulta, como o Comité Económico e Social Europeu. Ao todo, a UE emprega milhares de funcionários, sendo «responsável» por centenas de casamentos e de famílias multinacionais. Actualmente, as instituições europeias empregam 1.300 portugueses (750 na Comissão, 100 no Conselho, 225 no Parlamento, entre outros). O salário e as condições sociais tornam os empregos na UE muito apetecíveis. Se em 1986, quando Portugal aderiu, os concursos tinham cerca de 1.600 candidatos, hoje concorrem 80 mil pessoas de cada vez.

 


     

 

FERNANDO Frutuoso de Melo, a mulher, Rita Steyart, e a filha, Ana Sofia, frente ao Berlaymont, sede da Comissão

 

 

JOAQUIM Fernandes é motorista de Durão Barroso e funcionário da Comissão há 14 anos

 

 

CATARINA no balouço do jardim de sua casa, com a mãe, Filipa Pimentel, e o pai, o alemão Stefan

 

 

MARIA Carvalho Dias e o marido, o holandês Cees Vis, vão para o trabalho de bicicleta e de Vespa. Ambos trabalham na Comissão

 

 

LUÍS Costa com a mulher, a austríaca Eleonora Rossoll, e as três filhas

 

 

EDUARDO Bugalho a cozinhar em casa, com a mulher, Heidi Taroli