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BLUE TRAVEL No. 14 | JULHO 2004



TODOS OS TEXTOS © BLUE TRAVEL | KATYA DELIMBEUF

Áustria
Verão no Vale de Tux


É um pequeno vale nas montanhas do Tirol austríaco, onde as pessoas são acolhedoras como poucas. Destino perfeito para os amantes da natureza, das caminhadas, do ar livre, Tux é ideal para descansar, para programas em família, para quem precisa da terra para se sentir vivo. E retemperar energias.

Por Katya Delimbeuf / Fotos de Manuel Gomes da Costa / Produção de Raquel Pedrosa Marques

Sentados numa pedra larga, aos pés de uma cascata, é fácil esquecermo-nos do mundo e dos seus problemas. Difícil seria ficar indiferente perante tamanha dádiva da natureza, sobretudo quando se tem lugares de primeira fila e se é pulverizado pelo vapor de água, a bater-nos na face. Poderosa e imponente, esta queda de água está a escassos metros de nós, e apesar de haver bancos de madeira em pontos estratégicos, de frente e de lado, é comum o viajante estacar no sopé da cascata, como que esmagado pela sua majestade. Para assistir a este fenómeno de beleza rara, apenas precisámos de andar cinco minutos. E o melhor de tudo é que, para onde quer que nos viremos, temos sempre opção. Estamos em Tux, no Tirol austríaco, e à nossa volta há montanhas cobertas de verde e flores, cheiro a relva acabada de cortar, barulho de badalos das vacas que pastam.
O som da água é, de resto, a ‘imagem de marca’ deste vale, um ‘ruído de fundo’ permanente – a banda sonora de um filme habitado por Heidis, Pedros e duendes do nosso imaginário. Quer venha do rio ou dos ribeiros, das fontes ou das cascatas, o som da água que corre é omnipresente. Como as encostas verdejantes que dançam ao vento, criando ondas de relva. Ou as casinhas de madeira semeadas um pouco por todo o lado, para guardar o feno ou os animais de pasto. Tux é o lugar ideal para os amantes da natureza, das caminhadas, do ar livre. Os que precisam do cheiro da terra para se sentirem vivos e retemperarem energias. Os que gostam de passear a pé ou de bicicleta, de pescar trutas no rio ou de fazer piqueniques no campo. Os que se pelam com a perspectiva de ver ‘bambis’ e marmotas, que não perdem a oportunidade de explorar cascatas e grutas, de fazer escalada ou alpinismo, ‘paraglide’, ‘brainwashing’ ou ‘flying fox’ (já lá iremos).
Tux está cheia de trilhos bem indicados para o caminhante, e orgulha-se dos seus 250 km de possibilidades. Mas este vale alpino constituído por cinco aldeias - Vordelanersbach, Lanersbach, Juns, Madseit e Hintertux - tem ainda outras características a seu favor: o extraordinário acolhimento das gentes, uma população rural preservada no tempo, com um modo de vida tradicional. E o facto de haver neve em Agosto.

O melhor de dois mundos

Não, não é uma gralha. Também não estamos a delirar. É mesmo possível fazer ski em Agosto, pelo menos quando se tem um glaciar como em Tux. Chamam-lhe ‘ouro branco’. Aqui, há neve o ano inteiro. É o único sítio na Áustria em que isso acontece, garantem-nos. A 3550 m de altitude, para além de um terraço panorâmico donde se tem uma vista magnífica sobre as montanhas no Tirol, há quem apanhe banhos de sol enquanto outros se lançam pelas encostas abaixo, brancas de neve. Pode fazer um piquenique num dia – e ‘snowboard’ no outro. Quem disse que não podia ter o melhor de dois mundos?
Nas encostas que agora se pintam de amarelo, rosa e azul, aprendem a identificar-se as flores de Tux – as ‘alpenrose’ cor-de-rosa, o ‘edelweiss’ branco, a ‘enzian’ azul índigo, que só cresce na montanha. É nessas encostas polvilhadas de casas de madeira que ainda se vêem camponeses com cestos de duas alças às costas, carregados de feno e por vezes amparados por cajados. Tux conserva muita desta vida rural de aldeia, e parte da sua riqueza reside nisso mesmo. Se excluírmos o turismo e o fenómeno do ski, mais recente, a economia de Tux assenta essencialmente na agricultura, no leite das vacas, transformado em queijo e manteiga, no arar dos campos. Em dias de festa - casamentos, funerais ou simplesmente para ir à missa -, os trajes tiroleses saem à rua. Vêm-se camisas brancas com mangas de balão e saias compridas, nelas, ou casacos cinzentos de lã ‘lodan’, cintos em couro e calças até meio da perna com suspensórios, no caso deles.

