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Sininho
- Em que pensas quando pensas em mim?
- Penso neste ocidental desapego que se apoderou do mundo em que vivemos.
Penso nos autismos, mecanismos e automatismos em que tão facilmente
entramos.
Nos mendigos que nos estendem a alma nas mãos, por entre sobrancelhas
cabisbaixas de resignação.
Nos tristes engravatados que diariamente rumam em procissão à
sua fila de trânsito matinal.
No homem sem perna que sobe com pressa as escadas, no cimo das quais o
espera a sua auto-estima.
Naquele ser barbado com quem me cruzo diariamente no emprego, que se esforça
no sorriso, mas cujo sorriso é impotente perante a tristeza no
olhar.
No sorriso genuíno do velho desdentado, cujas pregas dos olhos
se arrebitam e iluminam, à medida da abertura da boca.
- É nisso que pensas quando pensas em mim?
- Penso também que te amoro. E é o facto de te amorar, no
meio da confusão do mundo, que me mantém.
Penso, por fim, que gostava de ser a Sininho.
E de viver na amurada do tempo,
suspenso.
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© KATYA DELIMBEUF
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