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FOTOGRAFIAS
Encontro à hora
do teu nascimento
Maria Madalena fechou a porta do carro, junto
ao campo de girassóis. As cabecitas amarelas, tombadas de lado,
faziam a sesta, escarnecendo do pôr-do-sol. A professora de educação
física rodou sobre si mesma, num ângulo de 90º, ficando de
frente para o milheiral. Tinha sido ali. Há um ano. Quando os girassóis
apontavam para cima, vigiando a passagem, de debrum caído para
trás em jeito de gola num vestido de cerimónia. Há
um ano, deitados no capim, ela e Joshuah faziam um filho. Ele nunca chegaria
a saber. Ela não sabia se se arrependia
Não é
que Joshuah fosse mau tipo. Aliás, o carpinteiro demonstrara sempre
muito jeito de mãos. Conhecera-o no festival de Paredes de Coura
ou na manifestação contra a guerra, já não
sabia bem -, e a verdade é que dificilmente ele passaria despercebido.
Era uma figura um homem alto, de metro e oitenta e cinco, cabelo
louro, revolto, pelos ombros, facies anguloso e musculatura
definida. Um belo homem, que pecava apenas pelo hábito, assaz frequente,
de falar de si em excesso. A sua expressão preferida era «Não
papo grupes», e pode dizer-se sem exagero que foi só passado
algum tempo que Maria Madalena - Mia para as amigas conseguiu descortinar
o sentido da expressão. Queria dizer qualquer coisa como «Não
faço concessões, não transijo nos meus princípios».
De uma forma mais moderna, claro. Também utilizava outra: «Não
há pão para malucos», mas essa, Mia não tinha
conseguido deslindar.
No momento em que os olhos verdes de Maria Madalena esbarraram nos azuis
de Joshuah, o mundo parou. Houve uma espécie de curto-circuito,
de corrente eléctrica no corredor criado pelos dois olhares
e a faixa de terreno onde ambos se encontravam, frente a frente, tremeu.
O resto do mundo continuava o seu percurso, animadamente, com música
e barulho de feira. Mas naquela língua de terra, ocorria um terramoto
de grau 8. Naquele instante, as placas tectónicas deslocavam-se
e era impossível os intervenientes não o terem sentido.
Algo tinha de acontecer entre estas duas criaturas. Era inevitável.
Maria Madalena despertou do transe com um som de estalido nos ouvidos,
o zumbido que se ouve depois de uma queda. A electricidade estática
daquele momento repetia-se de cada vez que ela o recordava - tinha os
pêlos dos braços todos eriçados. «Tenho de dar
uma volta à minha vida», pensou, sacudindo as lembranças
como um cão acossado pelas pulgas. Tirou os Florais de Bach da
carteira, que a vidente lhe prescrevera, e depositou quatro gotas sobre
a língua. Não sabia o que fazer. É verdade que já
não suportava o barulho da cidade, o silvo estridente dos comboios,
as conversas das pessoas nos transportes públicos. Por outro lado,
não se podia queixar da sorte. Luna crescia saudavelmente, longe
das maluqueiras do pai. Ela dava aulas de educação física
numa escola em Beja, alimentando os sonhos molhados dos rapazes que não
pediam licença para entrar na idade parva. E tinha encontrado paz
nos braços de Peter Paulus, que havia adoptado a sua menina desde
o primeiro dia.
Peter Paulus - PP para os amigos -, era um rockeiro romântico à
procura de uma oportunidade no universo musical português. Mas triunfar
em Beja não era um sonho fácil de concretizar, pelo que,
nos entretantos, Peter Paulus tocava em casamentos e era inspector sanitário
na lota de Casalinhos, ali ao pé. Ainda arranjava tempo para dar
uma mãozinha como bombeiro voluntário em A-das-Loucas, uma
vila com uma incidência anormalmente elevada de mulheres doentes
dos nervos, à conta de actos dos maridos. Era, também, o
distrito do país com maior taxa de crimes de sangue com uso de
caçadeira.
Fisicamente, Peter Paulus não podia ser mais diferente do pai de
Luna. Moreno de cabelo encaracolado, que lhe caía em grossos cachos
até meio das costas, era conhecido como o Slash alentejano.
