ÚNICA No. 1692 - 2 Abril 2005

Por uma boa causa

Anda de terra em terra a falar dos problemas das mulheres e da família. A faceta de Catarina Furtado enquanto embaixadora da Boa Vontade da ONU.


Texto de Katya Delimbeuf
Fotografias de António Pedro Ferreira

Évora, sede do Instituto Português da Juventude (IPJ), 11h30 da manhã. Um grupo de mães - três adolescentes e duas menos jovens - aguarda, com os seus bebés, a chegada de Catarina Furtado. Estão ali para a aula de massagens para bebés dada pela enfermeira da Associação de Planeamento para a Família (APF) de Évora. Esta já as avisou da vinda de Catarina na qualidade de embaixadora das Nações Unidas. A actriz entra, apresenta-se, explica o porquê de estar ali, o seu papel enquanto embaixadora do Fundo para a População (UNFPA), que se debruça sobre os assuntos da mulher e da família: a gravidez na adolescência, a educação sexual, a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis ou a violência doméstica. Catarina faz óbvias diligências para que todas se sintam à vontade. Fala com cada uma das jovens mães - com idades entre os 16 e os 18 anos -, vai perguntando o que quer saber, com tacto, com sensibilidade. Insiste em pontos como a contracepção, pergunta se a fazem agora - todas tomam a pílula, desde que tiveram os bebés -, se não desistiram dos seus sonhos, se continuaram a estudar; como vão lidar com a sexualidade das suas filhas, o que lhes vão dizer...

Rute teve o filho aos 17 anos. Não fazia contracepção, porque o namorado «não gostava de usar o preservativo». Durante a gravidez, deixou de ir à escola. «Sentia-me diferente, sentia-me mal...», diz. Como para todas as outras mães adolescentes, o seu principal problema era contar aos pais. Hoje, quando as amigas mais novas lhe dizem «isso não me acontece a mim», responde-lhes «eu também dizia isso...» Foi na APF que Rute e as outras mães adolescentes encontraram o apoio que não tiveram no hospital, onde desfizeram as dúvidas que traziam, porque «as enfermeiras e as médicas não explicavam nada». Este acabou por ser o verdadeiro hospital para elas: era aqui que lhes examinavam o peito, os pontos... Uma mãe diz mesmo que foi na Associação que tirou «os agrafos» (não os pontos), porque no centro de saúde lhe disseram que «não tinham pinça para os tirar».

Há dois anos que este projecto, o «Mamãs de Palmo e Meio», existe na APF de Évora, para integrar e apoiar as mães adolescentes, o que por vezes falta por parte da família. Como o objectivo não é isolá-las, estas aulas (gratuitas) de massagens para bebé, ou de preparação para o parto, são espaços ideais para tirar dúvidas e criar uma rede social de ajuda entre todas as mães, mesmo as mais velhas. As massagens servem essencialmente para reforçar os laços de afectividade entre as mães e os bebés. Catarina auxilia as mães a despirem os filhos, para ajudar na aproximação e tornar a sua presença mais natural. Ela é a primeira a admitir que conhece hoje melhor Portugal, «nomeadamente os jovens».

Depois de almoço, segue-se uma reunião na sede da APF de Évora, para fazer um ponto de situação: os projectos em curso, as pessoas «atingidas» pela informação, os financiamentos... A APF tem um papel central na coordenação com o Fundo das Nações Unidas do qual Catarina é embaixadora. O UNFPA trabalha com a APF portuguesa desde 1967. De resto, «foi este que pagou todos os serviços de saúde relacionados com o planeamento familiar no nosso país até à entrada na UE», explica Alice Frade, 44 anos, na APF desde 1989. Alice vai com Catarina praticamente para todo o lado, até nas viagens a Moçambique, em 2001, e a São Tomé, o ano passado. Com experiência de terreno junto dos jovens, trabalha há cinco anos na área da cooperação - com o UNFPA e com Catarina Furtado.
«Este fundo prende-se essencialmente com questões da saúde sexual e reprodutiva da mulher, com o VIH, o aborto, a violência sobre a mulher, a gravidez na adolescência...», comenta Catarina, que, em Portugal, investe essencialmente na sensibilização junto das novas gerações, passando informação, para que elas não reproduzam os mesmos erros das anteriores. O próximo ponto na agenda é um encontro de jovens voluntários que fizeram cursos da APF sobre contracepção e doenças sexualmente transmissíveis.
«Assim, consegue-se um duplo efeito: enquanto os próprios jovens assimilam estes comportamentos e conhecimentos, também os transmitem».

