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O intervalo
entre duas cerejas
Margarida preparou a habitual taça de cerejas e postou-se à
janela, como de costume. Não acendeu a luz, para não se
denunciar. Conhecia bem as malhas daquele enredo, as teias e a angústia
da espera. Depenicou uma a uma as cerejas. Ao senti-las comprimirem-se
entre os seus lábios, afogueava-se e corava. Aquele instante, a
altura em que as pálpebras e os lábios se fechavam em torno
da carne tenra, era o lugar do sonho. O tempo entre cada cereja.
No intervalo de duas cerejas, Margarida sonhava que ele chegara. Na verdade,
ninguém a mandava ir para ali postar-se, feita parva. Mas a sentinela
não descansava enquanto não vislumbrasse a silhueta dele,
a mirasse atentamente, até perceber se vinha trôpega ou sóbria,
feliz ou cabisbaixa.
Também lhe acontecia enganar-se. Crer vê-lo - de tanto querer
vê-lo -, correr para a sala e instalar-se, na cadeira de baloiço,
agarrar na revista, dobrada na página exacta onde a havia deixado,
ajeitar os ganchos no cabelo, inspirar fundo, assumir uma postura seráfica
e fazer de conta que nada daquilo era com ela.
Então esperava, pelo barulho da campaínha, o toque da campaínha.
Esperava, esperava, até que... Não, não tocara...
Quando achava que passara tempo a mais e ainda nada, os ombros e as sobrancelhas
esmoreciam, percebia o engano, e retomava o posto. Expectante.
A rua teimava, deserta. O semáforo passava de verde a amarelo e
de amarelo a vermelho sem que uma folha se mexesse, ao som do vento. Por
mais que ela olhasse, para cima e para baixo, nem sinais de carros nem
de vida.
Tantas noites de verão como esta, em que ia para a varanda, debaixo
de uma lua gorda, à mão de semear, e sofria por estar sozinha.
«Cheia de tudo para dar e sozinha...» A vida assim parecia
querer. Com o tempo, passou-lhe. A angústia foi-se atenuando e
Margarida aprendendo a conviver com a sua solidão. Habituou-se
a viver o dia minuto a minuto, hora a hora, sem fazer planos. Era assim
a vida. Pelo menos, a dela era.
....
Quando o dia amanheceu, Fernando não tinha chegado.
Era diferente a rua, com a luz do dia. A lua não iluminava da mesma
maneira. «Estás mais alta do que a lua, Margarida...»
Olhava-a de baixo, enquanto ela, em cima do paredão, na praia,
à noite. «Mais alta do que a lua...»
Olhou de novo a rua. Parecia que as noivas tinham passado por ali, a julgar
pelas flores que pintavam os dois lados da estrada a lilás. Como
se as esterlícias tivessem pedido ajuda ao vento para abençoar
os escolhidos, semeando pétalas à sua passagem. As árvores
enfileiravam-se, dos dois lados da estrada, as copas inclinavam-se, como
numa vénia a quem passava. Como naquele jogo de crianças
em que se erguem os braços em arco e se passa por baixo.
Margarida pôs os pés fora da janela. Era bom sentir o vento
passar por entre os dedos dos pés, como entre frinchas. De repente,
estava de novo na última carruagem do comboio. E enquanto o torpor
começava a apoderar-se das suas pálpebras, sentiu ainda
o arrepio da primeira vez. A primeira que ele lhe sussurrara ao ouvido,
no sossego antecessor do afã, a palavra prometida. «Amo-te».
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© KATYA DELIMBEUF
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