ÚNICA No. 1668 - 16 Outubro 2004

A arte de bem dizer

Germana Tânger gostaria de ter sido actriz. Acabou por fazer vida ensinando gerações de actores a declamar. Aos 84 anos, lança um CD de poesia dita.


Texto de Katya Delimbeuf
Fotografias actuais de Jorge Simão

É provavelmente, a nossa «diseuse» mais antiga. Maria Germana Tânger, 84 anos, passou a vida na companhia de Fernando Pessoa - das suas palavras, pelo menos. A Ode Marítima não tem segredos para ela. A maior parte do seu tempo foi dedicado a interpretar poesia, a declamar, a ensinar a arte da dicção. Lançada por Almada Negreiros, de quem foi amiga, privou com Sophia de Mello Breyner, Sarah Afonso, Vieira da Silva, Arpad Szenes, Miguel Torga, José Régio, Raul Lino, Urbano Tavares Rodrigues, entre outros. Almoçava todas as sextas-feiras com o primo, Egas Moniz. Professora de dicção no Conservatório durante 25 anos, trabalhou na televisão e viajou pelo país, dando a conhecer os poetas. Retirada dos palcos desde 1999, Germana lança agora, aos 84 anos, um CD de poesia dita, de Almada Negreiros, Sá Carneiro e Pessoa.

Numa das paredes da casa onde vive há 30 anos, no Chiado, um quadro reza «Para a Germana» - assinado: Almada. Maria Germana Tânger - «Totas» para os amigos - lembra-se como se fosse ontem da noite em que foi pela primeira vez a casa do pintor Almada Negreiros. O ano era 1948 e ela estava «muito encolhida». «Perante aqueles génios, achei que não devia abrir a boca», explica. Mas, a dada altura, o anfitrião virou-se para ela, interpelando-a: «Ouvi dizer que diz uns versos. Gostava de a ouvir...» De pernas a tremer, Germana disse «O Corvo», de Edgar Poe, traduzido por Fernando Pessoa. A coisa deve ter corrido bem, porque a partir daí iniciou-se uma carreira e um vício: declamar poesia. A partir daí, o (futuro) amigo chamava-a para tudo: lançamentos de livros, inaugurações... «Foi o Almada que me lançou», diz, sem hesitar.
Desde então, Germana não fez outra coisa senão declamar e ensinar a arte de bem dizer. Professora do Curso Especial de Dicção do Conservatório durante 25 anos, por ela passaram gerações de actores que ainda hoje continuam seus amigos. João Grosso, Margarida Marinho, Alexandra Lencastre, Ana Támen, João Lagarto, Vítor de Sousa são apenas alguns. «Era engraçado, porque era um curso em que não se marcavam faltas, mas ninguém faltava», comenta. Germana ensinava aquilo que tinha aprendido em Paris, durante dois anos - o método George Leroy, que se baseia em vários passos (descontracção, respiração, articulação e colocação de voz). Para dar musicalidade às palavras, é preciso primeiro saber pronunciar bem, explica. A musicalidade é dada pela vogais, a nitidez pelas consoantes. É todo um trabalho que tem que vir com a respiração. Hoje, entristece-a ligar a televisão e ouvir os actores e apresentadores falarem tão mal.

Em Paris, estagiou na Comédie Française e no Teatro Nacional Popular (TNP). Foi lá que conheceu Vieira da Silva e Arpad Szenes. Convivia mais com ele que com ela, recorda. «Ela quase não saía de casa, trabalhava até que houvesse sol». E foi também na capital francesa que o presidente da RTP a convidou para trabalhar. Germana ficou muito aflita «porque não tinha um par de meias decente para vestir», e decidiu ir à Berlitz pedir uma tradução, para ter dinheiro para as comprar.
De 1965 a 1967, Germana apresentou programas infantis - e aí divulgou, por exemplo, A Menina do Mar, de Sophia de Mello Breyner. Recorda-se perfeitamente de a ter encontrado certa vez no Cinema Império e dela lhe contar uma história que tinha inventado para os filhos. «Era a Menina do Mar...», lembra Germana. «E eu disse-lhe: escreve isso, que eu levo para dizer na televisão... E assim foi». Esteve mais dois anos na RTP, a fazer a «Ronda Poética», um programa em directo em que declamou quase todos os autores portugueses. Mas, confessa, teve sempre um carinho especial pelos modernos: Cesário Verde, Antero de Quental, Fernando Pessoa, Gomes Leal, António Feijó... «Se tivesse que escolher um poema, seria talvez ‘A Noite Antiquíssima’, de Álvaro de Campos», diz, a custo.

Na verdade, o sonho de Maria Germana era ser actriz. Quando disse à mãe, esta não a proibiu, mas chorou durante dois dias. Matriculou-se em Letras para cursar Teatro, mas acabou a aprender romeno. Durante um ano. A passagem pela Faculdade de Letras seria no entanto fundamental, já que foi lá que conheceu o futuro marido, Manuel Tânger, primeiro director do Teatro Moderno. Foi ele que a introduziu na área da cultura. «Eu gostava de praia, de dançar, de sair com os amigos. O meu marido detestava tudo isso. Gostava era de estar em casa, a estudar», diz ela. Com ele foi para Poitiers e Paris, onde tirou o curso de dicção, e viveu no Brasil, em 1967, onde o marido foi conselheiro cultural. Morreu em 1975, cônsul de Espanha.


UMA RUA COM O SEU NOME
Germana teve dois filhos e tem três netos. Vive sozinha. Tem medo do escuro. Recentemente, em 1999, o ano em que abandonou os palcos, foi condecorada com a ordem de Cavaleira do Infante D. Henrique. Em Sintra, deram-lhe o nome de uma rua, por conta das iniciativas culturais que ajudou a desenvolver ali. Hoje, mais limitada a nível motor, sai de vez em quando para dar a sua volta, que inclui sempre a passagem pela Livraria Sá da Costa, a Brasileira, o S. Luiz, mesmo ali ao lado... «Sou uma sobrevivente estúpida», diz. Nas escadas, uma cadeira movida a electricidade, prenda de amigos, ajuda-a a ela e aos seus convidados a eliminarem as barreiras da idade. Utiliza-a muito. Aliás, costuma dizer, em tom jocoso: «Quando eu morrer, se for para o Inferno, este há-de ter escadas».


     

 


Uma casa cheia de recordações, no Chiado, coração de Lisboa, onde vive há 30 anos. Fez amizade com alguns dos mais ilustres das artes portuguesas do século passado. Agora, Germana já sai pouco à rua


Interpretar poesia foi a sua vida: com Margarida Marinho, a 11 de Novembro de 1999, data da sua despedida artística no Teatro da Trindade


Numa das emissões de «Ronda Poética», da RTP, programa onde leu vasta gama de autores portugueses