Nutria uma admiração secreta por Gal Costa, idolatrava Iggy
Pop, sonhava em ter o jogo de cintura de Madonna e não cessava
de se espantar com a coordenação de Daniela Mercury e a
sua capacidade de cantar sem ofegar, uma vez que fosse, ao mesmo tempo
que pulava incessantemente, em elaboradas coreografias. Houve alturas
em que, à conta das suas preferências musicais, os homens
da terra lhe questionaram as tendências e os gostos. Peter nunca
tivera dúvidas: era o verdadeiro macho latino um lusitano,
de puro sangue. Acolhera Maria Madalena de braços abertos e assumiu
o papel protector que se esperava dele.
Mas havia, naquela vidinha pacata, algo de profundamente enfadonho e de
profundamente diferente em relação ao que Mia sonhara para
si. Maria Madalena sempre quisera ser missionária. Ir para África
ajudar os meninos que morrem de fome, fazer o bem e, de caminho, se possível,
assistir a espectaculares pôres-do sol. Tivera um vislumbre dessa
vida com Joshuah mas havia nele algo que a assustava. Era hiper-sensitivo,
sentia as coisas antes delas acontecerem. De vez em quando, uma névoa
toldava-lhe o olhar e julgava-se capaz de andar sobre a água, devolver
o andar a um paralítico ou transformar água em vinho. Outras
vezes, pedia-lhe que fosse colher cogumelos e dava grandes festas para
os amigos, onde riam muito em torno de uma fogueira e dançavam
ao som de uma música hipnótica com nome de penteado feminino
- trança, seria?
Maria Madalena questionara-se frequentemente sobre o conteúdo,
de agradável fragrância, dos invólucros que Joshuah
e a sua dúzia de amigos levavam à boca - mas ele sossegava-a,
explicando-lhe que só assim era possível pregar o amor num
mundo povoado de ódios. O pior foi um dia em que Joshuah desmontou
do cavalo e disse: «Vou fundar um partido, alicerçado nos
valores da justiça social e da distribuição de riqueza
para os pobres e oprimidos». Até já tinha pensado
num nome: «Cruzes canhoto», uma junção do símbolo
que lhe surgia muitas vezes em sonhos, nomeadamente quando tinha dores
nas costas, e os valores com que se identificava. A esquerda, o lado do
coração.
A partir daí, foi o descalabro. Comícios todas as noites,
cada vez mais gente que vinha de cada vez mais longe entre as quais
fogosas raparigas que levantavam as camisas e puxavam os cabelos sempre
que Joshuah abria a boca - às vezes, até antes... Mia, que
não era um animal de sangue frio, não achava graça
à brincadeira. Pelo meio, ainda ouviu uns quantos discursos do
marido, mas por mais que se esforçasse, não
conseguia perceber o que é que conceitos filosóficos e políticos
como «o fim da propriedade privada», «anarquia»,
ou «paz e amor» tinham a ver com hordas de rapazes e raparigas
de fitas na cabeça que acabavam invariavelmente a noite numa pilha
humana. Talvez não se esforçasse o suficiente. E veio-lhe
à cabeça a imagem da mãe, que sempre lhe dissera
que Deus não podia distribuír irmãmente beleza e
inteligência.
Depois, havia ainda os concertos, e as Festas do Avanço, que impediam
Mia de dormir até altas horas da madrugada. Recordava-se particularmente
de um cantor moreno de baixa estatura, de T-shirt vermelha,
que parecia falar em vez de cantar. O resultado não era desagradável,
e, na verdade, as letras coadunavam-se perfeitamente com o que Joshuah
dizia nos seus discursos. «Paz, pão, saúde, educação...!»
Lembrava-se também de outro cantor com uma bóina, e ainda
de um episódio engraçado que ocorrera com uma banda infiltrada.
A letra era extraordinariamente parecida - pelo menos, aos ouvidos de
Maria Madalena -, mas descobriu-se mais tarde que a letra «Paz,
pão, pátria e liberdade» pertencia a um hino de um
partido da concorrência, um tal de PSD.
Mas Mia enganara-se ao presumir que isto era o pior. O pior foi mesmo
quando chegaram os italianos. Uns homens de sotaque estranho, com cabelos
empastados de gel, fardas desenhadas por um tal de Armani e capacetes
de plumas vermelhas. Intitulavam-se carabineiros. Uma noite, acordou com
tochas dentro de casa. Os italianos haviam entrado na aldeia, lançando
fogo e matando tudo o que encontravam no seu caminho. Estremunhado, Joshuah
pegara no seu cajado e distribuía golpes imaginários no
ar. Antes que conseguisse perceber o que se passava, alguém pegara
nela e, tapando-lhe a boca com a mão, arrastava-a com violência
dali para fora. Recorda-se de olhar para Joshuah e ouvi-lo dizer a
taça, a taça e lembra-se de ter ficado zangada,
achando que não era o momento para pensar em vinho. Depois, ficou
tudo turvo. O resto era uma folha em branco.
