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Jogar à sardinha
na Madalena
É noite de festa na aldeia da Madalena, a 20 minutos
da capital, S. Tomé. Vinte minutos de estrada esburacada e escura,
mas nada que se compare ao que as nossas costas já sofreram
hoje, na ida e vinda a S. João de Angolares. Na praça
da vila, ao centro, um conjunto de homens faz-se músico por
uma noite e toca vários instrumentos, enquanto as pessoas dançam
alegres, em volta. Olho em redor. Somos os únicos brancos aqui,
mas não há ponta de hostilidade. Antes pelo contrário. É-se
imediatamente convidado a dançar. Um rapaz dirige-se a mim,
enlaça-me, encosta a cabeça dele à minha durante
toda a dança, e no fim da música resiste à separação,
a pedir segunda volta. Ao Bernardo calha uma senhora magra, mais velha,
nuns aparentes quarenta, que se aproxima de mansinho, sem dizer palavra,
os braços cruzados em frente ao peito, em sinal de abraço,
a pedir para dançar, como se quisesse alguém que a embale.
Não há como dizer não. É desarmante.
Já passa da meia-noite quando jingamos um pouco mais afastados
do local do crime, para nos safarmos dos “confrontos” da
dança a pares, mas usufruirmos da dança. Dois putos com
ar reguila e tímido olham para nós há minutos que
parecem horas, desertos para meter conversa. O olhar de curiosidade oscila
com o receio de fazer a primeira abordagem, mas passados minutos, perdem
a vergonha e aproximam-se. Começamos a falar. Têm 9 e 11
anos, mas parecem bem mais novos. O mais pequeno mostra os autocolantes
que tem colados nos braços, iguais aos “calquitos” que
decalcávamos no corpo quando tínhamos a idade deles. “Vêm
com as pastilhas”, explica. Brincam e metem-se connosco, perguntam-nos
se queremos aprender a dançar com eles, e a determinada altura
pegam-nos nas mãos e põem-nas na posição
de quem quer jogar à sardinha... À sardinha! Entre risos
e palmadas, acompanhadas de galhofa, recuamos todos, por momentos, aos
anos em que brincávamos de forma pura e desinteressada. Como irmãos
recém-criados, brincamos entre os carros estacionados.
Do jogo da sardinha passa-se
para o toque e o agarrar, tão naturais
aqui, e o mais velho já dança com o Bernardo, na maior
espontaneidade. Sem pensar, fazemos uma roda os quatro e pulamos e dançamos
feitos putos felizes, entre risos e tonterias. É assim que a Sílvia
nos encontra, passada a meia hora que começou por ser de seca, à espera
dela, e que acabou por ser, para nós, o momento da noite. Um momento
de encontro genuíno, desinteressado – ao contrário
de outros neste país, em que ficou sempre a dúvida de se
haveria um interesse em relação ao “branco” -
entre quatro pessoas, em que despontou um embrião de amizade. “Amizade” em
meia hora? Não sei se o nome tem de ser esse, mas também
sei que isso tão pouco importa. Importa o que senti, o que fez
com que o meu “miúdo da sardinha” se tivesse agarrado
a mim quando lhe disse que tínhamos de ir embora, abraçando-me à altura
que podia - a da minha barriga. A mesma sensação que fez
com que, um dia depois, uma crioulinha loura de Santa Catarina, uma região
muito pobre (ainda mais pobre) da zona norte se agarrasse a mim pelas
costas, como os bebés às mães, no dorso das quais
andam o tempo todo, e não me quisesse largar...
Querem atenção,
digo eu - basta-lhes um pouco de ternura e dão-se. Passei a
mão pelo cabelo crespo do miúdo,
que me respondeu com um beijo na barriga – a altura da boca dele.
Saí dali com a sensação de ter ganho a noite, e
com a quase certeza de que esta ligação e esta genuinidade
já só são possíveis em sítios como África,
onde o tempo é hoje e amanhã é horizonte demasiado
longínquo para deixar algo por dizer. Para quê esperar para
te pedir uma dança ou dar-te um beijo ou dizer-te que gosto de
ti? É por isso, precisamente, que eu sou tanto desta terra.
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© KATYA DELIMBEUF
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