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ÚNICA N. 1604 26 Julho 2003
Ainda não sou
actor
Aos 25 anos, Nuno Lopes diz querer começar a ser actor daqui
a dez. Perfeccionista, obsessivo, humilde e sério, vive e respira
para representar. A novela «Esperança», da Globo,
deu-lhe uma visibilidade a que não estava, e não está,
habituado: «Escolhi ser actor, não escolhi ser popular»
Entrevista de Ana
Soromenho e Katya Delimbeuf
Fotografias actuais de António Pedro Ferreira
Voltou há três meses do Brasil, onde esteve durante quase
um ano a trabalhar com a Globo. Como foi o «regresso»
a Lisboa?
Ainda estou a aterrar.Quando cheguei ao Brasil percebi exactamente
como somos diferentes. Pensamos muito na vida, somos melancólicos
por natureza e, talvez, mais verdadeiros nas relações.
Agora está outra vez a trabalhar com a Cornucópia, a
representar «Tito Andrónico» no Teatro Nacional.
Depois da experiência da novela, sentiu que tinha de voltar
ao teatro?
Sim. Para mim, a Cornucópia foi sempre a grande família.
O Luís Miguel (Cintra) é uma espécie de pai e
a Cristina Reis uma mãe. Foi aí que tudo começou
quando ainda estava no Conservatório.
Mas, para um actor de teatro que cresceu na Cornucópia, fazer
novela não foi uma concessão?
Não sou nada fundamentalista. Há lugar e espaço
para tudo. Deve-se é tentar fazer com qualidade. Não
tenho nada contra as novelas nem contra a televisão de um modo
geral. Mas sou contra alguns programas. O «Big Brother»,
por exemplo
Foi um dos protagonistas mais populares de «Esperança»,
a telenovela da Globo que, no ano passado, ocupou o horário
nobre da SIC. Como aconteceu a ida para o Brasil?
Convidaram-me para um «casting». Nunca me passou pela
cabeça ir. Fiz a primeira prova e, passadas três semanas,
ligaram-me a dizer que tinha sido seleccionado para outro «casting».
Já era uma coisa mais séria. Éramos só
seis e percebi que tinha possibilidades. Quando fui escolhido fiquei
feliz. Um mês e três semanas depois já estava no
Rio de Janeiro.
Começou logo a trabalhar?
A sério, duas semanas depois de ter chegado. Nos primeiros
tempos, foi maravilhoso. Era tudo novo, uma cidade fantástica,
uma cultura completamente diferente. Praia, calor... Conheci a Globo
e a cidade cenográfica, que é uma coisa incrível.
Parecia que estava em Hollywood. Aquilo era gigante, tinham construído
uma cidade de época onde, além dos «décors»,
até os objectos eram São Paulo dos anos 30. Fui conhecer
o cenário com a Maria Fernanda Cândido e com a Laura
Cardoso - que já tem sessenta anos e quarenta de carreira -
e ela desatou a chorar.
Como foi começar a trabalhar com actores brasileiros?
Não estava tecnicamente pronto para fazer televisão
daquela maneira. Tinha mudado a minha vida toda para fazer aquilo
e, de repente, olhava para o trabalho dos primeiros episódios
e não gostava nada do que via. Só pensava: «Eu
não existo!»
Contornou a situação?
Percebi os meus erros e corrigi-os. Um deles era particularmente difícil
de resolver, o sotaque de Portugal. Falamos muito mais rápido
e baixo. Eu representava com pessoas que falavam muito alto e lentamente.
De cada vez que eu falava era como se estivesse noutra novela! Estava
a fazer uma cena, de repente, abria a boca: «Ai, estraguei tudo...»
Tinha constantemente os técnicos a chatearem-me, porque não
se ouvia nem se percebia o que eu dizia. Nos primeiros tempos facilitei
demais. Comecei a falar de uma forma muito pausada e muito alta
De tal maneira que comecei a sentir que aquilo não era verdade.
E...
...arranjei um meio termo. Fiz uma coisa que me custou horrores de
horas. Pegava no texto todos os dias e traduzia para português.
Depois traduzianovamente para um português que eles entendessem.
A novela tratava de imigração e das várias culturas
que existiam em São Paulo nos anos 30. Eu ia ser o representante
de Portugal, e por isso, iria falar português de Portugal, percebessem
ou não. Esta foi a minha maior dificuldade.
Como foi fazer o José Manuel, o «Morruga»?
Muito engraçado. Eu era um herói português, o
que não é nada comum no Brasil. Penso que muito do sucesso
do personagem veio daí. Acho que contribuiu para a mudança
do estereótipo do português. A novela das oito é
a de maior audiência, o Brasil tem uma percentagem altíssima
de analfabetos, portanto aquilo é a escola de muita gente.
E o facto de verem um português como um ser nobre e romântico
influenciou a opinião das pessoas.
O José Manuel era um personagem muito apaixonado, muito intenso.
De que modo se transmite essa intensidade e se evita o envolvimento?
Não se evita. Tem-se ou não. No meu caso e da Maria
Fernanda Cândido (Nina), não tivemos. Mas se acontecesse...