Reina grande algazarra no bar do IPJ, onde se instalou uma trintena de jovens, entre voluntários, estudantes e pessoas que acorrem «para ver a Catarina Furtado». Há risos nervosos e um barulho ensurdecedor enquanto todos não se sentam. Mas naturalmente a presença de Catarina impõe respeito e a plateia cala-se para a ouvir. Com à-vontade, ela modera o debate, pergunta às jovens voluntárias, de 13 e 14 anos, o que aprenderam nos cursos da APF. Elas explicam o que ficaram a saber, essencialmente sobre questões relacionadas com a sexualidade, falam dos panfletos e dos preservativos que distribuíram no Dia dos Namorados, da campanha «Sexo mais seguro na noite eborense», realizada nos bares e nas discotecas da cidade.

PRESERVATIVOS NO BOLSO DAS CALÇAS
Os jovens na assistência aproveitam para tirar dúvidas. Fala-se do método do calendário, da falibilidade do preservativo (das microfissuras, do sobreaquecimento da borracha quando colocado no bolso de trás das calças), no facto de a pílula não fazer efeito se se estiver a tomar antibiótico... As voluntárias mais novas admitem que já deram conselhos a amigas. Catarina mete-se com um grupo de jovens no bar que está a ouvir a conversa, desafiando-os a participar. Fala-se de sida. A actriz aconselha os rapazes a usarem sempre o preservativo. Duas horas de conversa mais tarde, deixa-se a morada da APF, onde consultas «gratuitas, confidenciais e anónimas» estão à disposição dos jovens, e segue-se para as aulas de preparação para o parto que a associação disponibiliza gratuitamente para as mães adolescentes - assim como o apoio domiciliário pós-parto.

Dia 2. Faro. Almoço com professores da Escola Joaquim Magalhães, uma das cinco a nível nacional que arrancou com um projecto experimental de Educação Sexual nas escolas, desafio lançado por Catalina Pestana quando esteve no Ministério da Educação, de 1995 a 1998. O projecto foi mediado pela APF e avaliado por uma entidade externa. «Teve uma avaliação muito positiva, e depois foi para a gaveta. Não havia vontade política», conclui Alice Frade. Existe um decreto-lei que prevê a obrigatoriedade dos alunos terem aulas de Educação Sexual - mas ao mesmo tempo, não obriga os professores a dar a disciplina. «Não há Educação Sexual nas escolas, vai havendo», continua Alice.

A Escola EB 2-3 Joaquim Magalhães tem até um gabinete de atendimento ao aluno, com uma caixa à porta, onde os jovens dos 10 aos 15 anos podem colocar anonimamente todas as suas dúvidas, que são depois respondidas na turma. Os alunos de 11 anos prepararam uma peça de teatro sobre a mulher, que aborda as questões da violência doméstica e da discriminação de género. A actriz é recebida em apoteose. Mal os miúdos a avistam, à entrada da escola, rompem os aplausos e os gritos de euforia. A multidão de adolescentes envolve a apresentadora, dezenas de telemóveis empunham-se para tirar fotografias, gritam-se piropos, atropelam-se nas escadas para chegar perto dela.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Apresentada a peça, segue-se o debate. Catarina junta-se aos alunos no estrado... Discute-se a violência doméstica, se há menos ou mais, se há ou não o dever de denunciar. Chama-se a atenção para a violência verbal ou psicológica que se vê por vezes entre namorados adolescentes. Um professor fala das pressões que os rapazes colocam às namoradas para «a primeira vez» - e questiona se isso é ou não violência psicológica. Uma aluna confessa, emocionada, que ambas as suas avós foram alvo de violência doméstica, e que uma delas foi discriminada pela família quando fugiu para longe. As emoções soltam-se, devagarinho. É uma das funções destes debates, «desde que haja uma rede de apoio», ressalva Alice Frade.

