VIDAS Nº 1564 19 Outubro 2002

Os tempos do Liceu

O Liceu Francês celebra hoje 50 anos. Quando abriu, garantia uma educação mais aberta do que a do regime. Formou várias gerações, algumas ilustres.

Texto de Katya Delimbeuf

Há ainda quem seja do tempo em que o Liceu Francês era a École Française, ali no Pátio do Tijolo, ao Rato, onde ocupava os sumptuosos aposentos do Palácio Braamcamp. Depois, em 1952, instalou-se de armas e bagagens na Av. Duarte Pacheco, num tempo em que ainda não havia centro comercial das Amoreiras, e ali ergueu o complexo rosa velho. A maioria dos ex-alunos não esquece o porteiro, o sr. Figueiredo, as correrias no recreio e pelo pátio, as escapadelas ao anexo para dar os primeiros bafos nos primeiros cigarros ou os primeiros beijos nas primeiras namoradas. As bolas da «miss» - uma verdadeira instituição. E o ensino, que era diferente.

Ter andado no Liceu Francês antes ou depois do 25 de Abril de 1974 não tem, hoje em dia, o mesmo significado. No tempo da ditadura, o ensino do regime, cerceado a vários níveis, estava a anos-luz da educação internacional que o Charles Lepierre - então dividido entre secção portuguesa, francesa e franco-portuguesa - tinha a oferecer. A cultura francesa gozava de influência considerável, e estava associada ao espírito aberto e democrata do Aliado que saíra vencedor da Segunda Guerra Mundial. Foi por estas razões que, ainda Eduardo Ferro Rodrigues não tinha quatro anos e já os seus pais o tinham inscrito naquela que consideravam ser a escola mais progressista da altura. «O Liceu era uma ilha democrática num país de ditadura», lembra o actual secretário-geral do PS.

Andou na secção francesa até à 4ª classe - de tal forma que, «nessa altura, pensava em francês», recorda. Das memórias do liceu guarda sobretudo «a exigência, o rigor, a competitividade». Não era sem sacrifício que os pais o tinham - a ele e ao irmão Paulo, seis anos mais novo - no Liceu Francês. E por isso, Ferro lembra-se de muito cedo ter aprendido a lutar para se manter no posto: os prémios de excelência, alguns bastante sofridos, eram o compromisso que lhe garantia a isenção de propinas - à semelhança do sistema das bolsas de mérito. «Fui sempre bom aluno, mas também fui sempre instado a sê-lo». Aliás, admite que não pôs os filhos no Liceu «porque era muito caro».

Na memória ficam-lhe também os amigos - muitos dos quais mantém até hoje: Luís Neto, João Amorim, Augusto Mateus, João Soares, com quem partilhava a carrinha do colégio («a número oito»), Alberto Arons de Carvalho, com quem disputava campeonatos de matraquilhos nas festas de anos. Guarda também recordações das namoradas, «que foram algumas»: Rita Matos Chaves, Maria Gilberto, «depois umas Teresas, umas Conceições, umas Rosas Marias, uma Bárbara...», desfia. Reconhece que, se não tivesse feito o Liceu Francês - onde esteve 14 anos, de 1953 a 1967 -, provavelmente não seria a mesma pessoa. Continua a falar o idioma: «Ainda na semana passada, com Tony Blair, fiz uma introdução em inglês para explicar porque é que ia falar em francês...», graceja. Voltou ao Liceu apenas uma vez. Fez-lhe muita impressão entrar no ginásio: «Tudo parecia mais pequeno...»

Quando o cônsul de Portugal no Luxemburgo, Miguel Faria de Carvalho, entrou no Liceu Francês, em 1963, fê-lo porque o pai queria assegurar-lhe uma o pai queria assegurar-lhe uma educação mais alargada. «Além disso, na altura, o francês era a língua diplomática por excelência, o idioma das relações internacionais. Vivia-se no liceu, no pré 25 de Abril, um clima que nada tinha a ver com o ensino privado ou oficial. A democracia na prática, o multiculturalismo, a tolerância eram valores que nos eram incutidos quase subliminarmente... Era um ambiente único, um mundo à parte». O cônsul lembra-se bem do uniforme - «‘blazer’ azul, camisa azul clara, ‘pullover’ azul escuro, calças cinzentas, gravata à escolha» - assim como da loja onde se iam comprar as fardas. Ele, que experimentou os três sistemas - fez a pré-primária na secção francesa, a primária na franco-portuguesa e o restante na portuguesa -, reconhece que o sistema nacional estava mais atrasado: «Porque nós saíamos dali e íamos para o mundo português.» Já então se notava a ‘guerrinha de estimação’ entre as duas secções.

