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�NICA N� 1577 18 Janeiro 2003
A
comuna do Algarve
Os
sobreviventes da maior comunidade de sexo livre da Europa refugiaram-se
em Portugal. O seu guru, o pintor Otto M�hl, passou seis anos na pris�o
por pedofilia. Hoje, continua a viver a sua utopia
Textos
de Katya Delimbeuf
NOS
confins da serra algarvia, v�rias fam�lias estrangeiras habitam em
regime de comunidade. Uma comuna. Cinco autodenominadas �fam�lias
de artistas� vivem ali h� quatro anos, tentando �fazer da vida
uma obra de arte�. O facto pouco teria de relevante, n�o fosse a
comunidade ser liderada por quem �: Otto M�hl � um pintor de renome
internacional, mas tamb�m o fundador da Comuna de Friedrischof, na �ustria,
em 1971. Esta comunidade, onde se praticava o sexo livre, onde os
conceitos de fam�lia tradicional foram abolidos e se partilhava a
intimidade com centenas de pessoas, foi a experi�ncia do g�nero que
mais sucesso teve na sua �poca, chegando a reunir mais de 600 membros.
Al�m
de ousada e in�dita, � Comuna de Friedrischof n�o faltou pol�mica: o
conceito de casal arrasado, os aprendizados sociais questionados, o
dia-a-dia ocupado em �sexo, arte e terapia� ajudaram facilmente
� controv�rsia.
Em
1991, Otto M�hl foi condenado a oito anos de pris�o por pedofilia e
incentivo ao uso de drogas. Cumprida a pena, refugiou-se em Portugal.
Apesar de estar referenciado pelo SIS, ningu�m conseguiu provar que
mant�m o tipo de vida que sempre o caracterizou. O Expresso encontrou-o
- e � sua pequena comunidade de 26 adultos e crian�as - e conversou
com ele. Falou-se da obra art�stica, da pena de pris�o, da experi�ncia
de Friedrischof, do quotidiano no nosso pa�s. � a hist�ria de um �artista
do s�culo XXI� que acredita estar � frente de um projecto de
vanguarda, considera ter enfrentado a puni��o da sociedade do seu
tempo por ter ousado ser diferente, mas que cr�: o futuro far-lhe-�
justi�a.
O
ponto de encontro � o caf� da vila mais pr�xima. Dani�le Roussel
chega de vestido azul, curto, a pele do colo queimada pelo sol. O cabelo
castanho cai-lhe um pouco abaixo dos ombros. A depila��o �
inexistente, em estado selvagem. Os tufos que lhe selvagem. Os tufos que
lhe brotam por baixo das axilas condizem com a mentalidade da comunidade
onde vive. Essas frivolidades n�o lhe passam pela cabe�a. Na comuna do
Algarve, vive-se em contacto com a natureza, com as origens. O que
interessa � �p�r a criatividade ao servi�o da vida�.
Dani�le
tem 55 anos - apesar de n�o parecer -, nacionalidade francesa e
ocupa-se dos �Arquivos M�hl� e das rela��es com a imprensa. �, por
assim dizer, a �Rela��es P�blicas� de uma comunidade que n�o se
preocupa propriamente em publicitar a sua exist�ncia. Veio para nos
sondar. S� depois decidir� se nos leva ou n�o a Otto.
Da
cadeia para o Louvre
�Voc�s
t�m de perceber que ele esteve preso seis anos por
nada�,
diz ela, explicando a desconfian�a de M�hl em rela��o aos
jornalistas. H� 26 anos que Dani�le vive com Otto M�hl e os membros
que restaram da �grande comunidade� - a de Friedrischof -, entre os
quais o filho. �Em Friedrischof havia de tudo, desde sem-abrigo a
professores universit�rios�, explica. �Era complicado gerir
isso. No final, ganhou-se muito dinheiro, e algumas pessoas come�aram a
querer uma parte do bolo. Ent�o, inventaram acusa��es falsas sobre
Otto, que o levaram � pris�o.�
A
m� rela��o de M�hl com os �media� agudizou-se com a difus�o de um
document�rio realizado por Madonna Benjamin, intitulado Escravos no
Para�so, emitido pelo brit�nico Channel Four e, em Portugal, pelo
canal Odisseia. A comunidade acusa a realizadora de n�o ter captado o
verdadeiro esp�rito da comunidade e de montar o document�rio com
imagens inveros�meis. Dani�le, que viveu em Friedrischof de 1976 a
1991, garante: �Nunca vi ningu�m correr nu pelos campos, como
apareceu nas filmagens.�
�
semelhan�a dos 26 membros que constituem a comunidade residente em
Portugal, Dani�le � uma �ex-communarde�. Antes de Friedrischof, foi
�hippie�: integrou uma comunidade budista no Sul de Fran�a - �na
altura, era usual viver-se em comunas�, explica. �O esp�rito
revolucion�rio e libert�rio do Maio de 1968 era vivido � s�ria.�
Ainda se assume como antifascista, a favor das liberdades e do
socialismo.