O guardador de vacas
O mais interessante é que esta cultura comunitária, agrícola, parece longe de estar em vias de extinção. Pelo menos, julgando pelo exemplo de Christof, um jovem de 22 anos que passa todos os verões com as suas vacas, no topo da montanha. Christof é louro, tem olhos azuis e o aspecto de qualquer outro jovem da sua geração. Faz isto desde os onze anos, não por obrigação, mas por gosto, afiança. Os quatro meses do estio são passados com as suas 30 cabeças de gado, aqui em cima, onde elas têm prado fresco. Foi assim que foi criado, explica, e apesar de se considerar um jovem moderno, é este o estilo de vida que quer manter. Gosta de mugir as vacas, de fazer o seu próprio iogurte... Frequentou a ‘Farmers’ School’ aos 16 anos e não teve vontade de continuar a estudar. Por ele, vai ajudar a perpetuar o modo de vida de Tux.
No outro extremo da vida está Josef Erler, um homem de cabelo branco e olhos cinza, com 76 anos de campo, e um discurso estranhamente semelhante. Ele e a mulher vivem numa casa tradicional, com fileiras de gerânios vermelhos à varanda - uma casa de 1703, na família há três gerações. Agricultor desde 1964, Josef produziu o seu próprio leite e queijo durante 40 anos. Tinha oito vacas, quatro bezerros, cavalos e cabras a que fiava a lã. Hoje, os agricultores de todo o vale mandam o leite das vacas para uma fábrica industrial, que faz manteiga e queijo.
Um dia, quando Josef era novo e andava a apascentar as vacas, foi entregar o leite a uma aldeia distante. A sua futura mulher trabalhava nessa queijaria. Falaram... e apaixonaram-se. Duma aldeia à outra distavam cinco horas de caminhada, difícil, pela montanha. Ano e meio mais tarde, ela veio viver com ele. Casaram, tiveram três filhos.
A primeira vez que Josef saiu de Tux, foi para combater, na Segunda Guerra Mundial, corria o ano de 1945. «Recruta obrigatória». Vieram buscá-lo, a ele e a todos os outros homens da aldeia. Bateram à porta e já não saíram sem ele. Tinha 16 anos. Lutou pelo exército alemão, foi preso. Esteve seis meses numa prisão no Sul da Alemanha, Heilbroun. Na faixa do seu traje tirolês - com que hoje, Domingo, foi à missa - pode ler-se: «Gott mit mir» (Deus comigo). O seu cinto, a «ranzen», passou de geração em geração, de pai para filho – desde o século XVII. É em couro, os pontos feitos a pena de pavão. Hoje, uma ‘ranzen’ destas custaria 3000 a 5000 euros.
As encostas da montanha são o melhor de Tux. É onde está a natureza, com as suas mil e uma possibilidades, e as casas de madeira preservadas no seu estado original, com as traseiras forradas a pilhas de lenha, geometricamente encaixadas. No vale propriamente dito, o inevitável ‘progresso’ veio desfear as casas, dotá-las de pinturas tipicamente austríacas nas paredes, de néons e tabuletas indicativas, de acrescentos em vidro de gosto duvidoso. Nesse aspecto, Hintertux é a aldeia menos bonita, só com hotéis e bares de ‘après-ski’, e Vorderlanersbach a mais preservada. Não venha para aqui à procura de hotéis de charme ou restaurantes ‘gourmet’ com decorações apuradas, porque isso não existe. Em Tux, a decoração é típica da montanha, com animais empalhados, hastes de caça penduradas, cortinas de padrões às flores. Se para si isso não tiver importância, a hospitalidade dos locais e a beleza natural do sítio compensam largamente estes aspectos.

