REVISTA Nº 1498 14 Julho 2001

A cada um a sua mania

Superstições, rituais, fetiches, amuletos constituem sinais da inquietação que povoa, dia a dia, a vida de escritores, políticos, actores, atletas. O que fazem para transformar a sorte numa aliada.

Texto de Katya Delimbeuf

Se não sabia que Maria Callas só actuava se tivesse consigo uma imagem do século XVI da Nossa Senhora e o Menino Jesus; que Pavarotti precisa de encontrar um prego enferrujado no palco para cantar; ou que José Carreras nunca faz a barba em dias de concerto; fique a saber que, por cá, outros, como estes, também se realizam nalgumas excentricidades. São «restos de velhas crenças», aquelas que a linguagem corrente designa por superstições. Há quem lhes chame «pancadas», «manias»; mas a verdade é que são muitos os que repetem determinados gestos para atrair a sorte ou afastar Servem para reduzir a incerteza ou a ansiedade e estão associados a momentos de pressão, em que o acaso pode ter um papel preponderante. Nos momentos em que se joga tudo sem rede - num palco, numa competição desportiva ou num acto de criação - há rituais que se cumprem, religiosamente. Alguns são deliciosos, outros invulgares. No rescaldo de sexta-feira 13, revelam-se as superstições de pessoas de mundos tão diversos como os da escrita, do teatro ou do desporto.

Criar é um acto mágico, que não obedece a explicações racionais ou imposições externas. Na escrita, há autores que só conseguem trabalhar a determinadas horas do dia, a certos dias da semana, ou com objectos à sua volta. Se Isabel Allende começa a escrever todos os seus livros no mesmo dia do ano - 8 de Janeiro -, e o título dos romances é decidido com uma prosaica escolha de moeda ao ar, por cá, os nossos escritores também têm as suas particularidades.

Hélia Correia só escreve quando chove. Por isso, «este Inverno foi muito proveitoso». O seu último livro, «Lillias Fraser», foi escrito nesse período. A escritora confessa que não gosta da luz do dia nem do calor. No Verão, foge para a Irlanda ou para a Escócia ao encontro do tempo que condiz com o seu próprio estado de espírito, mas no ano passado teve azar e apanhou um dos estios mais quentes de que havia memória. No Verão de 98 ainda tentou escrever à noite - ia-se deitar quando o sol nascia -, mas o que escreveu «foi para o lixo». «Não era eu», garante. Para criar rodeia-se «de estatuetas de duendes, fadas, pedras gregas e gatos pretos». Anda sempre com umas medalhas de barro irlandesas e um anel grego. O seu mais recente encanto é um espinheiro alvar, que plantou no jardim da sua casa de Janas, uma árvore sagrada irlandesa sob a qual habitam os «little people» - duendes e fadas -, segundo a lenda celta. Teve o cuidado que fosse regada, pela primeira vez, por dois irlandeses com nomes de deuses - Maeve e Oisin - e trouxe ainda, «para que a árvore se sentisse mais em casa», umas pedrinhas hexagonais de uma formação geológica ao pé de Mafra, única no país. A mesma que existe na Irlanda, e que dá pelo nome de Calçada dos Gigantes, que um colosso terá construído para a sua amada.

Adília Lopes reza sempre a Santa Bakhta («uma santa preta») antes de ligar o computador ou o esquentador. Quando viaja, sente necessidade de «comprar brinquedos e livros para crianças, mesmo que estejam numa língua estranha», e precisa de ter sempre consigo postais com reproduções de quadros modernos, de muitas cores. Na sua secretária repousam brinquedos que eram da mãe, uma boneca, um Cristo velho. Escreve sempre em papel branco ou rosa, com uma «bic soft still roller»; no caso da poesia, primeiro à mão, depois à máquina, só depois a computador. Em cima da secretária de trabalho, Mário Cláudio tem «um coro de fetiches»: uma imagem de S. Francisco de Assis, uma fotografia do pai, um exemplar dos quatro evangelhos, todos simetricamente colocados. Nunca começa uma obra à terça-feira, nem à sexta-feira. Não sabe porquê. Segunda-feira é o dia preferido para iniciar um livro. Só escreve de manhã, sempre à mão, com uma caneta Pelican de tinta preta, que usa há muitos anos.