Quando voltou a si, Mia estava num estábulo, com um homem que não
conhecia. A princípio assustou-se, mas ele tratou de a sossegar.
Contou-lhe como a tinha encontrado, arrastada por um carabineiro, e como
o eliminara, com uma paulada na cabeça. Peter Paulus havia sido
a sua salvação. Deixara-a esconder-se, no estábulo
do seu monte em Beja. Foi nesse estábulo, graças ao calor
do bafo de uma vaca, um boi e uma ovelha, que Mia suportou o frio das
noites alentejanas. Só passados uns meses percebeu que estava grávida.
E, de novo deitada nas palhas, deu à luz - uma menina. Como a última
coisa que vira antes do parto fora a estrela polar, deu-lhe o nome de
Luna. Nos braços firmes - e tatuados - de Peter Paulus, Maria Madalena
encontrara o aconchego.
Maria Madalena tinha umas pernas longuíssimas, capazes de ombrear
com qualquer protagonista de Margarida Rebelo Pinto, o que lhe valia a
alcunha de «perna-longa» desde os tempos do colégio,
e ostentava uma longa cabeleira «laranja cor de fogo» - pelo
menos, era o que garantia a embalagem de coloração que comprara
no supermercado. Há já algum tempo que se habituara a pintar
o cabelo consoante as estações do ano, o que a fazia sentir-se
em comunhão com a natureza. Era também, suponho, uma forma
de camuflagem. De algum modo, Mia escondia-se. De Joshuah, dos carabineiros.
Era, também, achava ela, uma espécie de serviço público
que prestava à população. Bastava olhar para ela
para saber em que estação do ano estávamos. Era,
portanto, outono - no Verão, Maria Madalena era loura, no inverno,
tornava-se morena, e na primavera tinha o cabelo rosa cor de malva.
Maria Madalena recordou as palavras da vidente. Iria reencontrar
Joshuah e cumprir o seu destino. E depois, encetaria com ele uma busca
maior do que a própria vida. Aquelas palavras intrigavam-na
particularmente. O que quereria ela dizer? Teria que ver com Luna? Nem
por um instante Mia pôs em causa a palavra da pitonisa. Afinal,
era a ela que devia o nome. A sua reputação de vidente era
conhecida aquém e além fronteiras. A gata Leika havia sido
a primeira felina a pisar superfície lunar. À conta disso,
desenvolvera capacidades mediúnicas impressionantes factor
exponenciado por uma queda que dera em pequena num poço de urânio
enriquecido. Isto conferia-lhe um halo de luz, o que, para a maioria,
era a validação da sua santidade. Manifestava-se por miados
e daí o nome que Mia herdara -, que um filósofo marroquino
de nome Tibério traduzia em palavras. Pouco se sabia dele, excepto
que tinha o hábito de guardar (quase) tudo, e por isso tinha a
casa cheia de pilhas de papéis que atingiam o meio metro de altura:
envelopes, invólucros de talheres de cantina e uma camada de pó
onde escrevia recados à empregada, uma vetusta senhora de 90 anos
com a energia de uma mulher de meia-idade - sem os acessos de calores
da menopausa, entenda-se.
Mia acordou dos seus pensamentos e decidiu sacudir o tédio para
um cibercafé. Entrou num chat-room com o nickname
que usava já há uns tempos, numa semi-homenagem à
sua inspiradora: kat-on-mars. Naquele dia não lhe apetecia fazer
conversa, por isso procurou um tema de maior interesse. Abriu uma janela
onde se falava de bem-estar, de equilíbrio interior, de fé
e de sonho, e encetou um diálogo com uma pessoa que dava pelo nome
de Messias. O discurso dele chamou-lhe a atenção
por uma razão qualquer que não sabia verbalizar um
calor, uma cadência na escrita... O mais estranho é que ele
parecia saber quem ela era. Não sabia explicar porquê, mas
havia ali uma familiaridade. Falava-se de muitas coisas naquele chat,
algumas que escapavam à compreensão de Mia: rosa-cruzes,
templos, templários, cavaleiros, buscas, escavações,
cálice, taça, copo de três e até
Indiana Jones... Era confuso... Passado uns minutos de estar online, o
Messias convidou Mia para uma conversa em privado. Queria marcar um encontro,
mas teriam de escrever em código, por causa do Webmaster,
explicou ele. Apesar de não saber de quem se tratava, Mia acedeu.
