ÚNICA Nº 1851 - 19 Abril 2008

David Muñoz
O mago espanhol

Aos 28 anos, conquistou um lugar na gastronomia internacional. Chefe Revelação 2007, vendeu o apartamento para concretizar um sonho, o restaurante DiverXo. Trabalha 16 horas por dia e acha que a «nueva cocina» já suplantous a «nouvelle cuisine»

Entrevista de Katya Delimbeuf
Fotografia de Jorge Simão, enviados a Madrid

Visto da rua quase nada identifica o restaurante - apenas a palavra DiverX0 aparece escrita numa porta banal de uma artéria periférica, longe do centro de Madrid. Lá dentro, há uma sala pequena e simples, com mesas de madeira escura, um quadro asiático em fundo e uma cortina com inscrições orientais. Tal como a música ambiente. De cabelo louro descolorado e «crocs» pretas, David Muñoz recebe-nos com um sorriso franco. Para ele, a cozinha tem de ser divertida - e pouco óbvia. Por isso, à entrada do restaurante, o galardão Chefe Revelação 2007 - ganho no concurso Madrid Fusion, no qual participam chefes de todo o mundo - convive com um pisa-papéis com neve e um lobo lá dentro. É esse mesmo espírito que faz com que haja um boneco do Ratatouille em cima da chaminé da cozinha. No fim da entrevista, cozinhou para nós... coisas improváveis.

2007 foi um ano em cheio: ganhou o Prémio de Melhor Cozinheiro, o de Restaurante Revelação, o Madrid Fusion... Como se sente com estas distinções?
Orgulhoso. Mas vejo-as como algo muito efémero. É muito bom recebê-las, mas convém não perder de vista que é o dia-a-dia que lhes dá continuidade. O prémio vale para o dia de hoje; amanhã volta tudo ao mesmo. Dá-me muito mais prazer ver na sala caras conhecidas, «habitués», ou pessoas que mandam cá outras por terem gostado muito...

Os prémios aumentaram a procura do seu restaurante?
Estamos sempre cheios. Servimos 20 refeições por serviço, portanto 40 por dia. Temos uma longa fila de espera. Para o fim-de-semana, estamos completos até Julho; durante a semana, temos uma lista de espera de dois meses ao jantar, e de um mês para o almoço.

Trabalha seis dias por semana e passa o domingo a criar novos pratos. Como consegue inspiração com tanto trabalho?
É complicado. Não consigo fazer tanto quanto gostaria. De segunda a sexta, passo 15 horas por dia na cozinha. É impossível desenvolver uma actividade criativa com tanto stresse e cansaço. Há dias em que saio do restaurante às 3h da manhã, chego a casa, tomo um duche, como, vou dormir às 4h30 e às 9h estou outra vez no DiverXo. Por isso escolhi os domingos para criar: o restaurante está fechado, eu estou relaxado e sou capaz de estar seis horas a ouvir música, e criar muito mais do que no resto da semana.

Em que se inspira para criar?
Tento ser o mais receptivo e aberto possível a todas as circunstâncias - não só em situações relacionadas com comida. Até agora, ao falar convosco, pode surgir a «chispa», como lhe chamo. A parte criativa da cozinha acaba por ser igual a outra actividade do género - tem de ser cultivada e trabalhada. Eu tenho a sorte de me ter sempre obrigado a fazer as coisas de modo diferente. Ao fim de dez anos, o processo surge-nos de forma natural e dinâmica. Normalmente, quando tenho uma ideia, sei logo se pode ser brilhante ou não. Se for mesmo boa, sente-se até alguma emoção. Pensa-se «isto é bom, e vou fazê-lo já».

Quantos pratos pode inventar num dia?
Vinte, mas isso não é real, porque desses, se calhar, só um será realmente bom. Durante a semana tenho algumas ideias {os azulejos da cozinha estão cheios de notas a marcador verde}, e ao domingo experimento duas. Ou uma só, de formas diferentes. Aqui no DiverXo, a cada duas semanas temos dois ou três pratos novos, com produtos da época. Tentamos usar produtos pouco comerciais... E estamos sempre a viajar.

Viaja muito?
Este ano fechamos um mês. Na Semana Santa, eu e a minha namorada, Ângela, fomos ao Peru; temos outra semana prevista para São Paulo, onde fomos convidados pelo chefe Alex Atala para conhecer o seu restaurante, D.O.M.; e no Verão vamos à Tailândia.

Viaja sempre com o trabalho em mente?                 
Sim, sempre. Fisicamente, é duro. Mas como cozinheiro, não aspiro a trabalhar menos de 12 horas. Também não quero, porque para desenvolver tudo o que tenho na cabeça esse é o tempo necessário. Costumo dizer que sou um doente do meu trabalho. Por exemplo, quando decidi fazer uns «Dim sum» diferentes, demorei muito tempo a perceber como poderia inovar. Isso custou-me quatro meses, e todos os dias a fazer «Dim sum», das nove da manhã às sete da tarde. Todos os dias a minha família comia «Dim sum».