Dani�le
n�o tem d�vidas: �Para Portugal � uma honra ter um pintor
internacional como Otto M�hl a viver aqui.� A �ltima exposi��o
dele, em Paris, em Setembro de 2002, na Galeria Rabouan-Moussion, foi um
sucesso. �Esteve l� muita gente, os canais de televis�o Arte e
Paris Premi�re filmaram... O Otto fez uma 'ac��o', rompeu uma
paisagem abstracta com uma faca de mato e reduziu a tela a farrapos.
Depois explicou que aquele era o estado do mundo actual.�
�
claro para ela que o nome e a obra de Otto M�hl s�o j� reconhecidos
universalmente. O Museu do Louvre exp�s quadros dele em duas mostras:
�Poss�der et D�truire - Strat�gies Sexuelles dans l'Art d'Occident�
(Possuir e Destruir - Estrat�gias Sexuais na Arte Ocidental), em 2000,
e �La Peinture comme Crime ou La Part Maudite de la Modernit� (A
Pintura como Crime ou A Parte Maldita da Modernidade), em 2002. M�hl
viu assim a sua obra ombrear com as de Picasso, Goya, Yves Klein,
Jackson Pollock, Miguel �ngelo ou Klimt.
Os
cr�ticos sentenciaram: o Louvre tinha ajudado a consagrar a obra do pol�mico
artista, que se celebrizara nos anos 60 pelas suas �ac��es materiais�
(ou �performances�), em que subst�ncias como molho de tomate,
compota, amon�aco, ovos, azeite ou leite acabavam geralmente em cima do
corpo nu de uma mulher. Essa corrente art�stica ficou conhecida por �accionismo
vienense�. �At� a �ustria, que condenou Otto por pedofilia, quer
comemorar os seus 80 anos (M�hl tem, neste momento, 77) com pompa e
circunst�ncia�, diz Dani�le. �Mas � �bvio que ele n�o tenciona
l� p�r os p�s enquanto o julgamento n�o for revisto...�
�
por um caminho de terra batida, percept�vel apenas para quem conhece,
perto da aldeia de Moncarapacho, que se tem acesso � comuna. �
esquerda, estacionada, uma carrinha Volkswagen azul. Tr�s raparigas
arrumam as bicicletas a um canto do terreiro. Dois c�es guardam a
entrada. A casa parece pequena para albergar mais de vinte pessoas. �
direita, a piscina. Duas crian�as olham-nos com surpresa, uma mulher de
cabelo curto louro, nos seus cinquentas, foge de n�s, por estar a lavar
os dentes. Dani�le guia-nos at� um terra�o no primeiro piso, que nos
dias de Ver�o serve de cen�rio a refei��es. Uma porta de rede d�
para o ateli� de Otto. Vislumbram-se telas, encostadas umas �s outras;
a um canto, um piano tem teclas pintalgadas de tinta.
Sexualidade
livre
A
voz de Otto chega-nos de uma divis�o ao lado do ateli�. Fala em
alem�o com Dani�le e mostra-se pouco agradado com a nossa presen�a.
N�o confia na imprensa, que acusa de atirar constantemente para as
parangonas as palavras �sexo�
e �pedofilia�. �Se algu�m colocar todos os meus quadros lado a
lado, ver� que s� uma pequena parte apresenta mulheres nuas mas,
curiosamente, na publica��o dos meus quadros, os editores e os
jornalistas escolhem justamente essas�, dir-nos-� mais tarde.