Nesta profissão, as pessoas tocam-se, beijam-se. No Brasil
dá-se o beijo técnico. Felizmente cá não
é assim...
Felizmente, porquê?
Porque prejudica. No momento é tudo verdade, está-se
apaixonadíssimo, e depois, quando há a cena do beijo,
temos de nos lembrar que não podemos pôr a língua...
Para mim, fazer uma cena de amor e beijar uma pessoa é igual
a dar um estalo. É uma cena, é fingir um sentimento.
E é isso que é divertido na profissão de actor:
é uma brincadeira, como os miúdos porem uma coroa na
cabeça e dizerem «Eu sou o Rei. Mata-me».
Teve muito sucesso na novela «Esperança». Foi perseguido
e assediado. Reagiu muito mal a essa parte, não foi?
Foi uma violência. De repente, toda a gente me conhecia. Eu
entrava num restaurante, calavam-se todos. Os brasileiros não
são como os portugueses, que têm um certo pudor. Mal
reconhecem alguém vêm logo dar um abraço, tirar
uma foto, pedir um autógrafo.
Isso atrapalhava-o?
Atrapalhava. Eu gosto de estar no meu cantinho e esta exposição
prejudicava-me imenso. Gosto de ser observador mais do que ser observado.
Às tantas teve de andar com guarda-costas.
Só quando saía do Rio ou quando era convidado para eventos
nos quais as pessoas sabiam que eu ia estar lá.
Era assim tão complicado?
Era atacado, literalmente. Uma vez fui a uma sessão de autógrafos,
em São Paulo, e quando cheguei estavam centenas de pessoas
à minha espera! Arranjaram-me cinco seguranças, e mesmo
assim não foram suficientes! Fui atacado, arranhado... Para
eles, verem-me a mim, um actor da novela das oito, é como para
nós ver a Madonna... Quando chegava a um lugar no interior,
estavam milhares de pessoas à minha espera, aos gritos: «Morruga!»
Tipo Beatles! Esgatanhavam-se por um autógrafo, para me tocarem,
ou para tirarem um bocado de cabelo - «Um cachinho!!!»
Recebeu muitas cartas de fãs?
Quatrocentas
quinhentas
Ainda tenho umas por ler.
Respondeu a alguma?
Não. Acho que não se deve incentivar. Mas o que me fazia
mesmo confusão era serem de pessoas completamente desfasadas
da realidade. Achavam que eu era realmente o personagem, que era um
príncipe riquíssimo e pediam-me coisas
desde rins
a dinheiro. Ou então, aquelas cartas de fãs, com 50
páginas a dizer «amo-te».
O que lhes fez?
Guardei-as todas.
O seu personagem, inicialmente secundário, acabou por ter uma
dimensão muito maior do que esperava.
No Brasil, as audiências são realmente importantes. A
Globo faz reuniões de grupo com pessoas de várias classes
sociais para discutir a novela. Percebe quais são as personagens
de que gostam mais e o que acham que deveria acontecer... Na primeira
reunião, no episódio 40, percebeu-se que nós
éramos o casal favorito.
Essa experiência foi importante para perceber que se quiser
ser um actor conhecido isso vai condicionar a sua vida?
Foi. Não sei se o quero ser. Costumo dizer que escolhi ser
actor, não escolhi ser popular. Quando as pessoas me perguntam
se mudei com a fama, eu respondo: «Tens de mudar! Se não
mudas... morres!»
Quando é que escolheu ser actor?
No 9º ano, fui ver a minha irmã dançar «ballet»,
num sarau no Centro Cultural de Benfica, e apareceram também
os alunos de teatro do António Feio. Vi a encenação
e gostei imenso... Tinha 14 anos. Inscrevi-me no curso, comecei a
perceber que aquilo tinha sentido para o que eu queria fazer na vida.
Sempre fui uma criança muito tímida, preferia observar
em vez de agir, e não tinha muitos amigos. As aulas de teatro
eram o momento em que me divertia mais e onde me sentia realmente
à vontade. Gostava de estar com aquelas pessoas, de brincar
com elas. Para mim, representar tem muito a ver com isso. Ainda hoje,
é o que me faz fazer teatro. Não acredito que os personagens
sejam uma coisa diferente de nós. São sempre a nossa
visão. É uma assinatura e eu gosto que seja assim. É
uma forma de comunicação extrema. E é uma espécie
de refúgio.
Depois de ter feito o curso com António Feio, o seu primeiro
trabalho foi no Teatro da Cornucópia. Como é que isso
aconteceu?
Entrei para o Conservatório e, no final do terceiro trimestre,
tínhamos a apresentação de um exercício.
O Luís Miguel Cintra foi ver, para escolher actores para um
espectáculo. Ia fazer os Sete Infantes de Lara e precisava
de quatro infantes. Eu e o Duarte (Guimarães) fomos escolhidos.
Já tinha ouvido falar da Cornucópia?
Era a minha companhia preferida.
Ele disse-lhe naquele momento que o tinha escolhido?