«Encontra-me Sexta-feira nos Templários, na grande alface,
à hora do teu dia de nascimento. Traz uma flor da cor do teu cabelo
a saír da mala.» Log out.
Mia ficou a olhar para o ecrã branco, embasbacada. «Nos Templários,
na grande alface, à hora do teu dia de nascimento?» Seria
este Messias bom da cabeça? Por momentos teve medo,
lembrou-se das histórias que se contavam sobre encontros às
cegas que acabavam com serial killers e neuróticos
que mentiam sobre a sua identidade. Depois... franziu o sobrolho e começou
a pensar. Tinha de ser alguém que a conhecesse. Alguém que
soubesse a que dia fazia anos, pelo menos. Mas como teria ultrapassado
a barreira do nickname? Pelo sim, pelo não, decidiu
fazer uma pesquisa por termos, começando com a palavra Templários.
41 100 resultados. A noite prometia ser longa.
Às três da manhã, com o cibercafé já
fechado e Mia lá dentro por especial favor, um dos resultados chamou-lhe
a atenção: Bar Os Templários, Av. EUA,
Lisboa. Tinha lá estado uma vez, com Joshuah e recordava-se vagamente
de umas armaduras
a servir de decoração. «A grande alface...»
Seria isso? Lisboa, a capital alfacinha? Mia sentiu que era aquilo. Às
21h 09 de sexta-feira, nos Templários, em Lisboa. Lá estaria,
com uma geribéria laranja a saír da mala. Que diria a Peter
Paulus? Iria mentir? Mia estava dividida. Mas algo mais forte a impelia
numa das direcções.
Eram 21:07 de Sexta-feira 13 e Mia agitava-se nervosamente dentro do carro
estacionado em frente aos Templários, na Av. EUA, em Lisboa. Era
chegada a altura. O que a esperaria lá dentro? Quem estaria lá
dentro? Não se estaria ela a expor demasiado? A correr riscos desnecessários?
A curiosidade falou mais alto e Mia resolveu entrar. A maioria das mesas
estava ocupada, e Mia varreu a sala com o olhar, à procura de algum
ponto que lhe despertasse a atenção. Fê-lo uma, duas
vezes, e nada lhe parecia familiar. Começava a parecer conspícuo,
aquela mulher vistosa, de pé, no meio da sala, quando alguém
lhe agarrou no braço e disse: «Confia em mim». Mia
abafou um pequeno grito, misto de surpresa e susto. O homem era alto,
usava boné, óculos escuros e roupa andrajosa, a condizer
com a longa barba e cabelo louro. A bem dizer, parecia um sem-abrigo
não fosse a ausência de mau cheiro e o facto de a entrada
lhe ter sido permitida. Mas aquela voz não deixava dúvidas:
por trás do disfarce, estava Joshuah.
Mia tentou controlar-se e acalmar o batimento cardíaco, que praticamente
não a deixava falar. Como que adivinhando, era Joshuah que fazia
as expensas da conversa. «Tenho de ser breve», disse. «Estamos
a ser vigiados, por isso dar-te-ei aquilo que não te posso dizer.
O guardanapo que vou deixar em cima da mesa contém uma mensagem.
Está encriptada, para que não te prejudique, caso caia em
mãos erradas. Lê-a e faz o que ela disser». Houve uma
pausa, após o que Joshuah perguntou, olhando-a bem no fundo dos
olhos, como a querer mirar-lhe a alma: «Onde raio te meteste este
tempo todo? Andei louco à tua procura...» Mia esboçou
uma resposta, mas saiu-lhe uma espécie de grunhido, ao abrir a
boca. Parecia afónica. Quando se sentiu capaz de dizer algo, houve
uma rápida troca de olhares entre Joshuah e o porteiro, seguido
de um assentimento de cabeça. Nesse segundo, levantou-se e disse
«Tenho de ir», no mesmo instante em que Mia conseguira finalmente
balbuciar: «Temos uma... filha». Já só o viu
partir, como uma sombra, pela porta das traseiras. Ao mesmo tempo, alguém
pegava bruscamente nela e encaminhava-a para um sítio escuro. «Onde
é que eu já vi este filme?», pensou Maria Madalena,
pedindo encarecidamente à Providência que não fossem,
de novo, os malditos carabineiros.
