|
VIDAS Nº 1511 13 Outubro 2001
A
outra ala do Guerreiro
Na
escola, gozavam-no por ter voz de menina. No palco, Nuno Guerreiro
encontrou a vocação. Agora, com um novo álbum a solo, chega também a
vontade de se lançar noutros voos - na encenação e na representação.
Texto
de Katya Delimbeuf
Chega
de boné, «T-shirt», calças de ganga e ténis. Com um largo sorriso,
pede-nos um minuto de paciência, enquanto não acaba o telefonema que o
ocupou rua abaixo. Nuno Guerreiro fala alto, gesticula, move-se à
vontade. Sentados enfim num miradouro sobre Lisboa, com as badaladas da
igreja da Graça em música de fundo, renova o sorriso rasgado,
confessa-se feliz. Não precisava, de resto; o brilho nos olhos não
engana ninguém. O contratenor com o timbre mais agudo de Portugal, 29
anos feitos na meia-noite de 5 para 6 de Setembro, acaba de gravar o seu
novo disco a solo. E garante: «Vai ser uma grande surpresa.
Este é um disco completamente diferente de todos os outros,
tanto a nível de sonoridade como de voz. É o outro lado do Nuno
Guerreiro».
O vocalista da Ala dos
Namorados não esconde que tenciona abarcar novos campos e embarcar
noutros projectos. Espera que o novo disco lhe abra portas diferentes. «Este
ano que aí vem vai ser muito importante. Quero começar a produzir
espectáculos, fazer encenações, como nunca se fizeram cá em Portugal».
Aliás, só quem nunca o viu em palco é que não sabe que gosta de
misturar dança e canto nos seus concertos. Mas Nuno sonha ainda com
outros voos. «Gostava de fazer cinema, teatro. Adorava pisar o
palco como actor, com uma personagem. Sinto que tenho esta vertente cá
dentro». Em 1999, passou ao lado daquilo que diz ter sido a
oportunidade da sua vida. Alguém o viu num espectáculo em Paris e propôs-lhe
que fosse dois meses para França, contracenar com Isabelle Hupert. Na
altura não pôde aceitar o convite, porque já tinha o compromisso de
gravar o primeiro álbum a solo, no Japão. Mas o cantor tem fé.
«Em Deus - e em mim.»
É pela cor que começamos,
a cor que «faz a diferença da minha voz». Dizem os
especialistas que observaram as suas cordas vocais que aquilo que as
distingue é o facto de «serem muito grossas e compridas».
E «a traqueia, que dizem ser lindíssima». Mas «la voce
di donna», como os italianos o apelidaram, valeu-lhe valentes
dissabores antes do reconhecimento público: «Era muito gozado
na escola, por ter um timbre feminino. Diziam que eu falava como uma
menina. Tive dificuldades em fazer amigos, porque era muito diferente.
Os meus amigos gostavam todos de carros e de futebol. Eu gostava de
televisão, de moda, de dança. Fui sempre uma criança diferente. Vivia
num mundo à parte. Só queria dançar e cantar - não queria estudar.»
Via o Festival da Canção e, no dia seguinte, de manhã, cantava tudo o
que tinha ouvido, no quintal de sua casa. Uma vez disse à mãe, com 5
ou 6 anos: «A minha vida vai ser num palco». Parece que
acertou.
Ao longo da conversa, evidencia-se o
relacionamento tenso entre Nuno e a família. E o facto surpreende, dada
a natureza do cantor, o primeiro a confessar ser uma pessoa «carente».
«Sinto-me só, do ponto de vista familiar. A maneira de pensar
da minha família é totalmente diferente da minha. E o caminho que
escolhi, as opções que fiz - estejam elas certas ou erradas - merecem
ser respeitadas.» O cantor tem uma irmã advogada, dez anos e meio
mais velha do que ele, mas os dois não são próximos. Os pais estão
casados há mais de 40 anos. A mãe, de 59, trabalha numa agência
imobiliária; o pai, de 64, faz a manutenção de escorregas de parques
aquáticos. «O novo disco vem aí para mostrar muita coisa a
muita gente. Para ir contra tudo e todos - incluindo a minha família.
Ela não me compreende. Não me deixa voar».
Desde muito cedo que Nuno
Guerreiro sente ter o destino marcado. Frequentemente, tem premonições.
