VIDAS Nº 1528 9 Fevereiro 2002

Corpos XXL

Ser gordo não é fácil quando a imagem se tornou obsessão. Mas há quem viva bem num corpo de peso.

Texto de Katya Delimbeuf
Fotografias de Luiz Carvalho

No «lobby» de um hotel nova-iorquino, uma mulher de 150 kg pergunta ao porteiro pelo bar, instala-se, ocupando dois lugares, e pede uma bebida. Ninguém olha para ela, ninguém se senta ao seu lado. O quadro, apesar de triste, não despertaria a atenção dos «media» se a mulher obesa não fosse... Gwyneth Paltrow - e se esta não tivesse conseguido passar incógnita. Confusos...? Já vão perceber.
A actriz encontrava-se a rodar a comédia romântica Shallow Hal - estreada agora em Portugal com o nome O Amor é Cego - em que veste a pele de uma obesa discriminada pela sociedade, engordada graças a próteses faciais e a um fato especial capaz de lhe acrescentar cem quilos em questão de horas. Gwyneth lembrou-se então de dizer, num programa de televisão, que encarnar aquela personagem lhe deu «a real noção do que é ser obeso» e que todas as raparigas bonitas deviam passar pela mesma situação: «Era como se as pessoas sentissem que havia algo de errado comigo, como quando vemos alguém sem uma perna ou um braço e pensamos: 'Não vou olhar, não vou olhar, senão a pessoa pode achar que estou a olhar para a sua deficiência...'. Mas isso percebe-se, e é uma sensação de tristeza e isolamento muito grande. Foi devastador».

Os gordos norte-americanos revoltaram-se com as declarações, com o filme e com a tendência crescente de actores magros desempenharem papéis de gordos para arrancarem gargalhadas ao público, que começou com Eddy Murphy, em Professor Chanfrado, e continuou com Julia Roberts, em O Par do Ano, ou Courtney Cox, na série «Friends». A Associação Nacional para a Aceitação dos Gordos (National Association to Advance Fat Acceptance), um lóbi - já não de hotel - declaradamente militante e poderoso nos EUA, mobilizou-se num boicote nacional contra a película protagonizada por Paltrow. Dizem que estão fartos de ser alvo da chacota de Hollywood e que «se fizessem as mesmas piadas com os negros, haveria um motim a nível nacional».

Não é difícil ser-se lóbi num país onde 40% da população tem excesso de peso e 20% é clinicamente obesa. Mas os EUA estão longe de ser a única nação afectada pela doença que a OMS já classificou como a «epidemia do século XXI». A tendência para o aumento de peso é generalizada no Ocidente, e Portugal não é excepção. Um primeiro estudo, realizado pela Sociedade Portuguesa de Endocrinologia e pela Direcção-Geral de Saúde, revela que metade dos portugueses sofre de excesso de peso ou de obesidade: 35% têm peso a mais e 15% são obesos, havendo uma particular preocupação em relação aos mais novos.
Não é, por isso, de estranhar que também em Portugal a utilização de falsos gordos levante polémica. Como se sentem os nossos gordos ao verem estes filmes? Porque é que, sendo eles cada vez mais na sociedade, são praticamente invisíveis nas representações artísticas? Como é ser gordo numa sociedade crescentemente anoréctica, onde o culto da magreza é louvado até ao último grau/CW>Miguel Dias, 26 anos, actor. Poucos lhe adivinham a idade. Tem 1m86 e 110kg. Já chegou aos 131. Até aos oito anos, «era magríssimo». Chegou a ser manequim infantil. Começou a engordar a seguir a uma operação à garganta, «em que o metabolismo se deve ter alterado». Na adolescência revoltou-se muito contra o seu corpo. Lembra-se das primeiras vezes que lhe chamaram «gordo» ou «bola», na escola. Lembra-se porque não se esquece do que doeu. Seguiu, por duas vezes, a dieta de Tallon e deu-se bem, mas considera que «a vida de actor é difícil para quem quer manter uma dieta».
Curiosamente, foi a partir do momento em que se expôs mais, quando começou a apresentar programas na televisão, que aprendeu a lidar melhor com o corpo. Depois de cinco anos no pequeno ecrã, depois de oito meses desempregado e deprimido, faz agora de sapo Cururu na peça infantil Há Festa na Floresta, em cena até Março. Pensar que o seu peso pode ter contribuído para as dificuldades em arranjar trabalho é algo que evita a todo o custo, mas Miguel reconhece a existência de uma «tirania» da televisão: «Há muitos gordos com talento, mas no pequeno ecrã contam-se pelos dedos de uma mão. Parece que os gordos não existem na sociedade de todos os dias. A mensagem que passa cada vez mais é: 'Se tens um palminho de cara e um corpo bonito, junta-te a nós, vem para a televisão...!'. Mas ter boa imagem não é sinónimo de ser magro. Há gordos bonitos e magras feias. Revolta-me a ideia de ter o mesmo talento que outras pessoas e só por ter mais 50 quilos, não ser escolhido para o papel».