O
dia-a-dia da comuna hoje � bem diferente do que era o quotidiano em
Friedrischof, garante Otto na entrevista que acabou por nos conceder. �Somos
15 adultos e 11 crian�as�, explica. �Quatro fam�lias vivem na
casa maior, com cozinha comum, sala comum e ateli�. H� ainda outras tr�s
fam�lias em casas nas proximidades.� Na casa grande habitam 15
pessoas: Otto e a mulher, Claudia, as suas tr�s filhas e o marido de
uma delas, al�m de Dani�le, Katarina (tamb�m nos cinquentas), os
filhos respectivos e mais alguns adolescentes. Numa pequena casa ao lado
vive outro casal, Jacques e Violenne, com tr�s filhos, e ainda Martin, �um
londrino que sempre quis ser m�sico mas se ficou pela assessoria fiscal�.
Michael, Brooke e Margaret vivem noutra habita��o nas imedia��es.
Otto, com 77 anos, � o mais velho, enquanto as crian�as mais novas
parecem ter cerca de cinco anos.
Da
antiga comuna, nas palavras de Otto M�hl, resta �a assist�ncia
comum �s crian�as, a sexualidade comum dos adultos, o abastecimento
comum - compras, cozinha, autom�vel...� O pintor assegura, no
entanto, que s�o mais as diferen�as do que as semelhan�as entre a
grande comunidade fundada em 1971 e a vida de hoje. As distin��es
passam por pontos importantes: �Hoje procuramos contacto com o
exterior e s�o poss�veis rela��es a dois (facto novo em rela��o
a Friedrischof)�, diz. �Tenho uma rela��o a dois com a
minha mulher Claudia, o que n�o me impede de ter rela��es intensas
com outras mulheres. Tudo � poss�vel, mesmo liga��es sexuais com o
exterior. Contudo, devido ao perigo de infec��es, a alternativa � a
sexualidade dentro do grupo. Para quem tiver contacto com o exterior, a
sexualidade dentro da comunidade deixa de ser poss�vel at� que sejam
feitas an�lises. O grupo protege-se assim da sida e de outras doen�as.
N�o se trata de uma barreira moral. Temos um membro que teve contacto
sexual com o exterior e que continua a pertencer � comuna�, afian�a
Otto.
O
sexo livre no interior da comuna � assumido com naturalidade. Mas �os
adultos n�o t�m hoje rela��es sexuais com os jovens�, garante M�hl.
�Estes tendem a praticar a sua sexualidade no exterior. N�o t�m
inten��o de se integrar sexualmente. Uma menina de 17 anos tem um
amigo em Paris que nos vir� visitar em breve.� Esta � uma revela��o
importante, dado que M�hl foi condenado por pedofilia - o que o coloca
sob o olhar atento da pol�cia europeia. Quanto �s queixas apresentadas
por adolescentes sa�das de Friedrischof, e que estiveram na origem da
sua condena��o, Otto afian�a: �As raparigas foram pressionadas,
porque lhes disseram que iriam parar � pris�o se n�o depusessem
contra mim. Uma pessoa tem de ser j� muito consciente e segura de si
para n�o se deixar impressionar pela press�o moral de um processo
judicial.�
Actualmente,
a comunidade divide o tempo entre pintura, m�sica e conv�vio. �H�
um hor�rio firme de refei��es, encontramo-nos muitas vezes ao fim do
dia e entregamo-nos espontaneamente ao canto e � dan�a. Por vezes
ocupo-me a pintar e a escrever, trabalho para exposi��es. Tenho um
dia-a-dia muito variado.�
Crian�as
educadas em casa
As
crian�as n�o v�o � escola - s�o educadas no interior da comunidade.
Os mi�dos em idade escolar est�o ligados a uma telescola alem� e
fazem os trabalhos em casa. �As m�es alternam nas brincadeiras e na
vigil�ncia das crian�as pequenas que nasceram no Algarve, e que ir�o
frequentar uma escola portuguesa, para aprenderem o idioma�,
continua Otto.