No mesmo minuto, a porta do bar escancarou-se e alguém gritou:
«Polícia de Deus! Todos no chão!» Sons de gritos
abafados, de surpresa e medo, varreram a sala. Os olhos de Mia habituaram-se
à escuridão, e viu um pequeno buraquinho que permitia ver
o que se passava. Devia estar por trás de uma parede, numa passagem
secreta do bar. Eram os carabineiros. De sabres desembaínhados,
pareciam procurar alguém em particular. «Não está
aqui!», gritou um deles furioso, depois passar o bar a pente fino,
virando uma mesa com um pontapé. Maria Madalena ouviu o barulho
de pneus a chiar lá fora, seguido do som de aceleração.
Foi como se um mestre de hipnotismo tivesse estalado os dedos, dando o
sinal para acordar: todos os carabineiros precipitaram-se para a porta,
atravessando-a. Segundos mais tarde, começava a perseguição.
Já instalada no conforto do seu carro, com o coração
em alvoroço, Mia desdobrou o guardanapo que pusera precipitadamente
no bolso. Dizia: «Ruma ao ninho do campeão eterno, na torre
onde a princesa está guardada. À hora do dia da perfeição:
duas vezes primeiro, uma depois. Saberás seguir os sinais. P.S:
Não me esqueço de te lembrar». Santo Cristo, pensou
Maria Madalena. Eu ainda amo este gajo. E de que maneira... Mas aquela
mensagem ia dar-lhe água pela barba...
«Ok... Vamos por partes», pensou Mia para consigo. E sublinhou
as palavras chave: Ninho do campeão eterno, torre,
princesa, guardada. As palavras lembravam-lhe a história
da Bela Adormecida, aprisionada no alto de uma torre guardada por um dragão,
que o príncipe tinha de matar para chegar até ela. Que havia
ali de novo? Dragão, talvez. Campeão Eterno,
Dragão... Seria possível? Um vislumbre de claridade começou
a tomar forma na cabeça de Maria Madalena, até que... Não
podia ser... Referências futebolísticas? Joshuah sabia perfeitamente
que Mia não ligava nenhuma a futebol, não sabia nada do
assunto. Mas por outro lado, não era preciso ser-se um profundo
conhecedor para saber que era o Porto que ganhava sempre.... O campeão
Eterno era o FCP, e o ninho o estádio do dragão...
Tinha de ser isso! Quanto às referências horárias,
a tarefa era mais fácil: o dia da perfeição era o
7, duas vezes 7 eram 14, uma vez, 7. 14h 07. Assim seria.
À porta do estádio do Futebol Clube do Porto, na Cidade
Invicta, Mia olhava para a linha do horizonte. Perscrutava as possibilidades.
Uma torre, uma torre... Não podia ser ali. Teriam de ser os escritórios
do clube, arriscou. Aí, haveria certamente torres... Não
se enganou. A poucos metros do estádio, um enorme edifício
espelhado erguia-se em direcção ao céu, onde as nuvens
se vinham reflectir. Entrou no hall e chegou ao elevador,
ludibriando a segurança. Havia 10 torres, de A a J. Confiou no
instinto e carregou no último andar: J, de Joshuah. Dez segundos
mais tarde, as portas abriram-se e viu filas e filas de carros. Estava
no parque de estacionamento. Como é que iria descobrir o local
exacto? Recordou a frase de Joshuah: «Saberás seguir os sinais».
Decidiu adoptar um método, para não se perder. Veria os
carro fila por fila, um por um, da esquerda para a direita. A tarefa afigurava-se
titânica. Foi prestando atenção às cores, aos
modelos, mas não lhe parecia ser isso... Concentrou-se então
nas matrículas. Tinha passado talvez uma boa meia hora quando Mia
estacou à frente de um dois cavalos. Matrícula? MM-14-07.
As iniciais de Maria madalena, à hora combinada. Tinha de ser este.
Nesse momento, Joshuah surgiu por trás e pousou-lhe uma mão
no ombro. «Eu sabia que irias chegar até aqui». O reencontro
entre os dois foi emocionante. A magia do seu relacionamento continuava
lá. Mia contou a Joshuah da existência de Luna. Joshuah chorou.