Quando se deu o 25 de Abril de 1974, Miguel Faria de Carvalho andava no Liceu. Lembra que alguns colegas desapareceram. «Uns entraram em pânico e fugiram para o Brasil, outros foram convidados a sair - o que prova que também havia pessoas ligadas ao partido único e ao regime que apostavamnuma educação mais liberal para os filhos e os tinham lá.» Aos sábados de manhã, havia aulas de Mocidade Portuguesa - «embora dadas numa perspectiva um bocadinho crítica», confessa. «Foi nas aulas de religião e moral que ouvi falar de censura pela primeira vez. Discutia-se abertamente a situação do país.» O cônsul recorda ainda que as famílias judias tinham dispensa das aulas ao sábado de manhã, por causa do Sabat - como acontecia com Eduardo e Miguel Ruah. Isso constitui para ele mais uma prova do espírito de tolerância que o Liceu praticava.

Rita Blanco não tem exactamente a mesma percepção da vivência do 25 de Abril no Liceu Francês. A actriz, que andou lá «a vida toda» - que andou lá «a vida toda» - de 1965 a 1982 -, considera que a Revolução dos Cravos passou ali praticamente despercebida. A escola esteve dois dias fechada, «e ainda fizemos uma greve, à porta da aula - porque víamos na televisão manifestações, liceus fechados - mas quando o ‘surveillant’ nos perguntou porque é que estávamos em greve, ninguém sabia. E entrámos todos para a sala». Também não era forçoso que algo mudasse ali, ressalva a actriz - afinal, estava-se em território francês e o liceu tinha sentido mais os efeitos do Maio de 1968 em França do que os do 25 de Abril em Portugal.

Rita considera que a maioria dos alunos do Liceu tinha uma situação financeira privilegiada. «A minha família era de esquerda, e ali não era bem assim. A maioria dos meninos eram ricos, chegavam de motorista, e às vezes eu era confrontada com algumas situações complicadas. Sinto que vivi num casulo. A vida ali não era difícil.» No entanto, a actriz é a primeira a afirmar que «amou» andar no Liceu Francês. De resto, tinha com ela praticamente toda a família: a mãe, que era (e é, ainda) lá professora, as primas, o irmão Pedro - que apresentou Leonor Silveira a Manoel de Oliveira e que teve como primeira namorada Inês de Medeiros. Como principal mais-valia do Liceu, destaca «a facilidade com que este nos prepara para estarmos à vontade em qualquer lado - pela diversidade de pessoas com as quais contactamos, filhos de diplomatas, gente aberta, que já viveu em vários países. Eu reconheço as pessoas que andaram no Liceu Francês», admite. «Por um lado, é um bocadinho elitista, por outro, é quentinho...», referindo-se ao conforto emocional de pertencer a uma grande família.

Inês de Medeiros entrou no Charles Lepierre em 1975, quando tinha sete anos. Foi para lá porque a mãe era uma antiga aluna, porque tinha antiga aluna, porque tinha começado o Liceu Francês em Viena e porque o período no nosso país - também a nível de ensino - era conturbado. A actriz e realizadora recorda que «todas as crianças discutiam política» e, apesar da tenra idade, «insultavam-se entre elas de fascistas ou de comunistas». Segundo ela, havia vários tipos de pessoas no Liceu: «Desde alunos de famílias muito conservadoras, que não queriam ter nada a ver com a revolução, até filhos de intelectuais de esquerda...» No entanto, a recordação mais importante que associa ao liceu é a experiência com o grupo de teatro - que tanto para ela como para a irmã se revelou decisiva. «Lembro-me do Philippe Friedman, o professor de filosofia que coordenava o grupo, ir lá a casa falar com a minha mãe, aconselhando a Maria a ir para Paris fazer estudos de teatro.» E assim foi. Inês recorda também «a relação de grande proximidade entre alunos e professores», alguns deles muito novos - vinham para escapar ao serviço militar - e «uma atitude perante a aprendizagem mais saudável, de prazer, por ser algo interactivo e criativo».

O teatro e a cave onde se ensaiava é também uma das recordações mais gratas de Clara Pinto Correia, que andou no Liceu de 1970 a 1975. Tira o Dedo do Croquete - assim se chamava o grupo fundado por ela e pelos amigos. É disso e «das intermináveis conversas sobre educação sexual, a guerra, as drogas - que começavam a aparecer naquela altura - e sobre viagens - andávamos muito à boleia» -, que recorda com mais saudade. Ela, que ainda usou uniforme - «uma saia cinzenta, camisa azul clarinha, ‘pullover’ azul escuro e uma capa azul, tipo ‘Florence Nightingale’». Participou no movimento contra as fardas - «havia liberdade para isso» -, e acabou por sair do Liceu a seguir ao 25 de Abril, porque «achava que os colegas eram todos de direita». Do ensino, afirma: «Éramos muito mais puxados que no ensino oficial. Tínhamos que trabalhar imenso, tínhamos óptimos professores, que exigiam muito de nós. Ficámos com uma boa base de dados, e com uma boa estrutura para raciocinar.»

