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BLUE
TRAVEL No. 20 | FEVEREIRO 2005
TODOS OS TEXTOS
© BLUE TRAVEL |
KATYA DELIMBEUF
Skagen
Terra
abençoada
Quando a terra acaba, no Norte
da Dinamarca, há uma península de areia formada pelo vento
onde dois mares se encontram e as nuvens estão proibidas de entrar.
Skagen é uma terra abençoada onde o Sol se põe nas
dunas, o mar manso parece um lago e os prados verdes e amarelo-palha se
estendem em infinitas linhas horizontais, querendo convencer-nos que a
Terra é plana. É o destino de Verão escolhido pelas
mesmas famílias há várias gerações,
mantendo viva uma longa tradição. Aqui todos os elementos
água, vento, areia e luz têm o papel principal.
Por
Katya Delimbeuf / Fotos de António Nascimento
O segredo do bom tempo de Skagen
é o mesmo na origem de outra riqueza local: a luz. Há, de
facto, na claridade e na duração desta luz algo de único
e especial. O Sol põe-se muito tarde, e só anoitece lá
para as 22h30. O mar manso e as planícies a perder de vista são
outra imagem que fica de Skagen.
Uma região onde a terra é plana e a calma parece manter
o tempo em suspenso.
Feche os olhos
Estenda-se na areia. Peça ajuda à audição
e siga o movimento das ondas e o trajecto dos pássaros. Agora sente-se.
Abra os olhos. O mar é baixo, liso, a perder de vista. Quebra suavemente
sobre a praia. Vêem-se os barcos na linha do horizonte vê-se
tudo, de tão plano... A temperatura é amena estão
vinte e poucos graus e corre uma brisa. Tudo o que se vê,
o que se ouve, parece em câmara lenta. O som é manso, as
imagens doces. Deite-se novamente. Relaxe. Pegue em dois seixos lisos
e redondos e pouse-os na cabeça, no coração. Sente
o equilíbrio da natureza? Abra os olhos. Está em Skagen,
na Dinamarca, na ponta mais a norte deste país. Esta é uma
terra abençoada, onde só há areia e as nuvens não
têm permissão para entrar. Há quem acredite que, por
ter a forma de um funil, esta península seja um condutor de energia.
O que ninguém contesta é que este pedaço de terra
que entra pelo mar dentro tem uma história particular que
sim, pode envolver alguma magia. A magia da natureza e da luta entre os
seus elementos.
A península de Skagen (pronuncia-se skéyen)
foi formada pela deslocação da areia com o vento há
quatro mil anos. Anualmente, o areal avança 5om em direcção
à Suécia. Não há terra, só dunas
é como se estivéssemos no mar, dizem os locais. Não
há nuvens, logo, não chove... Por isso o tempo é
tão diferente aqui e no resto do país. Em Skagen, é
sempre Verão, facto que atrai centenas de pessoas. Acresce a esta
riqueza natural outra ainda: Skagen é um dos melhores sítios
na Europa do Norte para fazer observação de aves. Durante
as migrações, todas as primaveras várias espécies
param nesta península antes de atravessarem para a Suécia.
A batalha invisÍvel
Até aos anos 7o não havia vegetação aqui.
As ervas, árvores e arbustos que existem hoje foram plantados pelo
homem para conter o avanço das dunas. Aliás, há muito
que se trava uma luta invisível entre a população
local e a areia. Qual D. Quixote na sua peleja contra moinhos de vento,
as gentes de Skagen sempre batalharam contra o vento e as deslocações
das dunas. No século XVIII, por exemplo, a vila de Skagen, na altura
com uma população de quatro mil habitantes, foi reduzida
a um punhado de 6oo por causa do avanço da areia. Testemunho dessa
luta é a torre da Igreja Soterrada (Tilsandede Kirke), único
vestígio que sobrou da Igreja de S. Lourenço, construída
em 1375. Em 1775, as dunas deslocadas pelos ventos começaram a
atingir a igreja, acabando por cobri-la. O altar e três metros de
muro encontram-se hoje debaixo da areia; a camada que cobre o pavimento
atingiu os cinco metros. Vale a pena visitar esta torre uma torre
invulgar, arquitectonicamente diferente das nossas, construída
como uma pirâmide em degraus.