«Já tinha sonhado que estava no Japão a gravar um disco,
antes de lá ter ido». Aos 15 anos abandona a Loulé natal e decide
vir para Lisboa. Sozinho. Quer ser bailarino. Deixa os pais e a irmã e
vem para a capital, para dançar. «Era uma formiga no meio das
feras. Se sobrevivi? Tive de sobreviver». Aluga um quarto,
frequenta a Escola Veiga Beirão, no Largo do Carmo, e ao mesmo tempo as
aulas de ballet, no Conservatório. A adaptação na escola custa-lhe,
fazer novos amigos também. Mas estes surgem, a pouco e pouco.
Apaixona-se por Lisboa - que hoje não troca por nenhuma cidade do mundo
-, passeia pelo Bairro Alto. A principal dificuldade é perceber quem são
os seus verdadeiros amigos. «Há muita inveja à minha volta;
sempre houve, e acho que sempre haverá». Ainda hoje é ingénuo,
embora já tenha aprendido com algumas cabeçadas que deu. Mas o lado de
criança é algo que não quer perder, nunca.
Acumula as aulas de ballet
com o professor Laginha com outras de canto. Apesar dos colegas o
aconselharem a explorar o registo mais grave da voz, assume sempre o
timbre que o tornou conhecido - «porque assim é que marco a
diferença». A professora Maria Cristina de Castro sonha com um
futuro brilhante de cantor lírico para ele, que Nuno também entende
ser o seu, durante uns tempos. Integra a Companhia Nacional, pertence ao
coro de música da Gulbenkian, faz o Conservatório na íntegra,
ingressa na Escola Superior de Dança, até ao 2º ano. Entretanto...
Entretanto, começa tudo. Colabora com os Diva; estreia-se, aos 20 anos,
num ensaio de Carlos Paredes; surge o convite de Rodrigo Leão para
participar no projecto Vox Ensemble. Manuel Paulo ouve-o, e propõe-lhe
que cante. Conhece João Gil; passadas umas semanas, aparece o Moz
Carrapa, o terceiro elemento do grupo, e forma-se a Ala dos Namorados.
Em 1994 - tem então 22 anos - grava o primeiro álbum, com o nome do
grupo. Pensa em desistir, «pela reacção de estranheza das
pessoas, que não estavam habituadas a um homem com uma voz tão
feminina. Por estar numa esplanada e ter as pessoas a observarem-me e a
apontarem. Não estava habituado. Hoje se calhar, já não sabia viver
sem isso».
Seguem-se os outros álbuns.
Por Minha Dama, em 1995, Alma, em 96. O fado
é uma das influências mais notórias - «a minha mãe
cantava-me muito o fado, enquanto esteve grávida de mim» -, embora
Nuno confesse que gosta de «misturar sonoridades». Solta-se
o Beijo, em 1999, marca a consagração, no mesmo ano em que surge o
primeiro disco a solo, Carta de Amor. Gravado no Japão, um
ano antes, a convite do maestro Akira Senju, a receptividade do álbum
é muito boa. Nuno interpreta o tema «When the Saints Go Marchin'In»
para o genérico de uma telenovela japonesa, e volta ao país para fazer
três programas de televisão, tal o sucesso. Recentemente, gravou lá o
tema «Amapola», para a campanha da Nissan. Em 2000, surge Cristal.
É também nesse ano que estala a polémica a propósito do dueto
previsto com Pavarotti, no Algarve, que é cancelado à última hora. As
versões contradizem-se: há quem alegue que Pavarotti nem sequer
conhecia Nuno Guerreiro e por isso recusou-se a cantar com ele, outros
invocam que o disco que devia ter chegado às mãos do cantor lírico
nunca foi enviado. Nuno diz que continua a «não saber muito
bem o que aconteceu». Este ano, é a vez do segundo álbum a solo.
Gostava de cantar com
Madonna e com George Michael. Hollywood é um sonho. O dueto com Nelly
Furtado, este ano, no Canadá, um dos pontos altos que destaca na sua
carreira. Neste momento, Nuno divide a cabeceira entre a biografia da
Callas e O Amante, de Duras. E avança, meio enigmático,
sobre a sua vida privada e sobre o novo disco: «Eu não sou
nada, nem ninguém, se não for por alguém». |
|
Nuno
Guerreiro alia sempre canto e dança nos seus concertos. O movimento
corporal é uma herança dos tempos de bailado no Conservatório. Agora,
quer dedicar-se mais à encenação e tentar a representação |
|