Não. Ligou-me para casa, disse que era o Luís Miguel
Cintra. Pensei que fosse alguma brincadeira de mau-gosto. Perguntou-me
se eu estava interessado em fazer um espectáculo. Respondi:
«Claro que sim» e tentei soar o mais profissional possível
e não demonstrar a minha alegria nem me pôr aos berros
(risos).
Para um miúdo cujo sonho era fazer teatro, entrar numa das
salas com maior «peso» no país, logo no primeiro
ano do Conservatório... Teve consciência da sorte que
tinha?
Tive. Nessa primeira peça, estava muito aflito, tímido
e com um medo absurdo, gigante, de errar. Não sabia nada.
Mas, como correu, afinal?
Muito bem, mas houve um pequeno «desastre». Na altura,
eu estava simultaneamente com o Conservatório e quase não
dormia. Durante um ensaio tive um problema de falta de açúcar
no sangue, desmaiei e parti o nariz. No dia seguinte, vivi um dos
piores momentos da minha vida. Tive de parar o espectáculo
a meio porque estava a desmaiar outra vez. Não tinha como fugir,
o cenário era uma arena e não havia bastidores. Preferi
parar do que desmaiar novamente em frente a toda a gente (risos).
É por isso que ainda hoje não entra em cena sem tomar
um pacote de açúcar?
Sim. Raramente me esqueço e, quando acontece, entro em pânico.
A seguir a essa primeira peça, continuei a trabalhar com a
Cornucópia. Graças a isso, chumbei no Conservatório
várias vezes. Deixei de me preocupar com o diploma.
Durante esse tempo, a sua vida passou a girar sempre à volta
do teatro?
Sim. Era maravilhoso porque a parte favorita do meu dia passou a ser
o dia todo. Aluguei uma casa no Bairro Alto, enquanto estive nessa
loucura de entrar nas aulas às oito da manhã, sair do
teatro à meia-noite e ainda ir estudar. Vivi assim durante
um ano e meio.
Utilizou o seu curso como apoio profissional...
Nunca me preocuparam as notas. Era mais importante se o trimestre
com os professores Carlos Pessoa, João Mota e Caprea me tinha
feito evoluir como actor. Aliás, eu dizia sempre: «Daqui
a dez anos, quero começar a ser actor»...
Portanto, ainda não é actor.
Ainda não (risos). A minha formação não
está acabada. Aliás, acabada não vai estar nunca,
e ainda bem.
Entretanto também fez televisão.
Sou um admirador incondicional da Maria Rueff e fui fazer o «casting»
para o «Programa da Maria». Estávamos a entrar
na fase em que surgiram os «Big Brothers» e os «Bares
da TV». Interessava-me mostrar às pessoas que se pode
fazer televisão de outra maneira. Nunca pensei ser escolhido
para o elenco fixo. Foi muito bom.
A seguir trabalhou com Herman.
Ele viu-me, gostou do meu trabalho, chamou-me.
Como foi a experiência?
Óptima. Cresci a imitar o Herman e o seu humor. Gostava imenso
do «Tal Canal» - adorava o personagem do «cameraman»
açoriano - e dos especiais de Fim de Ano.
Nunca chegou a fazer directos. Porquê?
É esta coisa do perfeccionismo. Faz-me muita confusão,
os directos são sempre menos perfeitos do que quando se grava.
O teatro também é um directo
É um directo controlado. Com dois meses de ensaio. Faz toda
a diferença.
Mas a experiência do descontrolo também pode ser importante.
Pode. Mas eu não me sinto mal assim. Sou muito sério.
Esta profissão é uma coisa muito séria para mim.
E vejo-a muitas vezes ser maltratada.
Não descontrai?
Acho que não é a minha função. As coisas
sobre as quais normalmente me apetece falar são sérias.
E quando me apetece criticar alguma coisa é para ver se melhora.
Há um lado político na escolha do trabalho. Para mim,
a arte também é política.
Trabalhou muito a comédia. Gosta de representar vários
géneros?
Acho fundamental. O mais engraçado nesta profissão é
não ser funcionalismo público, uma coisa todos os dias
igual.
............................
Nuno Lopes
Nascimento: 6 de Maio de 1978, em Lisboa
Infância: passada na Venda Nova, arredores
de Lisboa. Sonhava vir a ser um novo Cousteau
Escola: consideravam-no o estudioso e o maluco da
turma. Era muito tímido e distraído
Características, segundo o próprio:
perfeccionista, sério, responsável, humilde
Actividade profissional: trabalhou com Luís Miguel Cintra,
António Pires, José Álvaro Morais, Jorge Silva
Melo, Maria Rueff, Herman José e vários actores brasileiros
em telenovelas da TV Globo
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Na «Entrada de
Palhaços», do encenador António Pires
Na adolescência,
a guitarra foi a primeira forma de expressão (à esquerda
na foto)
No «Programa da
Maria»
Com Duarte Guimarães,
no Conservatório
Na rodagem da curta-metragem
«O Corneteiro Lopes»
Na novela «Esperança»,
com Maria Fernanda Cândido
Na rodagem da curta-metragem
«O Corneteiro Lopes»
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