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VIDAS Nº 1543 25 Maio 2002
O
espírito do leque
Veio
do Oriente, mas não é arte marcial: o Tenchi Tessen só procura a paz
interior.
Texto
de Katya Delimbeuf
Fotografias de Jorge Simão
A
placa, à entrada da quinta, perdida na Várzea de Sintra, anuncia o seu
nome: Ten-Chi, Céu-Terra. O verde impera. No jardim, uma ponte japonesa
e um lago repleto de nenúfares remetem-nos para o imaginário de um
quadro de Monet. Entramos no Dojo, «o lugar do aperfeiçoamento
do corpo e do espírito», nas palavras do mestre George Stobbaerts,
o criador do tenchi tessen, que aqui se pratica. A sala, ampla e
luminosa, com janelas corridas a toda a volta, parece uma extensão da
natureza, lá fora. O tecto é branco e fofo, como uma tenda de
casamento. Há tapetes de ginástica espalhados no chão, adivinha-se a
prática de actividades como o ioga. Ao fundo, um estrado de madeira
assume ares de altar, de onde emana uma luz amarela que dá calor e
envolvência ao espaço.
A aula está prestes a começar.
A professora concentra-se, sentada de frente para os alunos, alinhados
à ponta do tapete, em silêncio. Só se ouve o barulho dos pássaros.
Estão todos vestidos de branco, com um «akkama», uma longa túnica
atada à cintura, e «tabi» nos pés, umas meias brancas, vindas
especialmente do Japão. Os alunos inclinam-se para a frente em sinal de
respeito. O leque (tessen, em japonês), vermelho, está pousado à
frente deles, fechado. Ana, a instrutora, pega no seu devagar e põe-no
na posição vertical, em cima do tapete.
De repente, o som brusco do
abrir do leque quebra o silêncio. Um som rápido, sonoro. Dez
pinceladas de cor vermelha pintam um quadro à frente dos nossos olhos. «E...
recolher», diz Ana, enquanto puxa agilmente para si o tessen, com a
magia de dois dedos. Sonoro e violento ao abrir, célere e elegante a
fechar.
Os alunos seguem a
professora obedientemente. São uma dezena, incluindo Filomena, que
pratica na sua cadeira de rodas. O aquecimento começa com movimentos
mais físicos, que depois se vão tornando mais refinados. O único som
audível é o restolhar das túnicas, no vaivém dos alunos em cima do
tapete. Parece uma coreografia de um ballet moderno. Rodopiam todos,
sincronizados, primeiro sem tessen, depois com ele. Os gestos são rápidos,
com uma destreza de samurai.
A abertura do leque deve coincidir com as
expirações. A concentração de alguns é notória. Treina-se o
gesto-base, um movimento de ascensão, em espiral, do braço que segura
o leque e que depois se abre, energicamente. Parecem bruxinhas a
empunhar uma varinha de condão num qualquer feitiço. Só que, em vez
da varinha, é um leque.
Seguem-se os exercícios,
aos pares. Dois a dois, treinam-se movimentos com o tessen, em que «um
dá, o outro recebe; um é activo, o outro é passivo.» A diferença
nos papéis vê-se (e ouve-se) na força do movimento com que se abre o
leque. Como indicam as palavras Ten Chi, que significam Céu-Terra,
direcciona-se «um braço para o céu, outro para a terra».
A aula termina com a mesma introspecção com que começou, acompanhada
pelo chilrear dos pássaros no jardim onde, entretanto, já anoiteceu.
Filomena Viana é uma aluna
especial. Está numa cadeira de rodas desde que fez um ano e meio de
idade, por causa de um surto de poliomielite. É a única coisa que a
distingue dos restantes, até porque a vivacidade nos olhos castanhos,
na forma como fala, ou o fio de brilhantes que lhe adorna o cabelo muito
curto não deixam transparecer uma pessoa infeliz.
Filó, como lhe chamam,
trabalha na Biblioteca Municipal de Sintra, enquanto cursa Filosofia na
Faculdade de Letras, em Lisboa. Tem 41 anos, embora não pareça.
Praticou ioga durante sete, descobriu o tenchi tessen há quatro meses.
O que a atraiu? «O movimento, o leque, a estética.» O
que ganhou? «A nível físico, mais equilíbrio, melhor
respiração. A nível psicológico, mais abertura, mais segurança
emocional, menos instabilidade.»
Durante a aula, Filó adapta
os exercícios e os movimentos às suas diferenças. Onde os outros
rodopiam sobre si próprios, ela roda com a cadeira. Vai para o tapete e
sai de cima dele conforme os exercícios, que já conhece. Faz a dinâmica
de grupo com o seu par habitual.
