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VIDAS Nº 1545 8 Junho 2002
Jazzinta
É
pouco conhecida no nosso país, mas (en)canta em São Francisco. Jacinta
tem nome de pastorinha porque a voz é divinal.
Texto
de Katya Delimbeuf
Fotografias de António Pedro Ferreira
A
mãe deu-lhe o nome de Jacinta porque ela nasceu em Maio, no mês de Fátima
e da aparição dos três pastorinhos. Mas quando ela canta, a escolha
do nome faz sentido: Jacinta não é certamente uma pastorinha, mas não
deixa de ser divinal... Do alto do seu portentoso metro e oitenta, com
dois «monstros» azuis a saltarem-lhe da cara e uma cabeleira revolta
de caracóis louros, a cantora de jazz enfeitiça com a sua voz todos os
«marinheiros» que aportam na costa leste dos Estados Unidos, em São
Francisco. A exemplo de outros, Jacinta é menos conhecida no seu país
natal, Portugal, do que na terra das oportunidades. Mas veio até cá
para tentar consolidar uma carreira paralela no país que a viu crescer.
Hoje à noite ainda a pode «ouver», no Hotclube, em
Lisboa.
A voz é cheia, quente,
grave, mas atinge com a mesma facilidade os agudos. Jacinta, 31 anos, 16
dos quais de formação (e maturação) musical, tanto canta temas de
Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Billie Holiday, as suas referências de
jazz americanas, como música brasileira ou tradicional portuguesa. «A
minha voz dava para tudo. E isso era um problema. Era demasiado versátil
e não sabia exactamente que rumo tomar. Agora, acho que estou a
encontrar finalmente o meu estilo, a focar-me mais. Isso é bom». A
cantora considera que a sua versatilidade, vantagem aparente, a impediu
durante anos de perceber o que queria. Por isso, refugiou-se nos estudos
— e no que os professores a mandavam fazer. «Tenho formação
a mais para uma cantora de jazz: nove anos de conservatório, cinco de
universidade, dois de mestrado...»
O improviso foi durante
muito tempo a sua imagem de marca. Improvisava mais do que era usual num
cantor. «Só assim conseguia atingir os níveis energéticos
que queria e que gostava de transmitir ao público», explica.
Agora, já consegue não improvisar e chegar aos mesmos níveis.
Aprendeu isso com Laurent Filipe, um trompetista de renome nacional,
quando este a convidou para participar num projecto de homenagem a
Bessie Smith, a rainha do blues dos anos 20. Os 14 temas — gravados em
Outubro do ano passado num disco que deverá sair ainda em 2002 — eram
melodias muito simples, incompatíveis com o improviso a que Jacinta
estava habituada. Assim, a intérprete teve de aprender a passar emoção
de outra forma.
O concerto com Laurent
Filipe, no Centro Cultural de Belém, em Fevereiro de 2001, (re)lançou-a
em Portugal. Mas nessa altura já Jacinta tinha uma carreira iniciada
nos EUA. E também já se havia feito notar em terras lusas. Em 1993,
com 22 anos, participou na primeira edição do «Chuva de Estrelas»,
incentivada pela família. Desconhecendo que o programa era de imitações,
concorreu com uma música pop, de Amy Grant.
«Na selecção,
disseram-me que a minha voz era muito boa mas que, com aquela música, não
ia a lado nenhum. Optou-se então pelo Summertime, de Ella Fitzgerald, e
mais tarde pelo Night and Day». As coisas correram bem e «a
Jacinta, de Aveiro», como a identificariam na rua até dois anos
mais tarde, chegou à final, na fornada em que Sara Tavares, na altura
com 15 anos, arrecadou a vitória. A projecção serviria no entanto a
Jacinta como rampa de lançamento, à qual se seguiram numerosos
convites para concertos e participações em bandas de «jazz» no norte
do país.
Toda a formação de Jacinta
era clássica, desde a iniciação musical Orff, aos quatro anos de
idade, passando pelo Conservatório de Música de Aveiro, onde aprendeu
piano e violino, até à licenciatura em Música, na cidade do Vouga. A
descoberta e a opção pelo jazz, a juntar à sensação de que tinha
tudo por aprender nessa área, fê-la tentar os EUA. Ainda frequentou um
curso do Hotclube e teve aulas de improvisação, com Laurent Filipe.
Depois, candidatou-se à Manhattan School of Music, em Nova Iorque, e
ganhou uma bolsa de estudo para fazer o mestrado em jazz vocal.
Da Gafanha da Nazaré, uma
vila a cinco quilómetros de Aveiro, para Nova Iorque, de armas e
bagagens, a mudança foi grande. E a adaptação difícil. «O
nova-iorquino é frio, quase germânico. E a cidade é muito cosmopolita
e muito racista. Isso fez-me perceber, pela primeira vez, que todas as
minhas divas eram negras. E que eu, porser branca, nunca seria capaz de
cantar jazz como elas. Foi uma pequena crise existencial...»
Ao fim de três anos em Nova
Iorque, Jacinta tinha ganho 50 quilos e uma depressão. «Estava
a desleixar a parte mais importante da minha vida, que era a carreira
profissional». Ia às aulas mas dava um concerto por mês, o que não
era lenha para alimentar a chama de uma carreira.
No fim desse período,
pensou em voltar para Portugal, tentar a sorte por cá, apesar do
mercado quase inexistente. Mas, nessa altura, o marido - um engenheiro
com quem está casada há sete anos e que namora desde os 19 -, foi
convidado para trabalhar em Silicon Valley, na Califórnia, e acabaram
por ficar. É lá que vivem há dois anos. Aí, Jacinta voltou a pegar
na carreira a sério. Duas bandas convidaram-na para vocalista. Com elas
tocou em clubes locais como o Yoshi's e o Kimbal's East, por onde
passaram muitos dos grandes nomes do jazz. Hoje, já tem um público
fixo.
A colega de curso de Jane
Monheit parece ter encontrado o seu caminho. Agora, pretende dedicar-se
ao seu próximo projecto, um álbum que conjugue música brasileira,
inspirada em Djavan, jazz e muito «swing». «A principal
dificuldade é encontrar músicos, porque são géneros muito
diferentes. Mas já encontrei o pianista, um brasileiro que vive nos
EUA, Weber Iago, e o baterista, Akira Tano».
Se pudesse sonhar com os próximos
cinco anos, gostaria de «ter três discos gravados, com três
projectos diferentes; uma 'tournée' europeia e outra americana; viver
metade do ano num sítio e metade noutra. Sonhar não custa, pois não?»,
pergunta, a sorrir.
Depois do nascimento da sua
filha, Catarina, hoje com dois anos, Jacinta não pensa voltar a ser mãe.
«Ou se tem uma carreira ou se têm filhos. E eu já tenho uma»,
diz convictamente. Por enquanto, a ideia é ficar pelos EUA porque,
assegura, «pela primeira vez, em cinco anos, estou a gostar de
lá viver». Se a adaptação foi difícil, a abertura ao universo
do jazz compensou o investimento. E se há coisa de que Jacinta se
orgulha é de se sentir, plenamente, «uma música de jazz»...
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Aos
31 anos, Jacinta vive em São Francisco, onde é cantora de jazz. Uma
portuguesa a dar cartas no estrangeiro, com a voz pintada a negro
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