São sobretudo as raparigas que falam. Os rapazes, mais tímidos, mais imaturos, gracejam, gozam, são mais avessos a falar de afectos. «Os afectos falados são melhor praticados», diz Catarina, que tenta puxar por eles. «Não há super-homens nem supermulheres, os homens não precisam de ter vergonha ou de esconder os seus sentimentos». Um dos alunos chama a atenção para o facto de ainda existirem «dois tipos de educação em casa: a da menina e a do menino. Mais responsabilidade para elas, mais liberdade para eles».
O debate é um sucesso e alguém pergunta a Catarina por que razão foi ela a escolhida pela ONU para representar Portugal. Avança-se o argumento dos PALOP e da lusofonia, e por fim uma aluna remata: «Porque a Catarina está para Portugal como a Julia Roberts está para os EUA». Os miúdos escoltam Catarina até ao carro, correm atrás dela. Meia hora depois, estamos em Quarteira, no bairro social da Checul, para entregar uma unidade móvel de saúde, que serve sobretudo para o rastreio do VIH. A carrinha tem também contracepção de emergência (a pílula do dia seguinte), preservativos, mas a principal vantagem é conseguir chegar aos imigrantes ilegais, que não vão aos centros de saúde. Os testes rápidos - que em meia hora dão o resultado das análises ao VIH - são outra das virtudes desta carrinha, mas desde Junho passado que se acabaram e que a Comissão Nacional não dá resposta.

No pavilhão de Ocupação de Tempos Livres da Checul, um novo banho de multidão aguarda a Embaixadora da Boa Vontade. Mais uma vez, Catarina não se furta aos pedidos de beijinhos, fotografias e autógrafos, demonstrando uma paciência a toda a prova. Um enfermeiro da APF explica a todos o propósito da unidade de cuidados móvel, que «traz a saúde até à população». Catarina apresenta-se, diz o que faz como embaixadora, os temas que aborda. As filas da frente estão pejadas de crianças. «Não foi muito seca...», diz uma miúda, referindo-se ao facto de os discursos terem sido curtos.

Cá fora, duas mulheres angolanas que receberam formação da APF explicam a Catarina que os homens da comunidade não aceitam o uso do preservativo, por motivos culturais. Argumentam que se as mulheres lhes pedem para o usar, é porque são infiéis. Da mesma maneira, a poligamia continua a ser uma prática destes «africanos antigos», como elas lhes chamam - o que, aliado à falta de uso do preservativo, assume riscos de proporções muito maiores. Catarina pergunta-lhes o que é que elas dizem aos filhos, questiona se usam preservativo. Estas mulheres têm agora a função de passar a mensagem dentro da comunidade. O próximo passo é tentar convencer os homens a vir a uma reunião para perceberem a importância do uso do preservativo. No fundo, é este o papel de um embaixador da Boa Vontade das Nações Unidas: chamar a atenção, pela sua visibilidade, usar o poder que os «media» lhe atribuem para passar mensagens importantes. A maior vitória de todas - e a mais difícil, porque se faz a longo prazo - é conseguir mudar mentalidades.