Agustina Bessa-Luís tem o cuidado de começar a subir uma escada com o pé direito. Nunca passa por baixo de alguma outra, não gosta de entornar sal à mesa e acaba sempre os seus livros com o número sete - ou com números cuja soma dê sete -, geralmente nas datas com que conclui as obras.

Se tiver a obra completa de Lídia Jorge em casa, terá com certeza reparado que existe um elemento comum a todas as capas. Agora mais estilizado, a escritora mantém o mesmo símbolo, uma cobra com asas, desde a edição do primeiro livro. «O Dia dos Prodígios», assim se chama, tinha de facto como personagem principal uma cobra alada, mas publicada a obra, as editoras não acharam que fizesse sentido manter o desenho. Ela insistiu e assim ficou. «Já não queria que me tirassem o 'bicharoco' da capa. No primeiro livro funcionou, portanto devia ficar. Aquele sinal agora é meu. Identifico-me com ele.»

Também Manuel Alegre revela que acredita «nas forças mágicas». «Há palavras que convocam as forças benéficas ou as maléficas», diz. Quando escreve poesia, fá-lo sempre em cadernos de papel quadriculado, com uma «caneta-talismã»; e nos lançamentos de livros usa uma camisa azul, com uma gravata e lenço verdes, para dar sorte. Aquele que foi também campeão de natação e praticante de caça e tiro aos pratos declara ainda que, antes de qualquer momento importante, no desporto, na escrita ou na política, tem sempre o mesmo «gesto mágico»: «Toco três vezes com o dedo na cabeça.» O poeta (e deputado) afirma que todos os políticos têm algum tipo de ritual, superstição, ou tique no discurso, mas duvida que o confessem, por se tratar de coisas demasiado pessoais.

Na verdade, entre os políticos, apenas Rui Rio, o candidato do PSD à autarquia do Porto, confidenciou. «Calço sempre o sapato direito antes do esquerdo; quando não o faço, sinto-me desconfortável, e já cheguei a descalçar-me e a tornar a calçar-me.» Foram os únicos homens da política que deram o testemunho.

«Primeiro estranha-se, depois entranha-se.» É assim que Alexandra Lencastre, actriz desde os 19 anos, resume o conjunto de superstições que, no teatro, assumem praticamente contornos de uma cultura. A vida de palco é propícia à criação de hábitos de trabalho, com vista a criar um processo de concentração. Este repete-se muitas vezes do primeiro ao último dia da peça. «Quando faço teatro, saio de casa todos os dias à mesma hora, chego ao teatro à mesma hora, como sempre (muito pouco) no mesmo sítio. E antes de entrar em palco, rezo, benzo-me, deixo uma vela branca acesa no meu camarim. Uso um perfume diferente para cada personagem, quando já a construí na minha cabeça, o que às vezes até me incomoda, porque o cheiro pode ser muito forte e nada ter a ver comigo.» Rogério Samora já sabe: «Quando trabalho com ela ofereço-lhe sempre um frasco do perfume que ela está a usar.» Há ainda cores de que a actriz não gosta: «Determinados verdes, determinados roxos. Em várias circunstâncias da minha vida, procurei sempre levar uma peça azul, para me dar sorte.»

Há também palavras proibidas: azar, sorte, cobra. Não se dizem. Quando se quer dizer «azar», diz-se «galo». «Macbeth» é uma espécie de peça maldita, cujo nome ninguém gosta de pronunciar, porque nos teatros em que ela foi encenada registaram-se incêndios, como aconteceu no Dona Maria II, na noite de 1 para 2 de Dezembro de 1964. E quando, 12 anos mais tarde, Jorge Listopad decidiu encenar a peça no Teatro Experimental de Cascais, utilizando dessa vez água, este inundou.