Pintar a luz
O segredo do bom tempo de Skagen é o mesmo na origem de outra riqueza
local: a luz. Há, de facto, na claridade e na duração
desta luz algo de único e especial. O Sol põe-se muito tarde
e só anoitece a partir das 22h3o. Foi, aliás, a intensidade
deste azul que, a partir da segunda metade do século XIX, trouxe
dezenas de pintores a Skagen. Vinham todos os verões, na tentativa
de conseguir reproduzir a luz. O movimento deu até origem a uma
escola de pintura, com vários mestres que se podem admirar no Museu
de Skagen. P. S. Kroyer, Anna e Michael Ancher ou Holger Drachmann foram
os expoentes maiores da Escola de Skagen, imortalizando a
luz deste local, os pescadores e as pessoas a passear na praia.
Hoje, ainda há uma dezena de pintores em Skagen que perpetuam a
herança dos antigos. Ulla Becker é uma mulher
alta e magra, 59 anos muito bem conservados e óptimo ar. É
pintora e vive em Skagen há 18 anos, numa casa isolada com um jardim
enorme e um atelier inundado de luz. Pintou a vida toda. É natural
de uma aldeia a 1ookm daqui, mas veio para cá atraída pela
areia e a praia e por ser sempre Verão. Aqui,
nada todos os dias. Pinta essencialmente quadros abstractos e cria colagens,
embora também faça paisagens de Skagen. O marido, compositor,
não gosta da aldeia no Inverno e vai para a cidade incomodam-no
o barulho do mar revolto e as cores do céu de chumbo. Ela fica.
Já não saberia viver noutro lugar.
Velha Skagen, nova Skagen
Comecemos então do princípio. Skagen é, desde tempos
medievais, uma pequena aldeia piscatória, como os pintores daqui
reproduziram abundantemente nas suas obras. Com uma população
actual de 12 mil habitantes, divide-se em duas partes: Gammel Skagen,
a zona antiga e mais selecta, uma área pequena, com casarões
sobre a praia, um hotel, alguns restaurantes e apartamentos para alugar;
e Skagen propriamente dita, a parte nova, com o porto e a marina, os hotéis
para mais pessoas, uma avenida pedonal com lojas e bares de animação
nocturna. Para se ter uma noção, nada como os números:
das 12 mil pessoas que habitam Skagen, 5o vivem em Gammel Skagen. Esclarecedor?
Gammel Skagen (a velha Skagen) é, sem dúvida, o melhor deste
sítio um conjunto harmonioso de casinhas amarelas e telhados
laranja debruados a branco. O estilo arquitectónico é só
um e escrupulosamente respeitado, o que contribui para a integração
de todo o conjunto na paisagem. Nada de prédios em altura nem mamarrachos
inventivos o estilo da região é aquele e nem pensar
em construir de outro modo. A intransigência nórdica é,
nesse sentido, absolutamente louvável, e só assim conseguiu
preservar as deslumbrantes paisagens naturais da cobiça imobiliária.
Por isso, aqui há espaço, há natureza em estado selvagem
e que melhor do que jantar no meio das ervas e das dunas nas traseiras
da casa, com a praia por cenário?
O progresso, esse (ou a capacidade de alojar pessoas), mudou-se inteirinho
para a parte nova de Skagen, onde há muito mais visitantes, hotéis
e uma fileira de restaurantes ao pé da marina, com dezenas de barcos
atracados. Junte-se a isto o factor moda e Skagen está
na moda há vários anos (todos os verões, esgota completamente
a sua lotação) e temos... muita gente. Nós
que somos bichos-do-mato ou gostamos de espaço e qualidade
de vida, dependendo da perspectiva , fugimos o mais que podemos
das enchentes e das multidões, e partimos à procura de sossego.
Felizmente, paisagens soberbas é o que não falta em Skagen.
Brumas ou deserto?
Na busca da comunhão com a natureza há opções
de sobra em Skagen. Podemos rumar a Grenen, a 3km, mesmo à ponta
do cabo, e assistir ao encontro entre dois mares o Báltico
e o do Norte; ir a Rajberg Mile, a 13km, um local isolado donde se tem
uma vista esplendorosa do pôr do Sol; ou ficar pela praia de Gammel
Skagen, a ver o astro-rei afundar-se no mar sob os aplausos dos que diariamente
lá rumam, em ritual, prestar a sua reverência à mãe
natureza. Escolhemos Rajberg Mile. Pouco a pouco, o prado dá lugar
às dunas semeadas de ervas e arbustos. Depois às dunas só.
