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Ai mi amor

Buenos Aires. Noite de milonga.
Um ambiente especial.
Numa sala que é salão de baile, homens e mulheres ‘mayores’ - como aqui se diz, falando de pessoas de meia idade -, sentam-se em pequenas mesas, em torno da pista de dança, sozinhos ou aos pares.

Mulheres bonitas em estado semi-decadente.
Mulheres que já foram bonitas mostram mais pele do que eu gostaria de ver se uma delas fosse minha avó.

Os senhores vestem blazer e sapatos de camurça com um ligeiro tacão, As mulheres trazem as costas desnudas, elegantes mas sem a elasticidade da pele que o tempo cruelmente já levou.
A maioria vem de vestido. Todas, sem excepção, calçam elegantes saltos agulha.
Há senhoras de cabelo completamente branco, esticado, e mini-saias demasiado minis.
Mas o tango tem uma solenidade que se compadece, que não deixa o ambiente resvalar. Tem um travo a perfume francês antigo. Está talvez um bocadinho ultrapassado, mas é um clássico... E é lindo de ver bailar!

Sentada a uma mesa, de calças justas e botas (a única...!), a minha ‘vantagem competitiva’ é ser ainda uma ‘spring chicken’.
Sou claramente a mulher mais nova da sala.
A única ainda com um corpo firme.
Mas também a mais mal vestida.
E seguramente, a que menos dança...

O primeiro homem que me convida para dançar é um clássico – como o tango. Cinquentas, calça vincada pelo ferro de engomar, encaixa-me o nariz na bochecha e põe-me os braços na posição do “abraço milonguero”. Os dois torsos encostados, as pernas livres para ganharem vida própria...
O clássico não arriscou muito com a novata (também, pudera...), mas adivinhou, ao fim de uma dança, que eu tinha andado no ‘ballet’.
«Não fazes peso no par», explica.
Muito bem, penso. O que não se sabe com uma simples dança...

O segundo era um pintas. Cabelo puxado para trás com gel, caracóis a resvalarem pela nuca, arriscou mais.
Deu voltas e passos, guiando-me as pernas com as dele e quase empurrando-as, no encaixe próprio do tango, que o homem conduz.
Foi giro. Ainda tive direito a um piropo milonguero – faz parte, vem incluído na dança. «Hás de me apresentar ao escultor que te talhou», atira.
Até o elogio se enquadra no ambiente...
Tresandava a Farenheit - outro clássico.
De tal modo tresandava que uma hora mais tarde, quando cheguei a casa, ainda cheirava a Farenheit...

Há homens sozinhos, sentados em mesas, que ainda não dançaram. Vêm pelo gosto de ver. Vêm pelo tango. Aqui, o corpo interessa menos que o charme de saber dançar. Suspensórios, barrigas de cerveja e até capachinhos convivem bem com 60 anos mais ou menos disfarçados. Uma das vantagens do tango é que se pode dançar até caír da tripeça.. E provavelmente, é como o vinho do Porto: melhora com a idade.
Então se fôr em casal, há uma aura romântica e distinta que se apodera da imagem...

O terceiro homem que me convidou para dançar tinha passado a maior parte da noite sentado. Foi a dança mais difícil, porque improvisava e fazia-a depender do seu sentir da música, e dos repentes com que decidia empreendê-la. A mim, restava-me tentar acompanhar, adivinhar, quiçá rezar...
Demorou a começar, como se estivesse a absorver as notas, a embeber-se delas, para melhor bailar, e depois arrancou, sem sinal de aviso...
A dada altura, aperta-me muito e diz-me, quase em tome de gemido:
«Ai, mi amor...»

Fico na dúvida. Será vontade – ou desespero perante a minha falta de jeito?
Pergunto-me, alguns passos mais tarde, se não estará um pouco ébrio... E ao segundo suspiro fundo de «Ai mi amor», vindo dos confins da alma, decido que talvez esteja na altura de ir embora...
“Chicken” – poderiam chamar-me alguns, e com razão, porventura.
Mas há abismos do éter e da alma que todavia ainda não me apetece conhecer.
Mesmo quando envolvidos em passos de dança.



BA, Maio 2009

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TODOS OS TEXTOS © KATYA DELIMBEUF