�Os
mais crescidos, que j� frequentaram a escola, seguem um programa de
forma��o com t�nica na arte. Trabalham de um modo semelhante a uma
universidade com projectos relativamente independentes. Muitos adultos t�m
cursos superiores de arte, literatura, filosofia, psicologia, hist�ria,
mas tamb�m de matem�tica e ci�ncias naturais. Para aprendermos
portugu�s mais rapidamente, temos uma professora portuguesa que vem a
casa�,
continua. �Encorajei as crian�as a criarem uma banda de 'jazz'.
Todos contribu�mos para os equipar com saxofone, piano, percuss�o,
guitarra, clarinete, trombone e contrabaixo - s� instrumentos
profissionais.� Hoje, a Sahara Baby Jazz � conhecida em todo o
Algarve, onde j� realizou in�meros concertos.
Sobre
si, Otto afirma: �N�o sou um revolucion�rio. Sou um pedagogo, na
verdade sou um professor de liceu - estudei pedagogia, alem�o, hist�ria
e psicologia, e mais tarde frequentei a Academia de Arte de Viena.
Considero a nossa vida comunal aqui no Algarve como um projecto de
investiga��o social.� Vai mais longe: �Pelos nossos filhos se
v� que a nossa vida n�o � uma utopia.� E acrescenta, fazendo uma
estranha refer�ncia divina, ele, que se considera �por princ�pio,
contra todo o tipo de f�: �Neste caso, cito as palavras de
Jesus: nos teus frutos te deves reconhecer.�
Sobre
o seu percurso, M�hl avan�a: �Tudo o que � novo precisa de um
certo tempo at� se afirmar. Devo dizer que nunca me preocupei muito em
ser reconhecido, antes pelo contr�rio. Quando fundei a comuna (de
Friedrischof), estava t�o entusiasmado que durante dois anos n�o
pintei nada.� Questiona v�rias coisas no mundo actual: �Se
olharmos a percentagem de div�rcios, o aumento do n�mero de m�es que
educam sozinhas os filhos ou o n�mero de celibat�rios, vemos a decad�ncia
das estruturas familiares; e reconhecemos a necessidade de perguntar
como podem hoje as pessoas ter uma vida em comum e feliz.�
Otto
mudou ao longo da vida, disso n�o h� d�vida; sen�o, como perceber
que algu�m que fundou uma comunidade onde instaurou o amor livre e a
livre sexualidade confesse: �Tamb�m sofri muito por amor. Era muito
rom�ntico e ciumento�? Este n�o � o �nico aspecto em que o
pintor alterou a sua vis�o das coisas. Dois exemplos: o fundador da
comuna que mais sucesso teve na Europa acredita hoje que �a
propriedade colectiva num grande grupo gera menoridade�. E o mesmo
homem que aboliu o conceito de casal na sua vida, que afirmou in�meras
vezes n�o acreditar no casamento e disse � imprensa que �o amor n�o
existe�, encontra-se, hoje... legalmente casado.
Sobre
a aboli��o do conceito de casal, que praticou durante vinte anos em
Friedrischof, M�hl explica: �O que me interessa � a supera��o do
ci�me. � preciso garantir � mulher o direito de decidir quando, onde
e com quem quer praticar a sua sexualidade, sem que o parceiro se sinta
no direito de a censurar por isso. (...) Sigmund Freud afirma que o
enamoramento, quando uma pessoa se apaixona, � uma regress�o infantil.
O enamorado comporta-se como uma crian�a perante a m�e. Trata-se de
uma circunst�ncia hormonal que, como se pode ver pelas taxas de div�rcio
no mundo ocidental, n�o dura muito. (...) Como o adulto n�o � uma
crian�a, o enamoramento devia ser livre do desejo de posse. Assim,
ainda fico mais satisfeito quando a amada tem outros homens�, diz. ��
sinal de que ela est� bem.�
Tem
do trabalho a vis�o de uma forma moderna de escravatura: �H� neste
momento demasiadas pessoas no mundo que agradecem � ind�stria o
simples facto de existirem. Considero isto uma esp�cie de escravatura.
