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Quando emudece o mundo e ensurdece a alma

O homem não queria morrer sozinho.
Ao menos na hora da morte, não queria estar sozinho.
A morte escolhida tinha demasiada solenidade para ser feita sem testemunhas.
Por isso, queria decidir quando e onde. Como e com quem na assistência.
Veio-lhe então à ideia o metro. Pareceu-lhe um bom lugar – com testemunhas, a validarem a importância da vida humana, com cheiros de gente e calor de corpos (como há tanto tempo não conhecia).
Um mendigo aproximou-se – olhos rasos, sobrancelhas cabisbaixas, expressão fixada pelo hábito. Olhou para ele, com o olhar penetrante de quem quer mergulhar pela alma dentro, com os olhos dos que reconhecem quem já perdeu tudo, porque não têm, também eles, nada a perder. Não disse palavra. Apenas olhou, com ganas de lhe querer remirar a alma.
O homem desviou o olhar rapidamente, com medo de que aquele contacto com a preocupação de alguém o fizesse pensar duas vezes. Descongelar. Desautomatizar. Dar-se ao luxo de sentir. Com toda a dor a que isso dava direito.
Afastou-se.
Não queria pensar duas vezes.
No valor inexorável, inalterável, irrepetível da vida.
Aquilo soava-lhe a um discurso anti-aborto, daqueles grupos pró-vida que defendem o princípio a qualquer custo, sem querer saber mais, ouvir mais, preocupar-se com motivações ou vontades reais. Esquecendo que a qualidade devida deveria ser indissociável da vida humana.
Princípios abstractos – como se a vida fôsse isso. Como se não estivesse repleta de cavidades, que é preciso encher,
de dúvidas, que é preciso dissipar,
de falhas, que é preciso colmatar.
(Colmatar. Encher buracos, feito pedreiro. Abrir buracos. Construir casas. Mandar casas abaixo. Ter cuidado com as fundações. Barro ou aço. Gigante ou anão. Sólido ou frágil. Ou os dois.
Capaz de resistir a um abalo. O homem devia vir construído em estrutura anti-sísmica. Para saber resistir aos abalos.)
De excrementos, com que se enchem as cavidades.
Quando há dúvidas que não conseguimos tirar, aplanar, aplacar. Quando o martelo da dúvida não pára de bater nas paredes do nosso cérebro e se torna ensurdecedor. Quando emudece o mundo e ensurdece a alma.
Um barulho surdo, capaz de calar tudo em volta. De emudecer o mundo, de ensurdecer a alma. A vibração cadente, sincopada, ritmada do nosso cérebro, no período que antecede a explosão.
Agora, o homem podia escolher.
Finalmente podia escolher. Acabar com a explosão ou provocá-la. Por uma vez na vida, a decisão era dele. Podia decidir. Se queria ou não a deflagração. Se queria iniciar ou pôr termo. Se queria destruir ou criar.
Olhou em volta. Rostos fechados, olhos baixos, pregados nos sapatos ou no chão de granito, cor de cinza.
Pedintes, enjeitados, aleijados. Gente triste, gente velha, gente doente. Gente com olheiras. Olhos a gritarem: «Tirem-me daqui». Gente a caminho do trabalho com vontade de ir para casa.
Levou a mão ao bolso e pensou:
A seguir ao clarão, viria decerto a luz.
Tinha a certeza.


* inspirado nos acontecimentos no metro de Tóquio, em que um homem ateou fogo a várias carruagens, porque não queria morrer sozinho. Curiosamente, matou várias dezenas de pessoas, mas escapou com vida.

 

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TODOS OS TEXTOS © KATYA DELIMBEUF