E de repente, o deserto! A areia branca é uma extensão imensa
à nossa frente. Bem podíamos estar no Sara, não fosse
a temperatura... Alguns já se instalaram no topo da duna, à
espera. O Sol apresenta-se como uma laranja de fogo que mergulha lentamente
no mar. Espere que todos se vão embora e desfrute do deserto
na Dinamarca. Tudo isto só para si...
Andando mais uns 2oo metros, chegamos à praia de Rajberg Mile
àquela hora uma longa tira de areia banhada por céu laranja
e rosa... Quando achar que já descansou os olhos e embebedou a
alma, entre no carro e parta com destino... às brumas. Um manto
de bruma desceu subitamente sobre os campos. Parece que estamos num livro
de Marion Zimmer Bradley... ou num conto de Hans Christian Andersen, que
por aqui viveu. De novo, uma laranja redonda no céu. É a
Lua, desta vez.
O Sr. Báltico encontra o Sr. Norte
O encontro entre dois mares tinha de ser uma visão poderosa. Vale
a pena madrugar para assistir ao nascer do Sol em Grenen. Qual não
é a nossa surpresa quando, às 5h da manhã, avistamos
alguns locais que tiveram a mesma ideia. Assim se vê o grau de civilização
de um povo: todos os dias, ao amanhecer e ao entardecer, dezenas de pessoas
dirigem-se às suas praias para ver o Sol nascer ou pôr-se,
e prestar homenagem ao deus Sol ou ao mar. Num país como Portugal,
com a nossa natureza, quantos fazem isto? Quantos se levantam de madrugada
para ver o Sol raiar?
Quando o Báltico e o mar do Norte se encontram, vêem-se mesmo
as ondas dos dois mares que se cruzam, formando triângulos de espuma.
Ponha um pé num dos mares e o outro no outro. Sinta a energia.
Estas correntes afundaram inúmeros navios. Só no ano de
1823, houve 23 naufrágios em Grenen. Além disso, como a
terra é perfeitamente plana, não havia pontos de orientação
na costa. É por esta razão que existem três faróis
em Skagen um cinzento, um vermelho e outro, o mais antigo, de madeira,
que mais parece uma catapulta.
Amor à primeira vista
Há muitos, em Skagen, que se apaixonaram pelo sítio. Quase
todos os locais fizeram, em algum momento da sua vida, temporadas fora
dali mas todos regressaram a casa. Seja pelo apelo da areia, da
luz ou do mar, o que é facto é que todos voltam. E há
também os casos de amor à primeira vista como sucedeu
com Flavio. Encontrei aqui o meu Taiti, diz este italiano
de 44 anos, que se apaixonou por Skagen em Agosto de 2oo3 e se mudou para
cá em Junho do ano seguinte. Casado com uma dinamarquesa, este
milanês queria ser carteiro. Era o meu sonho. Porque gosto
de andar na natureza, ao ar livre. Em Itália, ele e a mulher
fartavam-se de trabalhar e tinham atingido o topo das suas carreiras.
Tínhamos vidas muito stressantes. Andávamos sempre
a viajar pela Europa e a nossa filha estava sempre a saltar de um lado
para o outro. No dia em que a pequena adoeceu e estavam ambos retidos
em aviões foi o momento da decisão. Flavio comprou um hotel
em Skagen e mudou de vida.
Das três praias que há na península de Skagen
a uma distância de dez minutos de bicicleta , a melhor é
Nordstrand, a praia do Norte. É uma longa extensão de areia
branca, com pouca gente e um mar azul esverdeado a perder de vista. Sanderstrand
(a praia do Sul) e Gammel Strand (a praia de Gammel Skagen) também
são simpáticas, mas os nossos pés preferem a areia
fina aos seixos chamem-lhe capricho... Skagen é o destino
perfeito para famílias com dinheiro (a vida não é
barata na Dinamarca), sobretudo se estiverem cansadas das temperaturas
tórridas dos verões a sul. O ideal será ir em Maio,
Agosto ou Setembro, quando termina a época alta, os preços
baixam e as enchentes desaparecem. A Primavera e o Outono em Skagen têm
decerto o seu charme, sobretudo para quem ama a natureza e gosta de a
ver respeitada. Aqui, onde a terra deixa de ser redonda e Aristóteles
parece ter-se enganado, é impossível não perder algo
pelas planícies. Senão o olhar, o coração.
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