Agora que tinha tempo, explicou a Mia o que andara a fazer este tempo
todo. A revolução nas ruas, como lhe chamava,
tinha conseguido recrutar centenas de militantes, na sua maioria sem-abrigo
- marginais da sociedade, que não se reviam no sistema. Joshuah
explicara-lhes a ideologia do PRCC Partido Revolucionário
Cruzes Canhoto, e tinha agora suficientes assinaturas (dentre os que sabiam
escrever e assinar) para se candidatar às próximas eleições.
Era isto que os carabineiros queriam evitar: que espalhasse a mensagem
pelo mundo, para que este continuasse em guerra, entregue aos interesses
e às ambições, à ignorância e à
corrupção.
«E o que estamos nós a fazer aqui, em frente a este carro?»,
perguntou Mia. O semblante de Joshuah ficou sério de repente. Dirigiu-se
à bagageira do carro. Escondida por baixo do tapete, estava uma
caixa de madeira embrulhada em papel reciclado. «Cabe-te a ti abri-la»,
disse Joshuah para Maria Madalena. Para que este seja o século
das mulheres, e venha coroado de sensibilidade e bom-senso, não
de guerras adolescentes». Mia abriu a caixa, com mãos trémulas.
Lá dentro, uma lápide trazia gravadas 7 frases - os Sete
Mandamentos para um Mundo Melhor (MMM). Paz, Amor, Respeito, Liberdade,
Solidariedade, Aprendizagem, Tolerância. Nada disto era novo. Mas
tantos eram os que precisavam de ser relembrados. Seria esta a Mensagem
do Messias - na igreja, no parlamento ou num descampado.
Na caixa, havia ainda um cálice melhor dizendo, um copo,
um vulgar copo de três, um copo de tasca, daqueles habituados
a servir vinho a corpos castigados pelo trabalho e mentes cansadas da
vida. Mia pegou-lhe e o cálice começou a brilhar. Saberia
mais tarde, ao ver o Telejornal, que naquele momento, às 21h09
do dia 21 de Setembro de 2004, todos os copos de três
e as garrafas de álcool de tascas, bares e estabelecimentos comerciais
do Reino de Portugal e dos Algarves tinham explodido ao mesmo tempo, num
estranho fenómeno que ninguém sabia explicar. Os bêbedos
levantaram-se das sarjetas onde estavam caídos, as suas faces perderam
o rubor, os seus olhos abriram-se, e o alcoolismo foi erradicado do planeta
naquele instante. Os outros vícios, cabia ao homem erradicá-los,
caso quisesse. Um novo mundo era possível. Uma mão cheia
de possibilidades.
Maria Madalena casou três vezes e teve três filhos - todos
de Joshuah. Da primeira vez, casaram pela igreja. Da segunda, escolherem
o cimo de uma montanha, e da terceira vez, aproveitaram uma viagem a Las
Vegas para casar numa Love Chapel, daquelas onde os casais
fazem fila à espera que o padre dê vazão aos vinte
da frente. Peter Paulus foi descoberto por um scouter americano
a passar férias em Porto Covo e emigrou para os EUA, onde trabalhava
como duplo do seu homónimo, Slash. Leika, a vidente, foi entronizada
Raínha do Sabá por uma seita egípcia que a adorava.
Como condições, exigiu um harém de sete gatos (e
igual número de subalternos) e um carregamento de 50 kg de Whiskas.
Requisitou ainda uma companhia de ballet privativa, com ratos cegos bailarinos.
Gostava do prazer sádico de lhes puxar a cauda e de os comer um
por um enquanto dançavam e chocavam em palco, sem se aperceberem
das falhas na coreografia. Mia e Joshuah construíram uma casa na
árvore, para que ele pudesse estar mais perto de Deus. Cultivaram
uma plantação de ervas aromáticas, que utilizavam
com frequência, para efeitos culinários e afins. Aliás,
jura quem conviveu de perto com ele que foi com o som nasalado de quem
trava um cigarro que, erguendo os dedos em sinal de vitória, pronunciou
a sua última palavra, por entre uma baforada: «Peace...»
Ainda hoje, há quem jure que Deus é um sem-abrigo, na cruzada
das ruas à noite.
P. S: E, claro, viveram todos felizes para sempre.
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FOTOGRAFIAS
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TEXTO © KATYA
DELIMBEUF / PLÁTANO EDITORA
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