Sobre a polémica dos EUA, o actor considera que «é humor fácil usar os gordos como figuras desajeitadas, que só servem para provocar o riso. A ideia de que um gordo só pode fazer comédia é redutora. Porque é que não pode fazer de galã?», pergunta, lembrando os charmosos Nicolau Breyner ou João Ricardo. Miguel acredita ainda que, na sociedade em geral, a ditadura da beleza é mais difícil para o sexo feminino do que para o masculino: «Existe o estereótipo de que um homem gordo é mais divertido; uma mulher gorda é mais deprimente». Situações desagradáveis lembra-se particularmente de uma, quando uma entrevistadora lhe perguntou se não se sentia um sortudo por trabalhar em televisão, «visto ser gordo e não particularmente bonito». Na altura caiu-lhe mal. Agora, à distância, acaba por não ter importância. Aos 26 anos, Miguel vive com a segunda mulher, depois de um casamento, aos 21, do qual tem um filho de quatro anos. Acredita que tudo isto sucedeu tão cedo não por carência mas, simplesmente, «aconteceu assim».
Carla Vasconcelos, 30 anos, actriz e professora de teatro. 1m59, 80kg. Já chegou aos 95. As longas tranças dão-lhe um ar de menina traquina, o sorriso simpático faz o resto. Começou a ganhar peso aos quatro anos, quando uma púrpura idiopática a obrigou a tomar cortisona. A segunda de cinco irmãos, todos magros, garante que a sua «relação com o corpo é muito boa. Sempre foi». Talvez por na escola nunca ter sido torturada pelas outras crianças nem chamada de gorda, Carla considera-se «uma pessoa extrovertida, bem-disposta e divertida». Confessa que nunca teve problemas em arranjar namorados e não se importa minimamente que olhem para ela quando vai à praia, programa que, aliás adora.