Rosário Pinto Correia, a publicitária - que não esquece, até hoje, a reprimenda que levou «por andar a subir às árvores» - pôs lá as filhas, Carlota e Constança, dando assim continuidade à tradição familiar. Acha que a qualidade do ensino se mantém e destaca «o rigor, pelo lado positivo, e a dureza, pelo lado negativo». A irmã mais nova, Margarida, lembra-se bem das comparações a que esteve sujeita «por ser a quarta mana Pinto Correia». Nas memórias mais antigas guarda «o cheiro da fronha com que dormia a sesta, o cheiro das tintas e dos trabalhosmanuais». Mais tarde, depois de um período no ensino oficial, regressou a um liceu «mais conservador, com famílias tradicionais», onde se sentiu um pouco como «a carta fora do baralho».

O mesmo sentimento não teve Alexandra Abreu Loureiro - que andou no Liceu dos 4 aos 17 anos -, nem os seus pais e irmãos. Toda a família passou pelo Charles Lepierre. A jornalista costuma brincar e dizer que «uma das condições do pai no contrato de casamento foi que os filhos andassem no Liceu Francês». O que não constituiu qualquer problema, porque a mãe, Graça Viterbo - colega de carteira de Maria João Avillez - mantém «muito boas memórias» do Liceu. «Marcou-me para a vida, do ponto de vista da organização», assegura. Alexandra faz suas as palavras da mãe: «Muita disciplina, muita pontualidade - o Liceu é um investimento para toda a vida», afiança. «Há uma expressão que toda a gente que lá andou entende de certeza: ‘Introdução, desenvolvimento, conclusão’.»

Nenhum texto sobre o Liceu Francês estaria porventura completo se não mencionasse as «misses», invariavelmente citadas entre as melhores recordações. As «bolas da ‘miss’» - que ninguém de fora percebe o significado da expressão - eram as bolas de Berlim que duas senhoras vendiam, uma em cada extremidade do recreio. Antes do sistema ser misto, havia a «Miss das raparigas», do lado direito, e a «Miss dos rapazes», do outro. A origem do termo é desconhecida da maioria - até porque as misses, apesar de arrebatarem facilmente a faixa de «miss simpatia», não deviam assim tanto à beleza. Hoje, já só há uma «miss», a Ana Maria - a Tina e a Lídia, que atravessaram gerações, reformaram-se. Conta a actual «miss» em funções que tudo começou há 40 anos, «num concurso de beleza organizado pelo liceu, em que disputavam a ‘coroa’ três funcionárias - as duas ‘misses’ dos bolos e a dos cadernos - e que ganhou a mais feia - a dos cadernos». A partir daí, todos os vendedores ambulantes nas proximidades do liceu - homens inclusive - passaram a ser designados por «miss».

Alguns ilustres do Liceu

Jorge Braga de Macedo, ex-ministro das Finanças

Eduardo Ferro Rodrigues, secretário-geral do PS

José Barata Moura, reitor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

João Soares, ex-presidente da Câmara de Lisboa

Luís Nunes de Almeida, vice-presidente do Tribunal Constitucional

Miguel Faria de Carvalho, cônsul de Portugal no Luxemburgo

Augusto Mateus, ex-ministro da Economia

António Luís Neto, ex-presidente do ICEP

Alberto Arons de Carvalho, ex-secretário de Estado da Comunicação Social

Guy Villax, director da Hovione

Filipe de Botton, director da Logoplaste

Pedro Paixão, escritor e professor universitário

Isabel Alçada, escritora

Maria e Inês de Medeiros, actrizes e realizadoras

Rita Blanco, actriz

Leonor Silveira, actriz

Anne Fontaine, realizadora

     

 

Constança, Margarida, Clara, Rosário e Carlota Pinto Correia

Margarida com a sua turma

Rosário recebe um prémio de excelência

Clara recebe um prémio de excelência

Eduardo Ferro Rodrigues a receber um dos prémios de excelência que lhe asseguraram a permanência no Liceu

Cartão de aluno de Ferro Rodrigues, sem o qual ninguém podia sair

O cônsul de Portugal no Luxemburgo, Miguel Faria de Carvalho, no tempo em que se usava uniforme

O clã Viterbo Abreu Loureiro é outro dos exemplos de tradição familiar: Bruno, a mãe Graça, Alexandra, o pai Pedro e Gracinha. A educação no Liceu Francês era condição no contrato de casamento

Alexandra Abreu Loureiro

Rita Blanco a comer um gelado na «allée»

Rita Blanco numa sala do jardim de infância

Em cima, à direita, Inês de Medeiros. Para a actriz e realizadora, como para a irmã Maria, o grupo de teatro do Liceu foi decisivo no seu futuro

Sérgio Gulbenkian, tal como os irmãos, Marcos e Micael, frequentou o Liceu. O mais velho, Micael, chefiou o comité para abolir as fardas