Pilar Ramos, praticante de
tenchi há quatro anos, explica-nos o que, no seu entender, distingue
esta modalidade de outras: «Estou mais centrada, sem ser
egoisticamente. Estou mais comigo. Ganhei um maior conhecimento do meu
corpo, maior liberdade, mais serenidade.» Com 37 anos, esta psicóloga
nunca falta às aulas. Fez aikido e ioga antes de descobrir o tessen.
Considera que esta prática «é um caminho, onde o silêncio e
a escuta são muito importantes. Onde se vivencia o respeito de uns
pelos outros e não só se intelectualiza. Isto valoriza-nos, dá-nos
mais auto-estima, mais gosto de viver. Ficamos mais abertos e espontâneos.»
Ao invés do que se poderia
pensar, as origens do tenchi tessen não são remotas. A disciplina foi
criada em 1985 pelo belga Georges Stobbaerts, embora com óbvia inspiração
numa arte oriental milenar. Procurou sintetizar várias artes do
movimento que aprendeu no Japão e «fazer a ponte entre o
Oriente e o Ocidente», explica ele. «O tenchi é uma
forma de movimento com base na filosofia Zen, em que o leque substitui o
sabre». O objectivo é fazer a ligação entre Terra e Céu
simbolizada no leque, que vê como uma forma de expressão da não-violência.
«O leque ideal encontrei-o na China, em tecido encarnado, mais
leve do que o dos guerreiros samurais. A ideia inicial começou por ser
prolongar o gesto, o movimento da mão, mas o propósito está longe de
ser só esse.»
O tenchi tessen combina
respiração, movimento e som e permite «reencontrar sensações
de espaço, equilíbrio e paz interior», diz. «Não é um
desporto, porque não há competição, nem adversário - a não ser nós
próprios.» Porventura, o adversário mais difícil. «Uma
espécie de ioga dinâmico», resume.
É no escritório que
Georges nos recebe, entre estantes forradas a livros, sabres e leques
orientais, estampas japonesas e indianas. O incenso arde ao pé da
janela, por onde espreita uma buganvília cor-de-rosa. Apesar da formação
em Engenharia, Stobbaerts, de 62 anos, é professor de artes marciais
desde os 19. Reclama-se como o introdutor do ioga, aikido ou do iaido em
Portugal. Está no nosso país há mais de 30 anos, fez teatro, foi
professor no Conservatório e deu aulas em Cascais, antes de se mudar
para Sintra. A vivência não foi, no entanto, suficiente para disfarçar
o forte sotaque francês ou a utilização recorrente de palavras neste
idioma, que semeia ao longo da conversa.
A Portugal, a disciplina só
chegou em 1996. Sempre sem divulgação, começou por reunir duas
dezenas de adeptos, «gente do teatro e da dança», em
Cascais, onde foram dadas as primeiras aulas. Hoje, a prática de tenchi
tessen existe apenas em dois pontos: Alcântara e Várzea de Sintra.
A troco de 30 euros mensais
pode frequentar-se uma aula por semana. E o que procuram as pessoas que
fazem tenchi? «Uma dimensão interior de crescimento pessoal»,
garante Ana Oliveira, praticante há 19 anos, ex-aluna do mestre e
professora há dez. Com 49 anos bem conservados, a instrutora, de cabelo
louro curto e olhos claros, acredita que as principais diferenças do
tenchi tessen passam por «não ter a parte combativa das artes
marciais» e «possuir uma dimensão estética maior.»
Para ela, os únicos requisitos que os alunos têm de ter para
praticarem tenchi é «sensibilidade e gostarem do movimento.»
Claude Demoustier concorda.
Preside à Associação de Ten Chi Internacional, que existe há um ano
e abarca países como o Brasil, a Suíça e a Bélgica, onde antigos
alunos seus se encarregaram de assegurar a continuidade da prática.
Belga, de 69 anos (também dificilmente perceptíveis - o tenchi tessen
conservará?), alto, magro, cabelo louro com alguns laivos grisalhos,
descobriu a modalidade através de uma namorada que a praticava. «O
tenchi trouxe-me amizades, pessoas, ocupação, trabalho», diz
Claude, agora reformado. «Mais importante do que tudo isto,
trouxe-me paz interior». De facto, quem o vê seco e ágil dentro
das suas vestes brancas, a girar sobre si mesmo e a troçar da própria
idade, percebe que mal o tenchi não deve fazer.
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A
professora Ana exemplifica um dos movimentos
Filomena
treina na cadeira de rodas
Georges
Stobbaerts no escritório |
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