São muitos os que, no teatro, consideram que as superstições são «coisas da geração mais antiga», que têm a ver com gestos que se fazem desde sempre, e por isso foram ficando. Mariana Rey Monteiro e João Perry lembram o já falecido José de Castro, que repetia todos os dias tudo o que tinha feito na estreia e não entrava em palco sem tocar em madeira. Francisco Nicholson, actor há 40 anos, recorda Barroso Lopes, que «levava as mãos à boca e dava uma espécie de beijos». Segundo ele, a origem do hábito de nunca se desejar boa sorte, mas sim «muita merda», data dos finais do século XIX, quando uma grande actriz francesa, acometida à boca de cena de uma forte cólica intestinal, não teve tempo para suster a necessidade e... já não foi a tempo de se mudar. A peça foi um êxito tal que, dali em diante, a palavra «merda» tornou-se associada a um talismã.

Nicholson lembra ainda outras superstições do meio: «Quando os papéis de um actor caem ao chão, inadvertidamente, é sinal de que a interpretação vai agradar. E ver sangue também é suposto dar sorte.» O autor da novela «Ganância» ainda se ri quando pensa em Pinto de Campos - estava-se em meados dos anos 60 - acabado de cair no fosso da orquestra, «onde se tinha partido todo», mas pouco preocupado porque o sangue lhe escorria da cabeça, era sinónimo de sorte. Entre a mão que levava à fronte, bradava: «A peça vai ser um êxito!»

História parecida marcou Miguel Abreu, em finais da década de 70, quando, numa audição em que Amélia Rey Colaço era um dos membros do júri, a «senhora dona Amélia», como era carinhosamente tratada, se levantou em direcção ao palco, tropeçou num cabo e caiu, magoando-se num joelho. Qual não foi o espanto do actor, quando viu todos a correr em direcção à actriz, «não só para a ajudarem, mas também para molharem os dedos no sangue do joelho ferido e pô-lo atrás das orelhas».

Não são, contrariamente ao que se possa pensar, apenas os mais velhos que partilham desta cultura. Se há actores, como Mariana Rey Monteiro, Ruy de Carvalho ou Eunice Muñoz que se afirmam sem superstições, também há, na geração mais nova, quem as tenha. Mas são muitas vezes confissões pessoais, e nem todos se sentem à vontade para as tornar públicas. Consideram que, se falarem sobre elas, a sua magia e infalibilidade podem deixar de funcionar.

Diogo Infante confessa: «A minha maior superstição é não falar sobre isso. É muito pessoal.» Esta é, aliás, uma resposta recorrente a muitas pessoas. Mas há quem confesse pequenos rituais, alguns até que começam como brincadeira e depois vão ficando. Foi assim com Paulo Pires. Uma vez, no Teatro Aberto, procurou antes do começo da peça vislumbrar um qualquer sapato na primeira fila. A partir daí, a graça pegou e agora é um hábito que repete religiosamente. Quanto a Ana Bustorff, não dispensa as suas pedrinhas, dois quartzos rosas e uma ametista, que vão com ela para todo o lado. «Há pouco tempo, pu-las a recarregar baterias no mar: um dia a apanhar a luz do sol, uma noite à luz do luar.»

O teatro é, de facto, território privilegiado de rituais e superstições. Marina Mota, durante muitos anos actriz de revista, recorda uma série de «actos proibidos»: não se podia fazer «crochet» durante os ensaios; levar penas de aves para o palco; assobiar quando se entra no camarim; trocar o sapato esquerdo e o direito quando não estão calçados. Tentava-se ainda que os títulos das revistas tivessem um número ímpar de letras. Dava sorte. E também «não se deve passar por cima de uma criança quando esta está deitada no palco, senão ela não cresce», acrescenta Maria João Abreu, que em qualquer circunstância nunca passa por baixo dum escadote e até se livra de todos os espelhos partidos.

Muitos destes actores fizeram já cinema e televisão. A maioria afirma que as superstições que têm no teatro ficam dentro da sala de espectáculos. «No audiovisual, não há estreias, não há o exame imediato do público», afirma Francisco Nicholson. Mas para todas as regras há uma excepção.

Rogério Samora nunca foi supersticioso, em 23 anos de profissão. No entanto, confessa: «Pela primeira vez este ano, quando rodei 'O Delfim', baseado no livro de José Cardoso Pires, senti de tal forma a responsabilidade da personagem, que usei sete botões no sapato do pé direito para estar sempre alerta. Para não cair na facilidade. E quando perdi um botão, andei preocupado porque tinha de ser aquele e não outro.»