A actriz ressalva, no entanto, que são poucos os gordos que conhece no meio artístico e que, mesmo no teatro, sente uma pressão crescente em torno da imagem. «Às vezes, quando estamos a ensaiar, brincamos entre nós e dizemos: Vamos entrar para uma escola de manequins... Assim, de certeza que arranjamos trabalho...! Hoje em dia, podes não ter um pingo de talento e fazer televisão», diz. «Se não me incomoda que as actrizes gordas não possam fazer de sedutoras ou mulheres fatais? Mas podem fazer tudo o resto... Tomara muitas magras conseguirem fazer tudo o resto...». A actriz, que também dá aulas numa escola secundária, preocupa-se com aquilo que vê: «Conheço raparigas cada vez mais magras e cada vez mais infelizes. Miúdas que não estão bem na sua pele. Apetece-me dizer-lhes: Vocês valem por aquilo que são, não pelo corpo que têm...».
A atitude positiva e o sorriso de Carla só se desvanecem quando se fala de roupa - aliás uma das maiores queixas dos gordos: «Ou se gasta uma fortuna e uma saia custa 40 ou 50 contos ou encontram-se estampados que não lembram a ninguém», garante. «Depois, há lojas em que a secção de grávidas tem roupa que me serve, mas parece que aterrámos noutro planeta». E lembra um episódio que lhe aconteceu quando rodou uma participação para a telenovela «Senhora das Águas»: «O meu guarda-roupa era uma coisa horrível. Para interpretar a secretária de uma agência de publicidade, tinha uma camisa de folhos cor-de-laranja e rosa; e um fato verde com pano que sobrava de todos os lados, que me recusei a vestir».
Quanto à inserção social, Carla não hesita: «A sociedade não puxa os gordos para cima. É má. A mensagem que passa é esta: És magra e linda, vem ter connosco. És gordo, não tens hipóteses». Aos 30 anos, Carla é casada com «o único namorado gordo» que teve. Diz-se feliz. E aparenta sê-lo.
Bernardo Ramirez, 27 anos, relações públicas. 1m72, 100kg. O brilho nos olhos negros e a gargalhada sonora não escondem o nervosismo visível por estar diante de uma máquina fotográfica e perante a ideia de poder aparecer deitado no EXPRESSO. Sabe quanto pesa mas só sobe para cima de uma balança uma vez por ano. «Porquê? Porque já fui escravo do meu peso», diz. Bernardo foi magro até aos 12 anos. A partir daí, começou a engordar, progressivamente. Não sabe porquê, mas acredita que «ser gordo é uma retenção a nível emocional». O que reteve, ainda hoje ignora, mas lembra-se de se sentir marginalizado. Só mais tarde percebeu que quase todos os adolescentes se sentem da mesma forma. Foi um adolescente comedido. «Convenci-me de que era diferente porque era gordo». A primeira namorada surgiu aos 18. Só nessa altura Bernardo descobriu que não era feio e que não era por ser redondo que estava condenado ao fracasso com o sexo oposto. «Afase mais difícil foi no segundo ano da faculdade, quando não conseguia sequer olhar-me ao espelho. Estava num curso de que não gostava, tinha acabado a primeira relação amorosa...», explica.
Hoje, aprende a gostar do seu corpo. Acredita que «a gordura é um fenómeno prioritariamente psicológico», e que «mesmo entre as mulheres magras, há poucas que digam: eu gosto do meu corpo». Aliás, considera que «a gordura é mais complicada para magras que para gordas - porque são, em regra, mais inseguras». Acha que a actual obsessão pela magreza «tem que ver com a falta de fé: as pessoas já não acreditam em nada, por isso agarram-se à estética». Mas não é por não corresponder ao estereótipo de beleza actual que Bernardo deixa de se assumir como uma pessoa sedutora e charmosa: «Acho que tenho um peso mais elevado do que a maioria, que tenho formas arredondadas, mas também acho que sou muito giro», diz, entre um sorriso malandro e uma gargalhada, quando imagina o que poderão pensar as pessoas ao lerem estas afirmações. Ressalva que ser gordo pode trazer algumas desvantagens em relação à vida sexual, mas isso acaba por não ser um incómodo. Afinal, é da maneira que se aprende a puxar pela imaginação...
Dóris Pereira, 55 anos, publicitária, ex-manequim. 1m63, 110kg. Já chegou aos 121. O cabelo ruivo frisado, curto, dá-lhe um ar de graça. A gordinha dengosa do genérico dos «Anúncios de Graça» apresentados por Edison Athaíde, aparece, ainda hoje, no último videoclip de Luís Represas, a fazer de mulher-a-dias. Começou como modelo publicitário há 22 anos. Foi uma das primeiras manequins gordas. «Magras há muitas, como eu nem por isso», diz com um sorriso. Foram muitos os trabalhos para os quais foi solicitada: fez anúncios a esquentadores, iogurtes, jogos da sorte...
Dóris começou a engordar aos 30 anos, com o nascimento da filha. Até há uns anos, usava biquini na praia e não se incomodava com os olhares das pessoas. Mas o relacionamento com o corpo «já foi melhor. Hoje canso-me mais». Dóris tem saudades de «dançar noites a fio», das actividades que envolvem agilidade e que já não consegue fazer. Por isso, neste momento está a fazer dieta, «por motivos de saúde, exclusivamente». Quer chegar aos 80 quilos. E acrescenta: «Uma das coisas que mais revoltam os gordos é, justamente, quando estão a fazer uma dieta séria e ninguém nota. É muito frustrante. Pior, mesmo, só quando alguém que não nos vê há algum tempo diz: Estás mais gorda...!». Outra coisa que a irrita é que os condutores a chamem de gorda. Ou que, quando entra numa loja, as vendedoras a olhem de alto a baixo e digam: «Para o seu tamanho não temos». «Cortar as unhas dos pés, atar sapatos, subir escadas ou cruzar as pernas, para ter uma pose mais feminina» são actos que Dóris, como a maioria dos gordos, não consegue fazer.
Mas, apesar da sociedade não lhes facilitar a vida, é animador perceber que uma boa parte dos gordos vive bem consigo mesmo. Em regra, aceitaram as contingências do seu corpo e concentram-se no que é importante - o interior.

     

 

A actriz Carla Vasconcelos...



...o actor Miguel Dias



... e o relações públicas Bernardo Ramirez: gordos, todos de bem com o seu corpo



Dóris Pereira, publicitária, só começou a engordar quando foi mãe, aos 30 anos