Estas pessoas s�o exploradas, transformando o seu tempo de vida em
tempo de trabalho. Nunca houve tanta gente a trabalhar como hoje.�
N�o � optimista: �Considero que qualquer alternativa - se � que
ainda as h� - vem demasiado tarde, porque o processo que o ser humano
iniciou j� n�o pode ser travado. Temos de repensar tudo.�
�Arte
e vida est�o ligadas�
Otto
M�hl gosta de Portugal, sobretudo por causa do clima e tamb�m porque
as pessoas s�o simp�ticas. �A paisagem � inebriante, maravilhosa,
todos os dias me sinto feliz por viver aqui, principalmente quando venho
de Paris - aqui pode-se respirar este ar. Temos a sorte de morar no
Sotavento algarvio, onde a paisagem quase n�o foi afectada. Diante de
mim h� mato, que me inspira muito na minha pintura.�
Acredita
que a vida de um artista e aquilo que faz encontram a sua express�o na
arte. �A arte e a vida est�o ligadas. Quem vive como um simpl�rio
ter� a arte de um simpl�rio. Um artista que hoje viva sem projectos
sociais n�o tem possivelmente qualquer interesse para o futuro. O
artista do s�culo XIX sacrificou a sua vida � arte. Eu penso que a
arte deve servir a vida e n�o o contr�rio. Uma sexualidade feliz, uma
boa rela��o com as mulheres, um bom interesse social e um bom
relacionamento com as pessoas: penso que � assim o artista do s�culo
XXI.�
Entrevista
traduzida por Aida Macedo
Sexo
com todos quatro vezes ao dia
A
comuna de Friedrischof durou de 1971 a 1991. Situava-se no campo, a
alguns quil�metros da capital austr�aca, Viena. Era, na origem, um
projecto radical, pioneiro. Aos 45 anos, depois de ter sido abandonado
pela mulher, Otto Muhl decidiu viver em regime comunit�rio. Como a sua
casa era grande, p�-la � disposi��o. A coisa correu bem, e Muhl
resolveu transp�-la para ponto grande.
A
filosofia da comunidade de Friedrischof assentava numa sexualidade
livre, no fim das rela��es a dois e da fam�lia tradicional. Tudo era
poss�vel. Muitos rapavam o cabelo, quem quisesse andava nu. A comuna
era auto-suficiente: tinha cozinha, lavandaria, escola, horta, ateli�
de pintura e at� um est�dio de cinema (Otto realizou v�rios filmes,
al�m da obra de pintor). As noites eram ocupadas em terapia de grupo.
Tocava-se m�sica, dan�ava-se, fazia-se teatro. Apesar de n�o ter
prepara��o para o efeito, Otto fazia de psicanalista. Era tamb�m o
mais velho, os outros andavam na casa dos vinte. �Quando um psiquiatra
dorme com o seu paciente, a rela��o m�dica termina. Comigo �
exactamente o contr�rio�, admitir�, no document�rio televisivo
Escravos no Para�so.
O
sexo ocupava um papel central. Praticava-se tr�s a quatro vezes ao dia
- de manh�, ao meio-dia, ao lanche e ao final da tarde -, sempre com
parceiros diferentes. As mulheres mais populares chegavam a precisar de
anotar nas agendas os pedidos - �s vezes para as tr�s semanas
seguintes. A �poca era indissoci�vel da liberta��o sexual dos anos
60. Friedrischof era uma esp�cie de para�so.
Mas
para uma comunidade de sexo livre, havia regras a mais: era proibido ter
rela��es sexuais com o mesmo parceiro mais do que uma vez por semana -
ou a pessoa tornava-se �suspeita de manter um relacionamento�. As rela��es
sexuais s� podiam demorar 10 minutos. As rela��es homossexuais eram
proibidas. O sexo estava absolutamente dissociado do amor - os gestos de
carinho eram inexistentes. As doen�as eram frequentes: gonorreia,
hepatite, piolhos, gripe, cistite, diarreia...
Filhos
de Friedrischof
A
comuna cresceu de forma desmedida. Em 1978, havia cerca de 300 membros
em Friedrischof. Em 1980, esse n�mero tinha duplicado. Decidiu-se
ent�o acabar com os recrutamentos. A comunidade fechou-se ao mundo, o
contacto
com elementos exteriores foi proibido - incluindo simples apertos de m�o.
Construiu-se um muro. A dimens�o da comuna levou � cria��o de uma
estrutura, numa tentativa de repor a ordem. Constitu�ram-se grupos e as
pessoas foram numeradas, do n�mero um (Otto, obviamente) ao n�mero
600. Mas a estrutura rapidamente se tornou uma hierarquia.
O
primeiro grupo (ou �bach�) era formado por Muhl e pelas mulheres que
disputavam a sua prefer�ncia. A estrutura decidia quem dormia com quem.