Como começou o amor pela cozinha?
Tinha 12 anos quando fui ao primeiro restaurante gastronómico, com os meus pais. No Viridiana, em Madrid...

Onde trabalhou, aliás...
Sim, quase três anos. Era um restaurante muito divertido, diferente, com uma cozinha muito imaginativa. E a sensação de estar sentado àquela mesa, naquela idade, ficou-me gravada na memória. Tenho muito a imagem do cozinheiro como alguém que procura a surpresa, a imaginação, a diversão do comensal.

Lembra-se do que comeu no Viridiana?
Os meus pais levavam-me lá uma vez por mês, mas claro que me recordo. Lembro-me de um prato que o Abraham {Garcia, chefe do Viridiana} fazia: «massa bric com um salteado de carabineiros em molho de suas cabeças». Agora parece algo muito simples, mas há 16 anos era totalmente de vanguarda. Ninguém sabia o que era.

Então sabe desde os 12 anos que queria ser chefe?
Não. Aos 12, 13, 14 anos, não sonhas ser cozinheiro. Eu cozinhava em casa, fazia... lixo (risos), pratos verdadeiramente horríveis. Lembro-me, aos 14 anos, de fazer um pastel de lula... no micro-ondas. Ficou como uma chiclete, incomestível. Quando cozinhava em casa dos meus pais, escondia os livros de cozinha debaixo da mesa, e dizia-lhes que os pratos eram da minha autoria. As receitas não saíam muito bem, mas os meus pais davam valor. Quando entrei para a escola de hotelaria, aos 17 anos, idolatrava a figura do cozinheiro. Mas nessa altura, já se percebe que é um trabalho muito sacrificado, de muitas horas. É o que mais custa assumir. Eu dei-me conta que queria ser cozinheiro no meu primeiro dia da escola de hotelaria. Mas só aos 18, 19 anos assumi o meu ofício, quando percebi que tinha de trabalhar muitas horas, e que enquanto eu trabalhava, os meus amigos divertiam-se.

De algum modo, deve aos seus pais o despertar para a cozinha de autor?
Completamente. Os meus pais eram pessoas um pouco estranhas. A minha família é de classe média baixa, e o pouco dinheiro que tinha, gastava-o em idas àquele restaurante - que era caro -, e em produtos estranhos para cozinhar que se comprava em mercados e supermercados. Ora, o chefe cozinha o que vive, o que viveu desde pequeno. É claro que o facto de, com 12 anos, me levarem a comer comida viajada, de fusão, me marcou.

Quando é que começou a cozinhar em restaurantes?
No primeiro ano da escola de hotelaria trabalhei no Balzac, em Madrid, o primeiro restaurante de Andrés Madrigal {outro conceituado chefe da nova geração madrilena}. Depois, trabalhei no Viridiana, onde aprendi muito. Daí parti para um sítio mais pequeno, aos 23 anos, onde estive um ano como chefe de cozinha. Depois fui para Londres, onde fiquei quatro anos.

Porque escolheu Londres?
Porque Londres, nos dias de hoje, é a capital da cozinha multirracial no mundo, até em relação a Nova Iorque. Não digo que tenha os melhores restaurantes asiáticos, mas os seus conceitos de cozinha são dos mais brilhantes do mundo.

E foi à procura especificamente de restaurantes orientais ou aconteceu?
Fui à procura de algo diferente, de um tipo de gastronomia que não havia em mais lado nenhum. Em Madrid, a cozinha oriental não existe.

Porque é que escolheu gastronomia oriental?
Ao princípio, as pessoas não diziam que fazíamos comida oriental - falavam de gastronomia de fusão, mediterrânico-oriental. Na verdade, fazemos fusão com tudo. Tentamos não ter fronteiras. Temos muitas referências peruanas, muitas referências chinesas...

Diz que a cozinha peruana é a gastronomia de fusão por excelência. Porquê?
Conheço muitos peruanos, eles vêm ao meu restaurante, e também li muito sobre a gastronomia do Peru - e o que acontece é que este país tem muitos imigrantes japoneses, chineses e africanos, há muitos anos. Assim, surgiu uma cozinha de fusão. Não há fusão mais pura do que a que surge num país de forma espontânea, com as sucessivas gerações de imigrantes. Além disso, o Peru tem a cozinha chifa, uma fusão entre a cozinha chinesa e a peruana, que é já uma corrente assente, a cozinha nikkei (peruana + japonesa) e a afro-peruana (africana + peruana). Além da própria cozinha peruana, claro.

Tem algum prato com influências peruanas na ementa do DiverXo?
Sim, vários. Temos um aperitivo de rebentos de soja com uma vinagreta de ají (alho), um molho peruano; e temos um «guisado-sudado» catalão-peruano.

Como foi a experiência em Londres? Trabalhou em restaurantes muito conceituados, como o Nobu (cozinha nikkei) e o Hakkasan (cozinha chinesa).
Antes ainda, trabalhei num restaurante francês, com uma estrela Michelin. Depois, fiz um estágio de um mês no restaurante tailandês Nam - conceptualmente, o restaurante mais avançado do mundo, com uma estrela Michelin.