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A missão de Catarina
Há cinco anos que Catarina Furtado, 32, é embaixadora da Boa Vontade do Fundo para a População da ONU (UNFPA). É um cargo vitalício, desde que as Nações Unidas aprovem o trabalho desenvolvido pela pessoa, que para além de ser «nacionalmente conhecida», tem de ter uma «carreira de sucesso» e uma postura em consonância com os valores defendidos pela ONU. No caso dela, que é a única embaixadora deste fundo para os países de expressão portuguesa (há 22 embaixadores da boa vontade deste fundo), a organização escolheu-a após ler as entrevistas e aferir as suas posições pessoais sobre determinadas situações internacionais e questões relacionadas com a mulher. No processo de selecção, veio uma pessoa da América Latina expressamente falar com ela. Estiveram quatro horas a conversar. Passado um mês, Kofi Annan escreveu-lhe uma carta, convidando-a para ser embaixadora. Catarina refere sempre o título, «não como um cargo, mas como uma missão».

«Sou uma pessoa diferente desde que sou embaixadora das Nações Unidas», admite. «Os meus olhos passaram a ver menos cor-de-rosa».
Catarina confessa que passou a ser mais informada, mais atenta, lê mais… As experiências que viveu - quer no país, quer nas «viagens de terreno» a Moçambique, em 2001, e a São Tomé e Príncipe, o ano passado - dão-lhe particular orgulho. Em especial a doação da unidade de cuidados móveis a esta ilha, cujos fundos andou a recolher durante dois anos. É a única que existe em São Tomé, a única que tem uma marquesa ginecológica, a única que consegue ir a todo o lado. Foi a resposta concreta a um pedido específico da APF de São Tomé e Príncipe, o terceiro dos objectivos que define serem os de um embaixador: «A maior consciencialização da opinião pública; a pressão política, junto dos governantes (ministros, presidentes…); e a obra feita».

Catarina não recebe qualquer tipo de remuneração por ser embaixadora da Boa Vontade, apesar do tempo que dispensa às actividades do UNFPA: «Que é muito variável: tanto posso ter semanas em que estou dois dias no terreno como embaixadora, como depois estar três meses sem actividades específicas. Mas, em regra, tenho tarefas todos os meses». De resto, até há coisas que saem directamente do bolso dela, conta Alice Frade, da APF (Associação do Planeamento para a Família), que afirma que Catarina tem de fazer uma boa ginástica para conseguir conciliar a sua actividade profissional com as actividades do UNFPA. «A Catarina dá muito», garante Alice, «tem uma capacidade empática muito grande. Há abraços que ela dá que são a solução naquele momento. Por isso, também, muitas vezes as viagens de regresso são feitas em silêncio».

Uma vez por ano, todos os embaixadores reúnem-se na sede da ONU em Nova Iorque, para trocar experiências e vivências, discursar ou entregar relatórios. Aí, é natural Catarina cruzar-se com embaixadores como Angelina Jolie - «que sim, é linda de morrer» -, ou Linda Gray, «a Sue Ellen de Dallas». Uma vez, em Genebra, iam as duas na rua e todos queriam um autógrafo da Sue Ellen. Esta disse que Catarina era filha dela, e a actriz acabou por dar uma série de autógrafos como Catherine Ellen… Catarina costuma dizer: «Enquanto embaixadora da Boa Vontade, gosto de ser usada e abusada». Confessa encontrar alívio neste serviço à comunidade que a ONU lhe permite fazer. «Isto veio dar uma utilidade, um sentido à exposição que a minha profissão traz. E há um lado de retorno, de sentir que se está a utilizar o poder que se tem em prol de algo positivo».

 

 

     

 


Primeira paragem: encontro com mães adolescentes, em Évora, para conhecer casos reais e discutir problemas.






e Catarina num bairro social de Quarteira. Aula de preparação para o parto, em Évora.




Debate sobre violência doméstica numa escola de Faro.




Entregando a única unidade móvel de saúde em S. Tomé, em 2004.




Reunião dos embaixadores da Boa Vontade do FNUAP, em Nova Iorque.




Com Kofi Annen, que a convidou pessoalmente para o cargo.



Num hospital, durante uma visita a Moçambique, em 2001.