A casa do lago
O dia amanhece em tons de azul forte e decidimo-nos por um passeio até Grieralm, um lugar a 1800m de altitude com um lago, onde se pode pescar trutas ou tomar banho. É o sítio ideal para fazer um piquenique, por isso, abastecemo-nos de pão, presunto, queijo e fruta e zarpamos até lá acima, pela estrada ladeada de fetos e musgo fofo. Grieralm é perfeito para dar descanso ao cérebro e activar os sentidos. Com vista para a montanha, passamos uma pequena ponte de madeira e estamos ao pé do lago, onde há mesas e sombras propícias ao nosso repasto.
Sobranceiro, como uma presença que vela por todos que aqui vêm, um enorme Cristo talhado a partir de uma árvore surpreende, pela beleza e minúcia do trabalho. É um Cristo gigantesco, esculpido em madeira, de braços abertos e coroa à cabeça, feita a partir dos troncos da copa. Parece ali colocado estrategicamente, para olhar por todo o vale, e é uma obra de arte impressionante, independentemente de se ter ou não um credo religioso.
O artista não anda longe. No antigo abrigo de montanha onde é usual parar para recobrar forças, o proprietário do restaurante é também o autor da obra. Hermann Wildauer é um homem robusto, de 63 anos e mãos calejadas pelo trabalho da madeira. Esculpiu este Cristo numa árvore com 2000 anos (uma estranha coincidência?), no espaço de três semanas. «Simboliza a grandeza da natureza perante a pequenez dos Homens», explica. A coroa foi feita a partir de seis ramos da árvore – «as principais religiões do mundo». «Cristo tem duas árduas tarefas para resolver», continua ele: «a coexistência pacífica entre as várias religiões e o peso do mundo à cabeça».
Hermann também esculpiu um presépio para o Papa – uma prenda do povo tirolês ao Sumo Pontífice, em 1983. Foi escolhido para fazer o projecto, mas declinou o convite por duas vezes. À terceira, a mulher aceitou em nome dele. Hermann fez o esboço em cinco minutos, o presépio em dois meses. O Papa gostou tanto da escultura que a expôs em várias cerimónias na catedral de S. Pedro, pelo Natal.
Passe aqui um dia - a pescar, a andar, a descansar, a fazer um piquenique, ou a almoçar, no abrigo de Hermann. É o nosso conselho.

Rio acima
A natureza é soberana em Tux. Por isso, qualquer programa que a envolva é uma decisão acertada. Hoje que o calor aperta, optamos por um passeio ao longo do rio que percorre as cinco aldeias e nos protege do sol abrasador depois do almoço. A luz passa pela folhagem, num jogo de frescura e sombras. Permanentemente acompanhados pelo som da água, temos uma hora e meia de caminhada pela frente, de Lanersbach até Hintertux. Não faça como eu: siga as tabuletas! A meio do caminho, cruzo-me com um pescador, de cana artesanal em riste. Anda à pesca de trutas, diz este suíço de férias. «Mas não para comer». Esta manhã, apanhou dez e soltou-as a todas, garante. É muito agradável, este passeio à beira-rio.
Levo um livro e passo a tarde deitada na relva, na companhia do meu autor preferido.

Raposas voadoras
Mas não se pense que em Tux só há programas com bichos e flores. Para os mais radicais, que gostam de pôr a adrenalina a correr, há várias hipóteses: ‘paraglide’, ‘brainwashing’ (subir uma cascata de capacete na cabeça, a apanhar água no ‘cocuruto’ – o que explica o nome), e ‘flying fox’, uma actividade em que se atravessa um desfiladeiro de 60 metros de um lado ao outro, preso por uma corda de aço. Como o ‘brainwashing’ nos parece excessivamente radical, optamos pela «raposa voadora». Para não faltar à verdade, devo dizer que a primeira vez que olhei para baixo, achei que as pessoas deviam ser doidas varridas para tentar uma coisa daquelas de uma altura de 60 metros, com um rápido e pedras lá em baixo. A muito custo, depois de algumas demonstrações - «Não tenho nada a provar a ninguém», dizia eu, de mim para mim -, enchi-me de coragem (ou de insensatez), olhei para baixo - e saltei para o abismo.
A sensação é incrivelmente libertadora e recomenda-se. É uma torrente de adrenalina que raramente temos oportunidade de experienciar na nossa vida diária e que nos faz sentir bem e esquecer as pequenas chatices. Depois das borboletas no estômago, e de estarmos pendurados de uma altura daquelas, a olhar para o rio lá em baixo, sentimo-nos capazes de tudo. Somos uma raposa voadora e o pior é que isso é viciante!
Roman, o homem dos cabos e da segurança, que ‘checka’ todo o equipamento duas e três vezes para que nada falhe, conta que tem muitos grupos de empresas que se inscrevem para reforçarem a auto-confiança, perceberem a sua reacção aos desafios, ou fazer programas ‘anti-stress’. Também vêm famílias inteiras, com avós, pais e netos; «Avós que começam por tirar fotografias aos netos e acabam a voar de um lado ao outro», quais Tarzans dos tempos modernos.
Na hora da despedida, levo no ouvido um som que ouvi aqui pela primeira vez: o assobio das marmotas, a avisar as outras da presença humana. Algumas delas, ainda meio azamboadas depois de um inverno a hibernar, deixam-nos aproximar e ficar a observá-las. Isso, o avistar de um bambi, o sentir de perto a pujança de uma cascata, são aquilo que faz de Tux um sítio especial. A cultura tirolesa, de uma hospitalidade desarmante. Uma paisagem natural invulgarmente preservada. As cascatas a jorrar vida. E o som da água a correr.

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