Porque é que decidiu voltar, passados quatro anos?
Para criar o DiverXo.

Já tinha a ideia na cabeça?
Sim. Eu sabia que queria fazer algo de diferente.

E o famoso molho Xo, que faz parte do sucesso da casa, também lhe veio de imediato?
Não. Um dia, a trabalhar no Hakkasan, estava a fazer um molho de que gostava muito, mas ao qual faltava algo para ficar ainda melhor. E foi então que achei os ingredientes para tornar a mistura perfeita.

O DiverXo tem 11 meses. Porque escolheu este bairro, um pouco periférico em relação ao centro de Madrid?
Por motivos de dinheiro. O restaurante é meu e de Ângela. Eu vendi o meu apartamento para poder comprar o DiverXo. Comprei-o quando tinha 18 anos e fui viver sozinho; depois aluguei-o, enquanto estive em Londres; e ao regressar vendi-o para investir, e voltei a casa dos meus pais... Agora divido o quarto com o meu irmão, de 31 anos...

Como escolhe o seu pessoal?
O requisito básico, antes de ser bom profissional, é que seja boa pessoa. Temos um óptimo ambiente de trabalho, o que não é comum nos restaurantes gastronómicos. Sou uma pessoa extrovertida, muito alegre, e não quero que alguém aqui seja insultado ou que lhe faltem ao respeito. Toda a equipa de DiverXo está muito comprometida com o restaurante.

Pensa crescer, expandir?
Não sei, é complicado. Não quero sócios capitalistas, que alterem a minha forma de funcionar. Em DiverXo faço o que quero. Se só quero fazer 20 refeições, faço e ninguém tem nada a dizer. E por enquanto não temos dinheiro para mudar de sítio.

Que personalidades já cá vieram?
Penélope Cruz, Maribel Verdu, a vice-presidente do governo espanhol... Homens de negócios muito importantes ou chefes famosos, como Ferran Adriá ou Santi Santamaria...

Que lhe disse Adriá no fim da refeição?
Gostou muito, disse que tinha sido das melhores comidas que provou em Madrid. Acha que DiverXo tem um estilo muito pessoal, uma cozinha muito criativa e imaginativa. Mas quase não falámos de comida. Estivemos a conversar até às 5h da manhã.

Já foi ao famoso El Bulli, de Adriá?
Não, ainda não. Nem conhecia Ferran. Irei ao El Bulli agora, em Agosto.

Fala-se muito de uma nova geração de chefes espanhóis que ganha força, da Nuova Cocina. Será que a Nuova Cocina vai destronar a Nouvelle Cuisine?
Já o fez. Até há pouco, Paul Bocuse, Alain Ducasse, eram quem marcava a gastronomia mundial. Agora, quem marca essa agenda é Adriá. Em qualquer parte do mundo, todos conhecem Ferran, todos conhecem El Bulli - não há cozinha como a do Bulli, tão diferente, tão pessoal, é quase como um teatro... Penso que, nos dias que correm, não há gastronomia de tão alto nível como em Espanha - o país tem seis ou sete restaurantes entre os 10 melhores do mundo.

Qual é a sua opinião da cozinha molecular, a invasão da Física na cozinha?
Em Espanha, os cozinheiros jovens têm um problema. Como existem esses seis ou sete cozinheiros muito bons, é muito fácil - e perigoso - deixares-te invadir pela cozinha que eles fazem. Porque é que o DiverXo teve tanto sucesso em tão pouco tempo? Porque faz uma cozinha muito pessoal - e diferente da de Ferran Adriá, Juan Roca, Martín Berasategui... O mais difícil nos dias de hoje é ter uma cozinha pessoal. Para mim, a cozinha molecular está muito bem, mas não é a minha aposta.

Viu o filme «Ratatouille»?
Sim. Gostei muito. Diria mesmo que é o melhor filme de gastronomia de sempre.

De que parte do filme gostou mais?
Da do crítico. A cena de quando prova o «ratatouille», o leva à boca, e a cabeça voa para outro lugar, lembra-se de algo, e cai-lhe uma lágrima.

Se tivesse um filho, acha que ele teria um palato mais apurado?
Certamente. Chato como sou, deveria passar o tempo todo comigo na cozinha, a comer. Um dia que tenha um filho, comerá de tudo, desde pequeno.


 

 

     

 

A jovem equipa do DiverXo, encabeçada por David Muñoz e a namorada, Ângela, chefe de sala

Em cima da chaminé, Ratatouille

 

Ideias rabiscadas nos azulejos da cozinha

 

As três opções na ementa

 

O humor, nos pormenores

 

A pequena cozinha é partilhada em permanência por quatro pessoas, das oito que constituem a equipa. Para Muñoz, o bom ambiente é fundamental

 

«Dumpling» de lulas em sopa de chalota com medula de vaca gratinada


Raia ao carvão com molho Xo

‘Dim Sum’ de tortilla a vapor com ovo de codorniz e raspa de trufa preta