Nuno Guerreiro, o vocalista do Ala dos Namorados, entra sempre em palco depois de beber um chá de perpétuas roxas - à semelhança de Dulce Pontes - e de se benzer. Gosta de ver as suas iniciais na matrícula de um carro, pois acha que são um sinal de sorte, e nunca passa por baixo de dois obstáculos. Não gosta de ver chapéus em cima da cama, porque «significa que alguém vai morrer». Sempre que alguma coisa se parte em sua casa enche um copo de água e atira-a pela janela, «para deitar o azar fora».

A área do desporto é outra das mais ricas em histórias de superstições e afins. Nem é preciso falar de futebol. Porque a competição é claramente assumida, e porque da sorte pode depender o resultado, independentemente da preparação dos atletas, muitos optam por «jogar pelo seguro». E assim munirem-se de outras coisas para lá do esforço pessoal.

Pedro Lamy entra sempre com o pé direito no carro, o que nem sempre é tarefa fácil. E nunca se esquece dos santinhos, em papel ou metal, que a avó e a mãe lhe deram, e que andam sempre no interior do forro do capacete. No mundo da vela, os rituais são outros. É «proibido» mudar o nome do barco - mesmo que seja o pior dos palavrões -, «senão é naufrágio certo».

João Lúcio da Costa Lopes, 52 anos, conta que, a bordo das suas embarcações, é interdito comer coelho. «Uma vez um cozinheiro fez coelho sem o meu conhecimento e, nesse dia, o gerador queimou.» Diz também que não se pode fazer a barba a meio de viagens de longo curso. A justificação encontra-a nos pêlos, quer do coelho, quer das pessoas, e no imperativo da higiene a bordo. «Lembro-me duma regata de 24 dias que fiz em 1987, com o Miguel Lacerda, em que ele decidiu fazer a barba a meio da viagem. O tempo, que estava esplendoroso, transformou-se numa tempestade tal, que quase partimos os cabos e naufragávamos.»

Também as arenas são lugares de superstição. Na praça de touros de Alcácer do Sal não há o lugar 13 em nenhuma fila. Cavaleiros e bandarilheiros dividem as cautelas. Ambos detestam ver o tricórnio (o chapéu dos cavaleiros) ou a «montera» (o dos bandarilheiros) em cima de uma cama. Ambos toureiam com muitas medalhas de santinhos, uns no casaco, presos por alfinetes, outros no bolso, outros em fios, outros ainda que deixam na sala em que se vestem antes da corrida, cuja luz fica sempre acesa.

Para eles, o amarelo é uma cor aziaga. Trocam-se frequentemente bandarilhas amarelas e ver pessoas vestidas dessa cor é um prenúncio de má sorte. Ernesto Manuel, bandarilheiro da quadrilha de Francisco Núncio, usa um capote grená e azul. «A pior noite que tive em Lisboa foi quando pousei o capote em frente a uma mulher vestida de amarelo», recorda. Também é hábito atirar a «montera» para o meio da arena. A isto chama-se «virar a sorte»: se esta ficar virada para baixo, é bom sinal; se ficar para cima, nem por isso. Assim, há muitos que não arriscam e poisam a «montera», em vez de a lançar.

Ernesto Manuel entra sempre na arena com o pé direito, ao contrário do fato de toureiro, que começa a vestir pelo lado esquerdo. Usa várias medalhas ao pescoço e dois fios quando toureia. Nunca empresta a «montera». Admite que possam ser «mariquices», mas vai repetindo os mesmos rituais, «não vá o diabo tecê-las». As superstições não são, pois, pertença exclusiva do passado ou de um grupo específico de pessoas «meio amalucadas». Enquanto o homem for um ser eminentemente religioso e acreditar no destino - essa impossibilidade de controlar a vida - usará sempre pequenos truques para convocar a ajuda da sorte.

     

 

Hélia Correia

 

Adília Lopes

 

Pedro Lamy

 

Luciano Pavarotti

 

Maria Callas

 

José Carreras

 

Lídia Jorge

 

Manuel Alegre

 

Alexandra Lencastre

 

Rui Rio

 

Rogério Samora

 

Ana Bustorff