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Indiferença, pecado capital

O desamor saiu à rua
Cruzou-se com as pessoas e não disse bom dia
Esqueceu-se de esperar pela velhota que corria para apanhar o autocarro
Passou por um monte de papelão e cobertores numa esquina e seguiu caminho
Não desligou o telefone e ouviu o ser humano que lhe batia no vidro a pedir uma moeda
Trancou as portas do carro, conquistado centímetro a centímetro pelo suor dos anos de trabalho,
E rumou a mais um dia de 14 horas.
Cruzou-se com peões de olhos cravados no chão
Faces sem expressão,
Anestesiadas,
Tristes
No piloto automático fez o caminho até à empresa,
Trabalhou até ser de noite,
Chegou a casa já passava das 23h.
Os miúdos dormem
A mulher cabeceia em frente ao televisor,
O grande hipnotizador.
Chega,
Senta-se
Não falam - para quê?
Nada de novo, já sabes como é que é a minha vida,
De trás para a frente
Sempre igual
As manobras do Jaime na empresa,
A ver se me lixa,
A querer roubar o crédito daquilo que é meu
A mulher vai-se deitar,
Amanhã acorda às 7h, tem de vestir os miúdos e levá-los à escola
Até amanhã.
Fica-se assim.
Que importa se não falaram,
Que importa se não houve tempo para o amor,
Sequer para o sexo,
Que importa se ele não reparou na blusa nova nem na sua ida ao cabelereiro
Que importa, se ela já sabe que a vida é assim,
Que a vida é isto,
Não pode ser só isto…
Será que é só isto?
Tem de se trabalhar para se comer,
É assim, ‘quem não trabuca não manduca’
Parece ouvir o marido em fundo a dizer
E tempo para a vida?
Tempo para o amor?
Tempo para o resto?
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Os anos passam, os dias esgotam-se,
Entre a fila de trânsito e as 14 horas de trabalho
Cada vez mais exigências em troca de cada vez menos dinheiro
Cada vez mais o dinheiro dá para cada vez menos
Os miúdos andam estranhos,
Parece que não os conheço,
Mal falam,
Passam o dia em frente àqueles videojogos estranhos donde ecoam tiros e disparos
‘Não te parece Maria?’
A Maria encolhe os ombros
Diz que não sabe bem
Tem o olhar baço
É capaz de ser dos comprimidos que toma às refeições
(Eu é que vi a caixa na mesinha de cabeceira, porque não tomo as refeições em casa, como é que eu poderia saber?)
A bem dizer, parece-me que também já não sei muito dela
Parece que há séculos que não conversamos
Há anos que não trocamos um olhar cúmplice,
Caramba, que disparate, não me consigo lembrar da última vez que trocamos uma gargalhada
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O tempo passa,
A vida passa,
Já não há tempo para o amor,
isso são lirismos do passado Maria
Não vês que tenho demasiadas preocupações na minha cabeça para me pôr agora a pensar em amor,
Era o que faltava,
Tenho mais que fazer,
tenho que me preocupar em ganhar o pão para esta casa
Não sejas mais um problema
Que problemas tenho eu de sobra
Ir a um psicólogo,
Fazer terapia conjugal?
Para quê?
Eu lá tenho tempo para isso?
Quanto muito tomo uns comprimidos,
iguais aos teus, olha!
Sempre se poupa qualquer coisa
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O tempo passa,
A vida passa
E um dia, no seu leito de morte,
O desamor lembra-se
Que se esqueceu de ser feliz.

 

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TODOS OS TEXTOS © KATYA DELIMBEUF