Se algu�m de um grupo mais baixo dormisse com um membro de um �bach�
superior, subia na hierarquia. Sexo passou a estar associado a poder.
Todas as mulheres lutavam para chegar a Otto.
Nasceram
os primeiros �filhos de Friedrischof�. Benjamin foi o primeiro. A
maioria ignorava quem era o pai, mas isso n�o tinha import�ncia. Na
nova gera��o, a comuna viu o futuro - uma gera��o a quem podia
passar os seus valores. Mas, para isso, precisavam de dinheiro. Foi o in�cio
de uma nova fase. A comuna voltou a abrir-se. Os seus membros procuraram
empregos �normais� - na bolsa, em ag�ncias de seguros e imobili�rias,
no mundo capitalista.Na
d�cada de 80, milh�es foram mandados para Friedrischof.
E
a comuna podia agora pagar o conforto que quisesse. Ao fim de uns anos,
Friedrischof era uma organiza��o multimilion�ria, com terrenos por
toda a Europa. Uma cis�o come�ou a evidenciar-se, entre dois grupos: o
de Otto e das suas mulheres, no topo da hierarquia, com acesso � melhor
comida, � melhor bebida, a drogas; e os outros, que trabalhavam mas n�o
tinham �v�cios�. Era uma divis�o classista, com um �apparatchik�
claramente privilegiado.
Os
homens come�aram a ficar obcecados pelo trabalho. O mercado livre
substituiu o sexo livre. A gera��o dos mais novos atingiu a puberdade.
Otto passou a reivindicar o �direito � primeira noite� das
adolescentes, a partir dos 14 anos (a idade legal na �ustria para rela��es
sexuais). N�o foi uma resolu��o pac�fica, em particular para as m�es
das meninas que iam perder a virgindade com Otto (na altura, com 65
anos). Muhl passou a rejeitar as mulheres mais velhas, com cerca de 35
anos. Afirmou-se que algumas das jovens, com 13 anos, foram violadas -
facto que Otto negou sempre. Alguns membros come�aram a questionar a
lideran�a de Muhl. Outros partiram.
Oito
anos por pedofilia
A
19 de Junho de 1991, a pol�cia prendeu Otto Muhl, com base
em testemunhos de adolescentes sa�das de Friedrischof. Foi acusado de
pedofilia, abuso de poder e incentivo de uso de drogas, e condenado a
oito anos de pris�o. Nunca se considerou um ped�filo: �A comunidade
tinha as suas regras pr�prias em rela��o ao sexo. E eu fui julgado
pelas regras desta sociedade�, afirmou numa entrevista. �O tribunal
considerava-me um porco pervertido.�
Com
a sa�da de Otto, a comunidade esboroou-se. A vida passou a ser mais pr�xima
da da sociedade normal, com idas ao supermercado. Muitos membros
viram-se obrigados a recome�ar do nada, por vezes aos 40. As mulheres
de Otto, em particular, tinham a sensa��o de que n�o sabiam fazer
nada sem ele. Nove anos ap�s a pris�o de Muhl, s� o �n�cleo duro�
das mulheres restava em Friedrischof.
Libertado
aos 72 anos, Otto mudou-se para Portugal, com 15 membros da comunidade
original. Agora com a doen�a de Parkinson, nem por isso alterou o
seu estilo de vida. Nada, escreve, pinta e toca. Segundo a realizadora
do document�rio, Madonna Benjamin, Otto continua a praticar sexo livre
todos os dias.
*
artigo publicado na revista francesa Courrier International, de 1/8/2003
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Otto
M�hl e a mulher, Claudia,
no Algarve
�Ac��o�
art�stica em 2002
A
autobiografia de M�hl
�Ac��o�
art�stica em 1964
Um
desenho de 1977
�O
11 de Setembro�
O
artista na pris�o
�Paisagem
portuguesa�
Otto
M�hl numa �performance�
Estudo
para a capa da sua biografia, �Sair do Lama�al�
Otto
rodeado por algumas das suas mulheres
A
casa da comuna |
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